A inevitável escalada da guerra nas fronteiras russas
por André Márcio Neves Soares […] A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda […] Mia Couto, “O Último voo do Flamingo”. Nos últimos dias, estamos vendo uma guerra que, mesmo ainda localizada, deve mudar os rumos do cenário geopolítico nos próximos anos, quiçá décadas. De fato, a “guerra de demarcação” das novas fronteiras russas contra a Ucrânia extrapola e muito a concretude do horror das imagens. Ela também é simbólica, no sentido de passar uma mensagem ao mundo ocidental sobre seus limites e desejos. Não porque o ditador russo Vladimir Putin queira voltar ao tempo passado da antiga União Soviética (URSS). Ele sabe, mais do que ninguém, que não será possível se reconectar ao outrora paradigma do sistema estatal de governança centralizadora que a Rússia impôs aos seus países satélites na denominada “cortina de ferro”. A própria China, hoje a maior potência econômica do planeta e postulante a maior potência mundial em um futuro próximo, não demanda esse feito. Pelo menos por ora. Então, qual é a real intenção de Putin? É difícil afirmar com certeza, mas podemos ter algumas pistas a partir dos ensinamentos de alguns teóricos. O primeiro deles é Robert Kurz (1943–2012). Esse pensador alemão, crítico ferrenho da modernização capitalista e de seu sistema fetichista de produção de mercadorias, sofreu duras críticas dos seus pares ao apontar o esgotamento do que chamou de “socialismo de caserna”, no que se transformou o modelo estatal soviético (1). Kurz disse: “Nunca houve tanto fim. Com o colapso do socialismo real, toda uma época desaparece e vira história. A constelação familiar da sociedade mundial da época pós-guerra desfaz-se diante de nossos olhos com uma velocidade assustadora” (ob. cit., pág. 13) Assim, para Kurz, a desintegração da União Soviética se deu muito menos porque o ocidente teria vencido a batalha do seu sistema como um todo – político, econômico e social -, mas por conta das contradições internas geradas por uma pretensa “ditadura do proletariado”, que passou a difundir as ideias da propriedade individual e da economia de mercado baseado na concorrência. É por isso mesmo que ele se pergunta, profético, se o ocidente teria tido realmente consciência e autoconsciência do que fez, depois que se proclamou vencedor do conflito entre os dois sistemas ideológicos vigentes no mundo do pós-guerras. Nesse sentido, para Kurz, o próprio ocidente se surpreendeu com a implosão tão rápida do complexo sistema socialista real, justamente por não terem sido as ações políticas ocidentais concretas que conduziram a esse declínio, mas sim “a falha dramática de seus mecanismos de funcionamento internos” (ob. cit., pág. 15). Para ele, o que aconteceu foi uma espécie de colapso histórico, onde duas das forças mais poderosas da sociedade humana, a saber, o Estado e o Mercado (a outra é, sem sombra de dúvida, a Religião), não podem servir de base ontológica primeva da humanidade. Portanto, é a crise da sociedade do trabalho, à qual não nos ateremos nesse artigo, que está por trás da sua metacrítica à derrocada dos países socialistas. Ora, se Kurz entende que a categoria trabalho não é nada supra-histórico, este nada mais é do que a exploração do homem pelo homem, ou melhor, a exploração econômica da força de trabalho humana e da natureza por alguns poucos proprietários dos meios de produção, com motivação única de gerar lucros incessantes. É justamente nessa interseção do lucro, da mais-valia ou do mais-valor, como queiram chamar, que se resume o dilema entre os dois sistemas hegemônicos da era moderna/contemporânea. Em outras palavras, se no sistema capitalista (neo)liberal, o lucro é retido por poucos afortunados, com o Estado servindo de capataz para as elites, no “socialismo de caserna” é o Estado que se apropria desse mais-valor, com as empresas estatais sendo dominadas por um grupo partidário único que planeja o mercado, de acordo com os interesses dos membros mais proeminentes desse partido, os oligarcas. Nesse ponto, é possível destacar que Putin é o membro mais importante e imponente que apareceu na Rússia, depois da deblace do bloco soviético. Não à toa ele está desde 1999 no poder. Ele é o representante máximo da oligarquia partidária que sobreviveu à queda do muro de Berlim e à perda da grande maioria dos países que gravitavam em torno do modelo estatal capitalista do chamado “socialismo real”. Putin sabe que a falha fundamental desse modelo foi, justamente, não conseguir se contrapor à sociedade capitalista da contemporaneidade (pós-modernidade, para alguns). Como diz KURZ: “Desde o princípio, o socialismo real não podia suprimir a sociedade capitalista da modernidade; ele próprio é parte do sistema produtor burguês de mercadorias e não substitui essa forma histórica por outra, mas sim representa somente outra fase de desenvolvimento dentro da mesma formação de época. A promessa de um sociedade pós-burguesa vindoura e desmascarada como um regime pré-burguês e estagnado de transição para a modernidade, como um fóssil de um dinossauro pertencente ao heroico passado do capital” (ob. cit., pág. 25) Por conseguinte, Putin não quer acabar com o ocidente, muito menos com o capitalismo. Pelo contrário, o que podemos apreender até o momento do seu já longo “reinado”, é que ele planeja mesmo se equiparar ao modelo capitalista da China, ou seja, ele projeta uma Rússia novamente forte o bastante para exercer, isso sim, influência crescente nos países ao seu entorno, sem, contudo, absorvê-los. É provável que ele assuma as rédeas do comando da Ucrânia nos próximos dias, mas não para dirigi-lo pessoalmente, e sim através de algum presidente fantoche como o ditador da Bielorússia Aleksandr Lukashenko. Todavia, para tal desidério, ele não pode permitir que os Estados Unidos, através da OTAN, cheguem a sua porta: no caso, a Ucrânia. Destarte, Putin ataca! Ataca não para evitar o neoliberalismo – ele próprio já declarou que não quer a Rússia fora do sistema de compensação global chamado “swift” -, mas para mantê-lo nas suas fronteiras, de acordo com os seus interesses e de seus amigos, ou comparsas, … Continue lendo A inevitável escalada da guerra nas fronteiras russas
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