Zona Curva

pec 241

As escolas, os estudantes e a flor

por Elaine Tavares Uma das táticas infalíveis do processo de produção de consenso é a repetição contínua e sistemática de mentiras. São tantas vezes ditas que viram verdades. Nelas, também é bastante comum as coisas trocarem de lugar. A vítima vira o vilão. É batata! Assim tem sido com os estudantes que ocupam escolas. De repente, aqueles garotos e garotas, que se aborreciam nas salas de aula, decidiram tomar o presente à unha. E diante de uma proposta que os governantes chamaram de “reestruturação” resolveram se levantar. A gurizada não é burra. Logo se deu conta que a reestruturação queria dizer destruição. Na época, o governo paulista, de Geraldo Alkmin (PSDB) decidiu fechar escolas onde achava que não eram “rentáveis”. Como se uma escola tivesse de ser lucrativa. A gurizada teria de sair do seu bairro, viajar quilômetros para chegar noutra escola, com salas de aula ainda mais cheias, com professores massacrados e mal pagos. Então, não houve dúvidas. Começaram a ocupar suas escolas para impedir que fossem fechadas. Que crime é esse? Um guri, uma guria, fincar pé na sua escola, porque que quer aprender, conhecer, se instruir, isso é irregular? As ocupações em São Paulo, em Goiás, no Rio Grande do Sul, em Minas, mostraram que algo estava acontecendo, e que era grave. Naqueles dias, o assunto foi parar na mídia e até certo ponto os estudantes foram respeitados na sua luta. Depois, quando o processo se espalhou, a classe dominante viu que era preciso parar com a “brincadeira”. Veio então a ordem para desocupar com a força policial. E todo o Brasil acompanhou a retirada da gurizada, com a velha violência de sempre. A coisa parecia superada. Com a consolidação do golpe parlamentar, as forças conservadoras, que já arreganhavam os dentes desde 2013, assomaram, ganharam musculatura, se fortaleceram e começaram a impor suas pautas ao país. Veio então a reforma do ensino médio, assim, por decreto, sem sequer passar pelo legislativo. Acabava com a obrigatoriedade do ensino de matérias universalistas, fundamentais para a formação de um pensamento crítico: sociologia, filosofia, artes. Nada disso na escola pública. Essas cadeiras que fazem pensar só nas escolas privadas, onde se forma a classe dominante. De novo o velho refrão: “Pobre tem de ficar no seu lugar”. Ana Julia Ribeiro, estudante secundarista, em discurso no dia 26 de outubro na Assembleia Legislativa do Paraná: Então, a gurizada se levantou outra vez. E os secundaristas voltaram à tática de ocupar escolas. Porque ali é o lugar onde passam grande parte do seu tempo, no mais das vezes, tentando, com muito esforço, manter a cabeça de fora do poço de mediocridade e superficialidade que o ensino formal no geral propicia. Poucos professores conseguem garantir uma aula crítica, cheia de motivação. Afinal, a maioria deles precisa correr de uma escola a outra, dando dezenas de aulas, para garantir um salário mais ou menos capaz de suprir suas necessidades vitais. Ainda assim, por conta da bravura e do compromisso político com os alunos, boa parte dos educadores supera as dificuldades e rema contra todas as forças do atraso. Os alunos sabem disso. Reconhecem os que lutam. Não é sem razão que quando tem greve, apoiam e lutam junto. E os alunos apoiam as greves, quando as aulas param, porque sabem que param para que possam continuar. Para que possam melhorar. E quando a mídia e os governos gritam que os professores são vagabundos porque saíram da escola, porque pararam as aulas, os alunos sabem que não é assim. Porque estão ali, cotidianamente, vendo o esforço que fazem para garantir um ensino de qualidade na escola pública. Por isso que agora, quando esse ensino sofre outro ataque – além da já tradicional exploração do professor – os estudantes insistem em se manter na escola. Dentro dela. Para que essa escola siga aberta, para que continue resistindo no mar das dificuldades, preparando as cabeças para o enfrentamento da vida. O levante dos secundaristas brasileiros na defesa da educação é de uma riqueza sem par. Não é uma luta pontual. É constituída pela universalidade do problema educativo. Questiona tudo: as leis, os cortes de verba, o sumiço das matérias de humanidades e a própria forma de ensinar. Há uma coisa incrível aí nessas ocupações que vai contra tudo o que se diz do jovem do século XXI. “Só querem fumar maconha e ficar na internet”, insistem em dizer os governantes sem moral e ética. Pois o concreto da luta desmente cabalmente essa falsa informação. Os secundaristas querem a escola, querem estudar, e querem que tudo isso aconteça de uma forma diferente da educação bancária reservada para os pobres. Os secundaristas estão abrindo portas e janelas, deixando entrar o ar do novo século. Eles ensinam sobre essa nova escola, que tem de ser livre, participativa, motivadora, humana, cooperativa, solidária. Quem tem olhos para ver, que veja. O fato é que os levantes dos estudantes, independentemente do que venha acontecer, com toda a truculência que está deflagrada, já venceu. Ele é igual a flor do poema de Drummond: “Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor”. Podem vir as bombas, os cassetetes, os fuzis, as prisões. Pode vir o que for. Já era. Nasceu, e é uma flor. Ainda que tudo se acabe, ainda que as escolas sejam retomadas e invadidas pelos ladrões de futuro, pelos vilões do amor, a lição já terá sido aprendida. Os estudantes mostram, com essas ocupações, que a escola pode ser boa, bonita e capaz de formar seres cheios de beleza e conhecimento transformador. Não tem retorno. O estopim foi aceso e não há como parar. O projeto de escola de hoje para frente tem de ser outro. E vai ser, a despeito

