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resistência indígena

Gabriel Boric e a questão mapuche

Boric – O governo de Gabriel Boric, através da ministra do Interior do Chile, Izkia Siches, baixou recentemente decreto impondo “estado de exceção” em toda a região da Araucanía e em duas regiões de Biobío (áreas tradicionalmente mapuches). Isso significa que está autorizado o uso das Forças Armadas para enfrentar os protestos, sabotagens e paralisações de estradas que tem acontecido na região e que tem causado conflitos com os caminhoneiros. O estado de exceção tinha sido decretado ainda em setembro do ano passado pelo governo de Sebastián Piñera e foi bastante criticado pela esquerda chilena. Boric chegou a declarar que não iria estender o decreto, buscando outras formas de resolver os conflitos com as comunidades mapuches. Mas, com essa medida, acabou surpreendendo seus aliados. Segundo a ministra, a medida foi necessária para que pudesse “garantir a segurança dos cidadãos, resguardas as estradas. Permitir o abastecimento e a livre circulação das pessoas”. Ou seja, nada mais do que o mesmo discurso do antigo presidente. A região do sul do Chile vive há anos um processo duro de confronto entre a população mapuche e empresas florestais que exploram terras consideradas sagradas e ancestrais pelos mapuches. Por conta dessa reivindicação de território, comunidades mapuches têm, sistematicamente, realizado mobilizações, sabotagens, queima de máquinas, prédios e greves de fome. Essa luta já levou muitos mapuches para a cadeia e também já causou muitas mortes e havia a expectativa de que o novo governo pudesse encontrar uma saída para o conflito. A população mapuche tem uma história muito sólida de luta na região da Araucanía. Durante a conquista espanhola, foi a única etnia que se manteve livre de ocupação, negociando diretamente com o rei de Espanha e seu território só começou a ser recortado com as guerras de independência do século 19. A balcanização da América baixa inclusive dividiu as comunidades, ficando uma parte no Chile e outra parte na Argentina. Desde aí, a invasão das terras mapuches segue sem parada, mas também a luta tem sido implacável. O novo governo chileno, que se elegeu sob certa aura de “esquerda”, causou espanto ao adotar a mesma medida de Piñera. Boric havia decidido não renovar a medida de exceção, apontando que iria trabalhar com uma “estratégia de diálogo” com os mapuches. Mas, a proposta, muito vaga, não encontrou eco junto aos grupos mais radicais que continuaram trancando estradas, queimando máquinas e sabotando as visitas do executivo. Por outro lado, as forças de centro e de direita, estavam pressionando o governo para dar fim aos conflitos e às manifestações, acusando o presidente de ser cúmplice da violência vivida no sul do país. O fato é que para os mapuches, a violência não tem origem nas comunidades. Ela emana justamente dos invasores das terras, das empresas que hoje usam e abusam do território que é considerado mapuche. Também há na região grupos de narcotráfico e ladrões de madeira que impõem dinâmicas de controle por fora do Estado. Existe ali uma complexidade que não pode ser resolvida assim, na força das armas estatais. Esse tem sido o recurso desde a independência do Chile e nunca deu certo. Por que daria agora? O governo, juntamente com a decretação do estado de exceção, também anunciou a indicação de um fiscal para acompanhar os crimes relacionados ao narco e ao roubo de madeira, a criação de um Ministério dos Povos Indígenas e um investimento de 460 milhões de dólares para melhorar a estrutura e os serviços na região sul. Muito provavelmente essas ações não darão conta do problema visto que nas comunidades mapuches, a decisão do decreto caiu como uma bomba. A Coordinadora Arauco-Malleco (CAM), uma das organizações que têm realizado importantes manifestações, lutas e sabotagens desde a década de 1990 já está convocando para uma resistência armada, caso o exército chegue à sua área. E seus dirigentes também estão ameaçados pelo governo de juízos ou prisões. O mesmo enredo desta triste ópera. Analistas de várias cores no Chile, discutindo o tema nos jornais locais, são unânimes em afirmar que o sistemático problema da violência na região da Araucanía e do Biobío é algo que tem inclusive gerado lucros para muita gente, virou negócio e tem gente graúda metida nisso. Portanto, não é insuflando mais conflito que as coisas vão se resolver. pelo contrário. A presença dos militares no território mapuche, desde sempre foi marcada por uma ação extremamente racializada. Ser um mapuche já coloca o sujeito numa condição de “suspeito”, “criminoso”, “baderneiro”. As ações contra as comunidades acontecem sem que se leve em conta que mesmo entre os mapuches há diferentes grupos e diferentes formas de atuar. A decisão de Boric agora, apenas dá continuidade ao que sempre foi. Discutir as demandas das comunidades indígenas é sempre um desafio para os governos, mesmo os de esquerda. Falta conhecimento da realidade originária e falta capacidade para encontrar soluções fora da caixa. Além do mais, qualquer discussão nesse âmbito significa discutir território e esse é um nó difícil de desatar porque mexe na classe dominante e dita proprietária. No caso do governo de Boric, que nem é de esquerda, mas de centro e vinculado a muitas alianças, já era esperado que não haveria muita novidade no trato das reivindicações da população mapuche. Mas, claro, não se imaginava que a primeira saída fosse militar. Agora, é esperar e ver o desastre. Provavelmente nenhuma proposta que venha do governo será ouvida enquanto houver militares na região fazendo o que sempre fizeram. Nem recursos, nem ministério serão recebidos se não houver uma clara disposição em discutir o território e a autonomia. Espera-se que a esquerda chilena também se levante junto com as comunidades, afinal, quando é para lotar as manifestações “callejeras” os mapuches são bem-vindos, mas quando o tema é terra e propriedade, o mar encrespa. Pedro Castillo e os dramas da política Colômbia se prepara para a eleição de domingo Eleição de Gabriel Boric no Chile traz esperança para a esquerda da América Latina

