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Luther Blissett de olho na grande mídia brasuca

Luther Blissett – A mentira e a manipulação de mentes menos atentas virou o padrão do trabalho diário de grande parte da midiazona. Em busca de seus objetivos comerciais, políticos e ideológicos, ela incentiva o pânico (quando lhe convém), entorpece os sentidos e teme o debate igualitário e a reflexão coletiva. As exceções só confirmam a regra.

Cansados de situação similar a que passamos por aqui, um grupo de escritores criou na Itália em 1994 Luther Blissett, misto de bandido, heroi e humorista virtual, que pregou trotes na grande mídia daquele país entre 1994 e 1999.

Os escritores e ativistas italianos Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca di Meo e Federico Gugliemi criaram Luther Blissett que, segundo o site do coletivo Wu-Ming, idealizado por eles, “é um pseudônimo multiusuário, uma ‘identidade em aberto’, adotada e compartilhada por centenas de hackers, ativistas e operadores culturais em vários países, desde o verão (no hemisfério Norte) de 1994″. A Wu Ming Foundation (@Wu_Ming_Foundt) mantém um blog, infelizmente só em italiano.

Foto 'oficial' de Luther Blissett em versão Andy Warhol
Foto ‘oficial’ de Luther Blissett em versão Andy Warhol

Artistas, ativistas e muitos outros organizaram zombarias, passaram notícias falsas à mídia, coordenaram heterodoxas campanhas de solidariedade a vítimas da repressão, entre outras ações no espírito de Blissett. O ativista Stewart Home explica que “Blissett coloca abaixo as noções ocidentais de identidade, individualidade, valor e verdade”.

O nome do Robin Hood da era da informação foi retirado de um jogador inglês de origem jamaicana, que jogou durante as décadas de 70 a 90 no pequeno clube de Watford, da cidade de Hertfordshire, próxima a Londres. Contratado pelo Milan da Itália, foi considerado uma das piores contratações do clube e devolvido ao clube inglês onde continuou a carreira.

 O 'original ou a cópia' Luther Blissett em partida pelo time do Milan (fonte: jornal inglês The Telegraph)
O ‘original ou a cópia’ Luther Blissett em partida pelo time do Milan (fonte: jornal inglês The Telegraph)

 

Alguns trotes de Luther Blissett na mídia italiana

No final do anos 90, como relata o site da Fundação Wu Ming, Luther Blissett trapaceou descaradamente com a mídia italiana em busca de questionar o aparvalhamento dos sentidos dos espectadores e leitores, seguem três exemplos:

  •  Em 1994, jornais de Bolonha começaram a receber uma série de cartas informando que entranhas de animais haviam sido deixadas em lugares públicos da cidade. A imprensa cobre o caso (sem checar devidamente) e publica várias matérias sobre o absurdo e o horror do acontecimento. Meses depois, Luther Blissett reivindica a autoria das cartas.
  • Em junho de 1995, Loota, uma fêmea de chimpanzé, vítima de experiências de um laboratório farmacêutico e resgatada por ambientalistas, iria participar da Bienal de Veneza com suas pinturas. Alguns jornais publicam a notícia. Mais uma de Luther.
  • Também em 1995, um programa italiano chamado Quem o viu?, especializado em encontrar pessoas desaparecidas, recebe uma carta informando o sumiço de um certo Harry Kipper, artista residente na Itália. A produção manda uma equipe verificar a história e colhe os depoimentos de vários “amigos de Harry Kipper”, que dão informações sobre sua personalidade e levam a equipe a lugares frequentados pelo desaparecido, de Bolonha a Londres. Minutos antes de a reportagem ir ao ar, a fraude é desmascarada: os depoimentos eram falsos, prestados em combinação pelos arquitetos do trote. A foto de Kipper passa a ser o rosto “oficial” de Luther Blissett, obtida através de montagem com retratos dos anos 20 de parentes de um dos criadores de Blissett, Roberto Bui.

“A guerrilha midiática é um método homeopático de defesa da ingerência/presença da mídia no imaginário coletivo e em nossa vida. Voltando contra a mídia suas próprias armas e dando uma margem maior de fama à coisa, propaga-se  uma nova forma de usufruir da mídia, interativa e paritária, na qual o poder dos grandes meios de comunicação de massa é redimensionado, ridicularizado, e a babaquice dos operadores do setor mostra-se evidente” (extraído de A Guerrilha Psíquica , de Luther Blissett)

Os livros em copyleft e o seppuku de Luther Blissett

Luther Blissett ‘lançou’ dois livros: Q, o caçador de hereges (1999) e Guerrilha Psíquica (2001), ambos publicados no Brasil pela Conrad e com edições esgotadas. O primeiro, um catatau de quase 600 páginas relata uma intricada trama com dezenas de personagens em lutas no século XVI e chegou a vender mais de 200 mil exemplares na Itália.

Em 2002, um dos autores do livro, Roberto Bui, esteve no Brasil e explicou a trama do romance ao site Carta Maior: “em nosso romance Q, o protagonista real é a multidão. Há mais de cem personagens que não são secundários. Não é o esquema clássico, onde há o protagonista e personagens secundários. Para nós, os personagens secundários são o verdadeiro protagonista. Eles formam uma multidão de histórias, de experiências e de trajetórias que representam a verdadeira estrutura de nosso romance. Ou seja, o verdadeiro personagem é a multidão”.

Q, o caçador de hereges, foi lançado no Brasil pela Editora Conrad
Q, o caçador de hereges, foi lançado no Brasil pela Editora Conrad

No lançamento do livro, a mídia italiana chegou a cogitar que o escritor Umberto Eco tivesse participado do projeto, Luther manteve-se calado sobre a especulação. Já o livro Guerrilha Psíquica reúne as ideias do coletivo sobre cultura, mídia, ativismo, identidade e uma variada gama de assuntos.

Em 2007, o vocalista do Radiohead, Thom Yorke, declarou sua paixão por Q,  que lhe foi apresentado pela sua namorada. O cantor disse que, entre seus projetos, está a versão cinematográfica do livro.

Thom Yorke é fã do livro Q, de Luther Blissett
Thom Yorke é fã do livro Q, de Luther Blissett

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Em 2006, estive presente em debate em livraria na zona oeste de São Paulo sobre propriedade intelectual em que um dos fundadores do coletivo Wu Ming declarou: “os autores utilizam-se das experiências que trocam com os outros no cotidiano para a elaboração das obras, então, seria um contra-senso eles serem detentores dos direitos dessas mesmas obras”.

Todo o material produzido pela Fundação Wu Ming utiliza o copyleft, forma de direitos autorais que retira as barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra.

Em 1999, Luther Blissett liderou seu Seppuku (suicídio ritual japonês) coletivo. “O suicídio é a demonstração prática da renúncia de Blissett à sobrevivência como lógica da identidade e do território”, explica Luther em Guerrilha Psíquica. Mas Luther Blissett ainda sobrevive nas frestas da web e seu renascimento depende do inconformismo nosso de cada dia.

Fontes: livro A Guerrilha Psíquica, de Luther Blissett, site Carta Maior e site da Wu Ming Foundation.

http://www.zonacurva.com.br/todo-coracao-e-um-celula-revolucionaria/

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