A PEC 241 é ponte para a dor

por Eliane Tavares Muita gente ouve falar em PEC, mas não sabe o que é uma PEC. É como se fosse um projeto de lei, só que mais importante, porque muda a Constituição. Daí a sua sigla, PEC, Proposta de Emenda Constitucional. No caso do Brasil, a tão comemorada Constituição de 1988, que garantiu uma série de avanços, frutos de importantes lutas sociais pós-ditadura, já foi emendada mais de nove mil vezes, e isso até 2013. Quem levantou esse número foi o advogado Thiago Santos Aguiar de Pádua, num artigo para a página Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br/2014-mar-09/thiago-padua-brasil-10-mil-pecs-25-anos-constituicao). Ainda segundo os dados acima, a média geral de proposição de PECs é de 360 por ano, e pasmem, no geral, sem qualquer debate público. Ou seja, as bancadas – que representam interesses de grupos bem específicos e não a população – decidem sobre a vida de milhões, sem sequer submeter o tema a uma discussão mínima. Tudo se dá dentro do Congresso, com o silêncio obsequioso da mídia comercial. Nas mídias independentes e alternativas a discussão aparece, mas é claro que não tem o alcance dos veículos tradicionais e, geralmente, são demonizadas como “coisa de petralhas”. Somente quando é de interesse da classe dominante que o tema PEC se populariza, como aconteceu em 2013, durante as manifestações de junho, quando, do nada, todo mundo começou a vestir a camisa contra a aprovação da PEC 37, que tirava do Ministério Público o poder de investigação. Hoje sabemos por que houve tanto apoio da mídia comercial contra essa emenda, que foi derrotada a partir das grandes manifestações contra a corrupção. O Ministério Público iria cumprir triste papel na perseguição a um grupo bem específico de políticos: do PT. A PEC 241 Pois hoje pode passar pela segunda vez no plenário na Câmara a proposta de emenda à Constituição de número 241. Se aprovada, garante ao governo o direito de congelar os gastos por incríveis 20 anos. Eu disse, 20 anos, duas décadas. Agora imagem ficar por duas décadas com o mesmo orçamento para a saúde, educação, segurança, moradia, saneamento e seguridade social? Vinte anos com a aposentadoria congelada, com os salários do funcionalismo público congelado. E em nome de quê esse ajuste tão perverso? Em nome do que o governo Temer chama de “herança maldita do PT”. Mas, qual é a verdade? A verdade é que o governo está decidindo, num tempo de crise sistêmica do capital, manter religiosamente o pagamento dos juros da dívida, que consome mais de 45% do orçamento geral da União. Assim, opta por pagar aos banqueiros, de uma dívida ilegítima e ilegal, em vez de garantir direitos básicos à população. Não tem nada a ver com o PT, já que, de fato, no período em que esse partido governou, a economia estava em crescimento, o que permitiu melhorias nas políticas públicas. Agora, com a crise, haveria que se fazer escolhas. E o governo Temer está fazendo. Contra a maioria da população. Não é sem razão que o governo recém-empossado já realizou cortes em vários programas sociais, principalmente na Educação. Agora, caso passe o congelamento dos gastos, outros setores da vida cotidiana vão sofrer. Como a população brasileira ainda está inoculada com o ódio criado contra Dilma, contra o PT e contra tudo o que veio do governo passado, está bastante favorável para as bancadas que representam os interesses do grande capital, imporem uma grande derrota a toda gente. Afinal, os efeitos dessa proposta começarão a ser sentidos lentamente. E, quando aqueles que estão agora cegados pelo ódio ao PT se derem conta, tudo já estará consolidado. Nos movimentos sociais observa-se maior mobilização contra a PEC, mas o movimento sindical brasileiro parece adormecido. Pouco debate e pouca mobilização, o que possivelmente é fruto de todo o processo de domesticação vivido durante o governo petista, e que agora vai levar algum tempo para se recuperar. Aliado a isso, ainda tem a mídia comercial jogando pesado na consolidação da “historinha” de que é inevitável que os trabalhadores apertem o cinto para salvar o Brasil que o PT estragou. Muitos dirão que Dilma também faria o ajuste e que isso é necessário para tirar o país da crise. Mas, quem está no governo não é Dilma, é Temer, e é ele o responsável por isso, nesse momento. Ou seja, o governo brasileiro está fazendo uma escolha. Atender aos interesses dos grandes e penalizando a maioria, que é quem precisa dos serviços públicos. A luta contra a PEC 241 se dará nas ruas, ainda que sejam os mesmos de sempre a gritar contra o “saco de maldades”. E é muito provável que a Câmara dos Deputados, cuja conformação é completamente favorável ao governo a aprove sem problemas. Assim, o que se anuncia para os brasileiros é um longo tempo de profunda escuridão, tristeza e dor, afinal, serão 20 anos com os gastos públicos congelados. Isso significa que os valores que esse ano foram investidos nos serviços públicos como saúde, educação e previdência serão os mesmos daqui a 20 anos, e mesmo a classe média, tão virulenta no seu ódio aos pobres, terá de pisar miudinho para não se misturar aos que tanto despreza. Segundo pesquisas realizadas pelo grupo Tendências Consultoria Integrada, dirigido pelo liberal Maílson da Nóbrega, mais de 10 milhões de pessoas que integram hoje a Classe C serão rebaixadas às classes D e E. E, se para a classe média os prognósticos são ruins, que dizer dos mais empobrecidos? Desses, tudo será tomado. Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos. Alguns diagnósticos sobre a PEC 241  

