Zona Curva

Este texto não é sobre Lula

por Fernando Bastos Neto

Vocês sabem que Juscelino Kubitschek é um dos políticos mais prestigiados do Brasil. Faz algum sentido. Os anos JK são conhecidos como a “Era Bossa-Nova”. O Brasil parecia estar finalmente na direção do desenvolvimento e industrialização. Foi o tempo da construção de Brasília, mas também do Plano de Metas, dos cinquenta anos em cinco, de capitais estrangeiros sendo atraídos, de fábricas automotivas vindo pra cá, de investimentos em infraestrutura. Tudo isso pincelado pelo carisma mineiro de um presidente capaz de transitar entre comunistas e udenistas, dono um charme de contagiar a todos. Vejam só, já tivemos até série de televisão laudatória sobre Juscelino na Rede Globo, com José Wilker de papel principal. Maior prova de que JK é querido pelo establishment não há. No entanto, pouca gente se lembra de alguns episódios posteriores ao seu mandato de presidente, especialmente das reiteradas acusações de corrupção direcionadas a Juscelino Kubitschek.

Para explicar esta história, convém retomar a eleição de 1960, que escolheu o sucessor de JK. A disputa estava centralizada entre Jânio Quadros e o Marechal Lott. Lott, candidato do PTB, de Getúlio e Jango, foi um reconhecido militar legalista (algo mais ou menos raro, dada a história do Brasil), mas claramente sem tino para a política. Clássica figura reconhecidamente séria, mas sem carisma. Jânio, do contrário, surgiu como um meteoro na política. Candidato pelo pequeno e quase inexpressivo PTN, recebeu o apoio da UDN.

A União Democrática Nacional era o partido das donas de casa batedoras de panela, das classes médias urbanas, dos servidores públicos. Sua figura mais proeminente, Carlos Lacerda, poderia ser definida como uma espécie de Reinaldo Azevedo com mandato parlamentar. Outro detalhe importante sobre esse partido é que ele jamais havia ganhado uma única eleição para a presidência da república. Em 46, o Brigadeiro Eduardo Gomes perdeu para o general Dutra. O mesmo Brigadeiro seria derrotado por Getúlio, no ano de 1950. Já em 1955, Juscelino venceu Juarez Távora. Curiosidade: depois da terceira derrota seguida, a UDN tentou aplicar um golpe para evitar a posse de JK. Sim, é golpe o termo. Esse tipo de coisa era mais ou menos comum naquela época. Alegava a União Democrática que JK não havia vencido com a 50% + 1 dos votos, portanto não teria legitimidade para assumir o posto. O detalhe de que a legislação eleitoral da época não previa segundo turno, nem a necessidade de conquistar determinada porcentagem para ser empossado, nada disso fazia diferença. Tanto foi assim, que um General (à época) assumiu a posição da defesa da legalidade e deu um golpe preventivo (sim, gente, foi um golpe preventivo, a história do Brasil é cheia dessas loucuras) para garantir a posse de Kubitschek. JK venceu suas eleições, mas só pôde assumir porque um grupo de dentro das forças armadas decidiu garantir sua posse pela força das armas. O nome do líder deste grupo de militares era Henrique Teixeira Lott.

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JK

Saiba mais sobre o golpe preventivo liderado por Lott.

Voltemos às eleições de 1960. Traumatizada por ter perdido nas urnas tantas vezes, a UDN resolveu se arriscar e apostar numa figura obscura de outro partido, mas ascendente dentro do cenário político nacional: Jânio Quadros. Pela primeira vez, o moralismo de direita incorporava indícios que podem ser chamados de populistas. Com um discurso conservador e de forte combate à corrupção, Jânio venceu o apagado Lott com relativa facilidade. O papo da vassourinha simplesmente pegou. É verdade que não chegou aos 50% + 1 votos, no entanto desta vez a UDN não questionou a legitimidade do pleito. Eleito, Jânio Quadros tomou medidas heterodoxas. Proibiu o biquíni, inaugurou uma nova era da política externa brasileira, condecorou Che Guevara e tudo mais. Até que renunciou. Antes de renunciar, contudo, ele havia colocado em prática o discurso da vassourinha, criando inquéritos com o objetivo de investigar a gestão anterior. Não havia a teoria do domínio do fato, nem procuradores do MPF que curtem a página Revoltados Online, mas logo a investigação chegou em Juscelino. Ninguém precisa conhecer uma única letra da história brasileira para saber que houve roubalheira na construção de Brasília. JK estava na mira.

