O Rio de Tarso de Castro

por Marceu Vieira Quem é torcedor de futebol conhece aquele sentimento de vergonha do próprio time depois de um vexame. Não é uma vergonha qualquer. É diferente. Torcedor de futebol, em geral, sabe a diferença entre perder e dar vexame. Vexame é vexame. Não é a mesma coisa. Uma goleada de 7 a 1 numa Copa do Mundo em casa, por exemplo. Pois é com este sentimento diferente de vergonha, depois de um vexame, que, nesta temporada paulistana, eu tenho acompanhado ao que vai no Rio. Assisti outro dia ao documentário “A vida extraordinária de Tarso de Castro”, dirigido pelos gaúchos Zeca Brito e Leo Garcia. O filme me arremessou numa viagem no tempo. Fui parar num certo dia de 1985, quando eu era muito jovem e conheci o Tarso, de quem o filme trata. Eu ainda não tinha concluído a faculdade de jornalismo, ganhava, na moeda da época, 500 e alguma coisa por mês como estagiário da “Tribuna da Imprensa” e morava num quarto alugado em Copacabana. Ia trabalhar de ônibus 464, Maracanã-Leblon, bebia cerveja sozinho no botequim do Raimundo, na Rua Bolívar, e me enchia de crença num Rio e num Brasil feitos de sonho nas vezes em que era escalado pra entrevistas coletivas do Leonel Brizola e do professor Darcy Ribeiro. O Rio era o Rio que eu queria que fosse, o Rio que eu quero que seja, o Rio que talvez nunca tenha sido ou não volte a ser – e eu ouvia o barulho do mar no Posto 6, e eu sentia o cheiro da maconha do Posto 9, e eu me supunha importante por estar no meio dos aplausos dedicados ao pôr do sol em Ipanema, e eu comia chuleta com salada de agrião na churrascaria Plataforma uma vez por mês, quando recebia o salário, e eu ficava ali na Plataforma a duas ou três mesas do Tom Jobim, só pra olhar pra ele com seu chapéu panamá, e eu acompanhava os discursos inflamados dos petistas contra os brizolistas (e vice-versa) nas mesas do Lamas, quase sempre sem poder gastar nada, e eu estava ali. O Tarso existia naquele Rio de Janeiro. Existia imensamente. Era, digamos, o Nabucodonosor no reinado da Babilônia. O Rio era a Babilônia. Um Rio incendiado naqueles dias. Um Rio que recendia a sexo, cigarro e cerveja. Um Rio cheio de esperança, já emergido dos anos de fel da ditadura militar. Tarso era o diretor de redação da “Tribuna”. Havia chegado não fazia muito pra assumir o jornal. Tinha deixado a “Folha de S. Paulo”. No meu imaginário, era um super-herói real, o cara que havia fundado o “Pasquim”, jornal alternativo que tinha sacudido a imprensa e a cidade e o Brasil todo no regime dos generais. Tarso bebia uísque às 9h da manhã na sala de trabalho dele (me ofereceu algumas vezes), diziam que cheirava cocaína a qualquer hora (nunca me ofereceu), tinha todas as mulheres que queria (eu assim achava), parecia um galã de ficção, e era o personagem mais bonito da história dele mesmo – um que nem o Clark Gable tinha conseguido ser na mentira das telas do cinema. A “Tribuna da Imprensa” ficava na Rua do Lavradio, no intestino grosso da Lapa, num tempo em que a noite do bairro boêmio era vazia e escura. Quando consegui meu diploma de jornalista e o registro profissional, o Tarso me chamou à sala dele e, quem sabe mais por afeto do que por merecimento, anunciou que estava me contratando como “o repórter mais bem pago da redação”. Deve ter mentido. Mas acreditei. Era divertido acreditar no que o Tarso dizia. Na vida, ele já havia cometido porralouquices mais graves. Gaúcho de Passo Fundo, Tarso era mais carioca do que o Maracanã – e alguma coisa boa deve ter enxergado mesmo no molequinho de Morro Agudo, que se vestia fora de moda. Era assim que eu me via, um molequinho recém-saído de Morro Agudo, vestido fora de moda. Tarso me apresentou à pérgula do Copacabana Palace, ao Florentino, ao Antonio’s, ao boteco Joia, à vodca com Fanta Laranja, me apresentou até à casa dele, na Rua Faro, no Jardim Botânico – e a festas onde eu via o Caetano Veloso, o Chico Buarque, um monte de gente famosa, um monte de mulheres bonitas, um monte de artistas que eu só sabia da televisão e das fotografias do “Caderno B” do “Jornal do Brasil”. Por falar em “Jornal do Brasil”, o Tarso me convenceu – sem dizer uma palavra, só mesmo pelo encantamento que era trabalhar com ele – a não aceitar um convite pra trocar a “Tribuna” por uma vaga de repórter do “Caderno B”. Naqueles dias, trabalhar no “B” do “JB” era o sonho de quase todo garoto ou garota que saía da faculdade de jornalismo. Era o meu também. Tarso me pautou pra matérias incríveis na “Tribuna”. Algumas “repautaram” a concorrência graúda do “JB”, do “O Globo”, da “Folha de S. Paulo”, do “Estadão” – como os relatos que me mandava escrever “de costas pro palco” do finado Teatro Fênix, da TV Globo, onde o Chico e o Caetano gravavam o programa que levava o nome deles, naquela segunda metade da década de 1980. Tarso só queria que eu prestasse a atenção na plateia de famosos do “Chico & Caetano”, no que aquelas pessoas faziam durante a gravação, no que cochichavam, como reagiam ao que ia no palco. O nome do sentimento que me dominava nos dias de trabalho com o Tarso era felicidade. O nome do que movia e alimentava aquele meu sentimento de felicidade era descoberta. O nome do que eu sinto agora, quando me lembro dele e daquele Rio e disso tudo, é saudade. O jornalismo tinha mais graça. O Brasil tinha mais graça. O Rio, sobretudo, tinha mais graça. Um dia, o Tarso não se entendeu mais com o Hélio Fernandes, dono da “Tribuna”, e pediu demissão. Mas tinha o dom de reconstruir as situações e os prazeres, os dele e os da turma que o seguia,