Zona Curva

pós-verdade

A verdade sobre a verdade

A primeira reação da cúpula da Lava Jato diante das reportagens do Intercept residiu em obstruir a confirmação de sua autenticidade. Embora insinuassem sofrer calúnias, as supostas vítimas evitaram meios simples e eficazes de combatê-las: disseram ter apagado os arquivos originais e pouparam o veículo de acusações que o ônus da prova submeteria à perícia. O inquérito dos hackers dificulta ainda mais o acesso à verdade. Enfiou-a num labirinto de papéis que demandam meses de verificações fajutas e inúteis, sem base comparativa possível ou desejada. As evidências ficarão ocultas, supostamente para não consumar o crime, e a versão oficial tratará de solucioná-lo usando outros materiais. Tudo isso para esconder a nulidade da condenação que impediu a vitória eleitoral de Lula. Nenhuma revelação do Intercept possui semelhantes alcance e gravidade, tampouco o mesmo potencial de suscitar efeitos práticos imediatos. Segredo de Polichinelo da cobertura noticiosa, o tema alcança perplexa unanimidade nos círculos especializados. O maior desafio aos objetivos da Lava Jato é o sucesso da estratégia de parcerias do Intercept. A veracidade das informações vazadas, inicialmente sujeita a controvérsia, passou a ser admitida de maneira oficiosa por todas as instâncias midiáticas e judiciais. O benefício da dúvida terminou sucumbindo à constatação de sua própria inverossimilhança. Esse embaraço aflige as altas cortes e setores da mídia corporativa que, aderindo inicialmente à suspeita de falsificação, comprometeram-se a repudiar as conversas caso a soubessem reais. O mote da prova ilícita espana vernizes punitivistas, mas não alivia o desgaste de fingir ignorância acerca de algo repercutido em escala planetária. Provas, afinal, provam. O STF ganhou um problema e tanto. Sabe que não poderá abraçar o outrora confortável malufismo jurídico, pois os preceitos doutrinários e republicanos que tornam as conversas abjetas são fortes e evidentes demais. Por outro lado, tratá-las como duvidosas agora reduziria o arco de atitudes do tribunal caso ele precise reagir a futuras revelações constrangedoras. Acontece que não há saída para impedir a liberdade de Lula senão normalizando-se a ética profissional de Sérgio Moro e colegas procuradores. À luz do que ficou impossível não saber, parolagens sobre autenticidade são mera apologia ao delito. Qualquer posicionamento demanda juízos acerca dos valores constitucionais e democráticos afetados pelo escândalo. Mantendo Lula preso, o STF abrilhantará a narrativa histórica do período com a explicação definitiva para o triunfo impune do arbítrio. Restarão identificados os cúmplices de Moro, as mentes e o poder que sempre faltaram à sua mediocridade intelectual e hierárquica. E mesmo a origem da institucionalização do fascismo no país ganhará um nexo bastante elucidativo. Sejam quais forem os desdobramentos do episódio, e embora eles não pareçam alvissareiros, trata-se de uma derrota inédita do Regime de Exceção. Desta vez, os fatos escaparam a seu controle. A verdade sobre o golpe eleitoral da Lava Jato vazou, continuará vazando e ficará mais repugnante a cada tentativa de contê-la. Publicado originalmente no Blog do Scalzilli. Somos todos pós-verdade?

Somos todos pós-verdade?

A resposta é sim, se comungamos essa angústia, esse sentimento de frustração frente aos sonhos idílicos da modernidade. Quem diria que a revolução russa terminaria em gulags; a chinesa, em capitalismo de Estado; e tantos partidos de esquerda assumiriam o poder como o violinista que pega o instrumento com a esquerda e toca com a direita? Quem diria que a especulação superaria a produção, e o valor intrínseco de um ser humano se deslocaria para os bens que possui (e seu valor não é reconhecido se não possui bens)? Quem diria que tantas pessoas haveriam de erigir o mercado como um deus ao qual prestam culto, e cuja mão invisível seria capaz de regular o progresso das nações sob a égide da economia? Nenhum sistema filosófico resiste, hoje, à mercantilização da sociedade: a arte virou moda; a moda, improviso; o improviso, esperteza. As transgressões já não são exceções, e sim regras. O avanço da informatização, da robótica, a googletização da cultura, a celularização das relações humanas, a banalização da violência, são fatores que nos mergulham em atitudes e formas de pensar pessimistas e provocadoras, anárquicas e conservadoras. Na pós-verdade, o sistemático cede lugar ao displicente; o articulado ao disforme; a teoria à conjectura. A razão delira e fantasiada de cínica baila ao ritmo dos jogos de linguagem. Como proclamou Nietzsche, já “não há fatos, apenas versões”. Nesse mar revolto, muitos se apegam às “irracionalidades” do passado, à religiosidade sem teologia, à xenofobia servil à Casa Branca, ao consumismo desenfreado, às emoções sem perspectivas. Já não se buscam grandes narrativas, paradigmas históricos, valores universais. Agora sopra o vento da “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie, e muitos se ajoelham aos avatares, convencidos de que a lei da força deve predominar sobre a força da lei. Para a pós-verdade, a história findou, e resta nos adequarmos ao tempo cíclico. O lazer, agora, se reduz a mero hedonismo, e a filosofia, a um conjunto de perguntas sem respostas. O que importa é a novidade, as luzes da ribalta, o invencível Homem de Ferro. Já não importa a distinção entre urgente e prioritário, acidental e essencial, valores e oportunidades, efêmero e duradouro. A estética se faz esteticismo. E o que vale é o adorno, a moldura, e não a profundidade ou o conteúdo. Tendemos a ficar reféns da exteriorização e dos estereótipos. Para a pós-verdade, já não cabe o pensamento crítico, e ela abraça a razão cínica como Diógenes a sua lanterna. Prefere, nesse mundo conflitivo, ser espectadora e não protagonista, observadora e não participante, público e não ator. A pós-verdade duvida de tudo. É cartesianamente ortodoxa. Por isso, não crê em algo ou em alguém. Como a serpente Uroboros, morde a própria cauda. E se refugia no individualismo narcísico. Basta-se a si mesma, indiferente à dimensão social da existência. A pós-verdade tudo desconstrói. Seus postulados são ambíguos, desprovidos de raízes, invertebrados e apáticos. Ao jornalismo, prefere o shownalismo. O discurso pós-verdade é labiríntico, descarta paradigmas, e sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar artistas, autores clássicos e arrivistas que alcançaram 15 minutos de fama. A pós-verdade não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Sua visão de mundo é uma colcha de retalhos eivada de subjetivismo. A ética da pós-verdade detesta princípios universais. É a ética de ocasião e conveniência. Camaleônica, adapta-se a cada situação. A pós-verdade transforma a realidade em ficção e nos remete à caverna de Platão, onde as sombras têm mais importância que o nosso ser, e as nossas imagens predominam sobre a existência real. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. O jornalismo, a mentira e as redes sociais