Alguns diagnósticos sobre a PEC 241

por Pablo Ortellado O texto reflete mais ou menos o que sei e penso sobre a PEC 241, que vai congelar os gastos do Estado brasileiro por 20 anos. Para começar, apresento a maneira como entendo os argumentos de quem defende a proposta: para eles, há no Brasil um desequilíbrio fiscal estrutural (isto é, se gasta estruturalmente mais do que se arrecada), com aumentos crescentes da dívida pública – movimento que precisa ser contido e revertido por meio de medidas duras, diluídas num período longo de tempo (20 anos). Embora dolorosas, pois reduzirão significativamente os gastos sociais do Estado, essas medidas serão compensadas pelos seus impactos positivos imediatos já que, ao resgatar a confiança dos investidores, elas vão gerar crescimento econômico, diminuição do desemprego e redução dos juros. Não agir assim, para os defensores da PEC, seria demagogia perigosa num momento de grave crise e nos levaria ainda mais para o fundo do poço. O que me parece errado, tanto no diagnóstico, como nas soluções propostas: 1) ainda que tivéssemos um desequilíbrio fiscal da natureza alegada pelos defensores da PEC, a solução não poderia ser um corte radical e horizontal dos gastos do Estado, mas cortar pontualmente gastos que beneficiam setores mais privilegiados (desonerações e altos salários, por exemplo) e aumentar a arrecadação, fazendo com que os brasileiros mais ricos paguem a sua parte no financiamento do Estado. Poderíamos transformar o vício em virtude, olhando para a nossa estrutura tributária regressiva – isto é, para o fato de os ricos pagarem bem menos impostos do que os pobres – como uma oportunidade de fazer a arrecadação crescer em momento de crise. Isso teria a vantagem de não mexer no que a imensa maioria paga de impostos; 2) haverá quase seguramente redução significativa dos gastos em saúde e educação. Atualmente os gastos em saúde e educação são vinculados, isto é, uma parcela do que o Estado arrecada com impostos é automaticamente repassada para saúde e educação, de maneira que, à medida que o país cresce, também crescem os recursos disponíveis para os serviços públicos. Esse sistema vai ser extinto com a PEC e os gastos totais do Estado não vão mais poder crescer. Como os outros gastos não poderão ser cortados (a maior parte deles são gastos com assistência social e previdência), a tendência é que a distribuição fique mais ou menos como está e os gastos com saúde e educação se reduzam muito, em relação ao PIB. Saber exatamente quanto é um exercício de futurologia, porque não sabemos quanto o Brasil vai crescer, nem como vai se comportar a inflação. Mas todas as simulações sérias que eu vi (os estudos do IPEA, do DIEESE e da minha colega Úrsula Peres), que utilizam expectativas padrões de mercado ou aplicam a regra da economia brasileira do passado, mostram redução muito drástica dos recursos necessários à saúde e educação; 3) existem pelo menos três grandes malandragens na PEC. Ela é uma obra de gênio. A primeira