Como na época não havia Gilmar Mendes no seu encalço, Juscelino Kubitschek logrou êxito numa gambiarra jurídica que lhe permitiu tornar-se Senador pelo estado de Goiás, ganhando, assim, imunidade parlamentar, se safando das investigações. A renúncia de Jânio jogou o país numa espiral de tensão enorme. A UDN, que finalmente havia vencido uma eleição, viu seu sonho virar um pesadelo: assumiu Jango, herdeiro do getulismo, aquele mesmo que os udenistas lutaram tanto para derrotar. Mais um golpe foi tentado: a posse de Jango só foi aceita por conta de mais uma campanha da legalidade, dessa vez liderada por Leonel Brizola, que se resolveu pela saída pacífica negociada: transformar o país num regime parlamentarista. Sim, desde aquela época esta é uma ideia fixa de parte da direita brasileira. Não durou muito, logo viria um plebiscito e a população optou pelo presidencialismo. Também não durou, porque o golpe de 64 não tardaria a chegar.

Golpes no Brasil, como esse texto já mostrou, eram bastante corriqueiros. Normalmente, isto é, até 64, o procedimento de praxe era derrubar o governo, dar um reset no sistema — devolver o poder para os civis. Era essa a promessa, ao menos, do grupo ligado ao presidente empossado Castelo Branco. Seria coisa rápida. Tanto a UDN de Lacerda, quanto o PSD de Juscelino acreditaram na promessa e apoiaram o golpe. Ambos tinham pretensões para 65. Seria tipo uma disputa entre Pelé e Maradona da política brasileira, mas esse embate nos foi negligenciado pelos milicos que não ficaram alguns dias como de praxe, mas vinte e um fucking anos.

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Lacerda logo se tocou e voltou à oposição. JK, agora com o mandato cassado sob alegação de corrupção, era visto como potencial inimigo da ditadura militar. Passou a ser conduzido coercitivamente de maneira diária a prestar contas na polícia do exército. Os jornais enfatizavam a agonia de Juscelino, com ênfase nas acusações de corrupção. Imagina se houvesse comentários de portal naquela época. Pressionado, deprimido, com pensamentos suicidas, seus antigos aliados conseguem uma saída de conciliação: o ex-presidente seria direcionado ao exílio. Como se subitamente PSDB, PSOL e PT se unissem, Carlos Lacerda articulou uma frente ampla com JK e Jango, em busca de organizar lideranças civis pela democracia. Mas já era tarde. Lacerda foi cassado. Edson Luís foi morto. O AI-5 foi assinado.

No ano de 1976, a ditadura passava por apuros. O MDB havia vencido a eleição de 1974, num claro indício de esgotamento do apoio popular recebido pelo regime durante os anos do milagre econômico. Pra piorar, o cenário internacional não era nada bom, com o choque do petróleo impondo à ditadura desafios econômicos enormes. Geisel tentava promover a abertura lenta gradual e segura, tentando se equilibrar entre a linha dura dos militares, e o crescente movimento pela democracia no Brasil. Naquele ano, JK foi vítima de um acidente de carro na via Dutra — um daqueles acidentes que estranhamente costumavam acontecer com opositores do regime.

A comoção com a morte de JK foi enorme. A cobertura da imprensa, discreta. Cantando versos do “peixe vivo”, a multidão levou o corpo até a catedral de Brasília.

Hoje, JK é julgado pelas novas gerações pelo que logrou e pelo que deixou de fazer. Por Brasília, fator importante de integração do interior do país e afastamento do pólo decisório estatal das multidões. Pela abertura a capitais estrangeiros, que ajudaram a promover a industrialização, mas postergaram o enfrentamento da questão agrária. Pelos investimentos em infraestrutura e seu enorme endividamento subsequente. Pelo apoio ao golpe de 64. Juscelino é avaliado pela história não pelas acusações de seus detratores, mas pelos projetos e ideias que apresentou e defendeu no país.

Bom seria se assim fosse com todos os presidentes.

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