Povos indígenas reagem aos ataques do novo governo

Os ataques do novo governo aos povos indígenas e a mudança administrativa que joga para a pasta da Agricultura a responsabilidade sobre a demarcação das terras originárias já estão provocando reação imediata das comunidades organizadas e autônomas que sobrevivem e lutam no território nacional. Passados mais de 500 anos da invasão e uma sistemática política de extermínio ainda resistem 305 etnias que ocupam pouco mais de 12% do território brasileiro. A maior parte, quase 90%, fica na Amazônia, um espaço de exuberante floresta no qual as comunidades ainda podem viver segundo sua cultura e, de quebra, garantir a preservação de um bioma que é fundamental não apenas para o Brasil, mas para todo o planeta.  Basta uma olhada nos aplicativos “Google Maps e Google Earth” e imediatamente pode-se perceber que onde tem comunidade indígena tem proteção e a floresta vibra. Onde tem usina ou fazenda, a vida míngua. A Amazônia, por suas características climáticas e ambientais, sempre foi um espaço de difícil ocupação, tanto que até hoje é a região com menor densidade demográfica. Mas, a riqueza de sua diversidade, os minerais e a voracidade da busca por energia (com a construção das usinas hidrelétricas) tem feito com que os olhos se movam cobiçosos para lá. E assim, o latifúndio, que já ocupa com o agronegócio mais de 60% do território, quer abocanhar esses 12% que estão sob a posse dos povos originários.  A intenção do governo, atendendo ao desejo dos fazendeiros, é tirar os indígenas das terras “tornando-os cidadãos”, o que, na prática significa eliminar não apenas seu modo de ser no mundo, como a sua desintegração como ser humano que tem uma cultura própria, visceralmente diferenciada da cultura ocidental judaico/cristã. Seguindo os desejos do capital ultraliberal, os indígenas precisam ser incorporados como força de trabalho nas cidades e nos campos, sem direito a sua própria terra. Mais um episódio de acumulação primitiva que só servirá para destruir o modo de vida dos povos originários. Nessa semana, depois de uma declaração do presidente de que os indígenas que vivem nas terras originárias são como animais em zoológicos, uma carta aberta dos povos Aruak Baniwa e Apurinã deixa bem claro sua posição com relação a essa proposta de torna-los “cidadãos”: Não estamos nos zoológicos, senhor Presidente, estamos nas nossas terras, nossas casas, como senhor e como quaisquer sociedades humanas que estão nas suas casas, cidades, bairros. Somos pessoas, seres humanos, temos sangue como você, nascemos, crescemos, procriamos e depois morremos na nossa terra sagrada, como qualquer ser humano vivente sobre esta terra. Nossas terras, já comprovado técnica e cientificamente, são garantias de proteção ambiental, sendo preservadas e manejadas pelos povos indígenas, promovendo constantes chuvas com as quais as plantações e agronegócios da região do sul e sudeste são beneficiados e sabemos disso. Eles também rechaçam firmemente a ideia de “integração” alardeada pelo presidente: “Já fomos dizimados, tutelados e vítimas de política integracionista de governos e Estado Nacional Brasileiro, por isso, vimos em público afirmar que não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas ações de governo e do Estado Nacional Brasileiro. Esse país chamado Brasil nos deve valor impagável, senhor presidente, por tudo aquilo que já foi feito contra e com os nossos povos. As terras indígenas têm um papel muito importante para manutenção da riqueza da biodiversidade, purificação do ar, do equilíbrio ambiental e da própria sobrevivência da população brasileira e do mundo”. Também nessa semana a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB – entrou com uma representação na Procuradoria Geral da República solicitando o controle judicial da Medida Provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro que passa para a pasta da Agricultura as atribuições sobre identificação, delimitação e registro de terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas. Segundo a proposição da APIB, essa medida afronta o Artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho bem como uma série de outras leis nacionais. A representação também solicita a instauração de um Inquérito Civil com o objetivo de investigar  e monitorar os atos e processos administrativos de demarcação de terras indígenas que irão tramitar no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como apurar eventual responsabilidade administrativa atentatória a moralidade administrativa, a democracia e ofensa de direitos culturais dos povos indígenas, baseada no Artigo.129, inciso V, da Constituição Federal de 1988. Exigem ainda que sejam tomadas medidas urgentes a fim de evitar risco de danos irreparáveis aos povos indígenas pela suspensão e/ou interferência política nos procedimentos demarcatórios, atingidos pelo eventual comportamento da Ministra e seus subordinados. Não bastassem as ações no campo da comunicação e do judiciário, as entidades autônomas de organização indígena já estão preparando ações públicas contra o ataque a sua cultura e as suas terras. Segundo as comunidades, os importantes passos dados após a Constituição de 1988 não podem retroceder. E o Brasil não pode voltar a ter uma prática colonial, tal como a que marcou o etnocídio e o memoricídio pós invasão. Haverá luta. Ministério da Agricultura regulará demarcação de terras indígenas Pelos direitos dos povos originários Mulheres indígenas lutam pelo futuro em Brasília   Terras indígenas são estratégicas contra mudanças climáticas, defende deputada Joenia Wapichana Ministério da Agricultura regulará demarcação de terras indígenas Mineração ameaça terras indígenas Indígenas no Brasil