malandragem é semântica – dizer que não há cortes de gastos em saúde e educação, mas apenas a suspensão dos novos aportes. Não se tira recursos, simplesmente se deixa de colocar. Atualmente, os gastos são vinculados e crescem com a arrecadação. A partir da nova regra, estariam congelados. No decorrer dos 20 anos, um verdadeiro abismo separa o que seria gasto com saúde e educação na regra dos gastos vinculados e o que passaria a ser gasto com os gastos congelados. Nas simulações, essa diferença é uma redução de 40%; 4) a segunda malandragem é dizer que nada impede que os gastos em saúde e educação continuem crescendo, desde que o teto seja respeitado. Esse argumento só pode ser enunciado com má fé. O próprio governo Temer foi incapaz de distribuir desigualmente o ônus da crise, pesando mais sobre os mais privilegiados – pelo contrário, ele deu aumento para os servidores mais ricos e manteve todas as muito criticadas desonerações às empresas do governo Dilma. Esperar que os gastos em saúde e educação cresçam, vencendo a ação desses poderosos lobbies, se não for má fé, é apenas ingenuidade. E é de uma insensibilidade social sem par esperar que os gastos em saúde e educação cresçam às custas da redução dos gastos em assistência social (como o seguro-desemprego e o Bolsa-Família); 5) a terceira malandragem é diluir essa desconstrução dos serviços públicos em longos 20 anos. Isso tem duas vantagens para os proponentes: a primeira é que praticamente nada acontece sob o governo Temer, que poderá sobreviver ileso, já que nenhum dos cortes serão sentidos até o fim do seu mandato; o segundo é que os efeitos mais terríveis vão ser sentidos aos poucos e a barra pesada só será sentida nos anos 2020, 2030, quando nossa população estiver envelhecida, demandando mais o SUS e os recursos estiverem congelados no estágio atual; 6) como se não bastasse ser equivocada no conteúdo, a medida é um despropósito na forma. Ela está tramitando de maneira aceleradíssima, patrocinada por um governo que não submeteu tal programa ao crivo das urnas. Não foram feitas audiências públicas, os jornais não investiram no debate público e a maioria dos brasileiros simplesmente não tem ideia de que está em discussão – e esse desconhecimento não é por acaso: se o debate fosse realizado, o Brasil jamais aceitaria a medida, porque um sistema sólido de educação e saúde é um dos poucos consensos deste país tão dividido; Foram necessários 30 anos para construir nosso sistema público de saúde e para ampliar e consolidar nossa educação pública. Tudo, agora, corre o risco de ser desconstruído com um projeto que está sendo aprovado sem debate e que deve ter um tempo total de tramitação de apenas dois meses! 7) por fim, gostaria de enfatizar que embora envolvida em questões técnicas, essa é uma questão inteiramente política. Se temos mesmo um desajuste fiscal, temos que fazer um debate público sobre como resolvê-lo: se aumentamos a arrecadação sobre quem não paga imposto ou se cortamos gastos e onde cortamos os