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Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo?

O jornalismo nunca foi e nem pode ser 100% isento ao produzir uma notícia. A afirmação pode chocar muita gente, inclusive profissionais do jornalismo, mas ela espelha uma realidade que raramente é levada em conta no julgamento de uma informação. Isto porque o uso de processos digitais no jornalismo relativizou o conceito de isenção permitindo uma maior diversificação nas notícias, o que ampliou muito o universo informativo das pessoas.

 ideia de que o jornalismo é, por princípio, isento foi construída a partir de uma motivação financeira que nada tem a ver com o exercício da profissão. No final do século XVIII os grandes barões da imprensa norte-americana, Joseph Pullitzer e Randolph Hearst distorciam e falsificavam notícias com o objetivo de conquistar leitores numa guerra feroz por audiências e por faturamento em publicidade. Foi o período áureo da chamada “imprensa marrom” ou sensacionalista, que após 20 anos deixou como saldo uma desconfiança generalizada de parte do público norte-americano em relação aos grandes jornais.

A queda dos índices de leitura assustou tanto Pullitzer como Hearst, bem como os donos de outros jornais e até mesmo os políticos, o que levou a imprensa a tentar reverter a situação ao levantar a bandeira da imparcialidade nas coberturas jornalísticas. Foi um maciço esforço de marketing corporativo apoiado pelas elites políticas e empresariais, iniciativa que acabou levando a incorporar o tema da isenção nos manuais jornalísticos usados até hoje.

Mas com a generalização do uso das tecnologias digitais na produção de informações, surgiu a avalanche noticiosa e com ela a multiplicação de versões diferentes de um mesmo dado, fato ou evento, produzidas por jornalistas e não jornalistas, através de redes sociais. O fato de jornalistas, supostamente isentos, estarem publicando notícias diferentes sobre um mesmo evento tornou evidente algo que os pesquisadores do conhecimento já conheciam há muito tempo.

Todo indivíduo capta dados, fatos e eventos da realidade que o cerca através dos seus cinco sentidos. Estes dados são depois inseridos na memória individual onde cada pessoa desenvolve percepções e opiniões, que variam de indivíduo para indivíduo dependendo do seu nível cultural, experiência de vida, grau de informação e situação econômica para citar só os fatores mais importantes. Assim, qualquer notícia é o resultado da recombinação mental de vários dados captados pelo jornalista, dando origem a um conteúdo que incorpora a visão de mundo do profissional.

O conceito tradicional de isenção ou imparcialidade no jornalismo foi alterado também por mudanças provocadas pela digitalização no processo de produção das notícias. Até agora, elas resultavam basicamente do trabalho de um grupo restrito de profissionais, mas na era digital o tradicional muro separando o jornalismo da publicidade está começando a cair. Trata-se de uma alteração de rotinas que ainda prevalece nos grandes veículos, mas que aos poucos começa a ganhar espaço na imprensa local e regional.

Engajamento, a nova palavra mágica no jornalismo

O jornalismo na era digital está incorporando às suas rotinas a preocupação com o engajamento social, ou seja, desenvolver uma crescente relação de interatividade entre jornalistas e o público. Os profissionais já não assumem mais a postura de quem sabe o que as pessoas precisam saber, mas buscam nelas os temas e a orientação sobre o que deve ser noticiado e como. O engajamento é cada vez mais visto como uma ferramenta indispensável na produção de notícias que incorporem diferentes versões e, até mesmo, no desenvolvimento da sustentabilidade financeira de um veículo digital.

Este mesmo princípio começa a ser aplicado no relacionamento das redações com um tipo especial de público formado por possíveis anunciantes. No Canadá, Suécia e Austrália já existem jornais locais online que mantêm uma relação permanente de troca de informações com empresários locais, anunciantes ou não. As experiências ainda não permitem avaliações definitivas, mas artigos publicados por revistas acadêmicas revelam que os empresários que aceitaram um diálogo com as redações passaram a contribuir com dados e fatos para conteúdos jornalísticos.

Já os jornalistas envolvidos nestas experiências, adotaram a transparência total nos contatos e informações fornecidas por eventuais anunciantes como forma de manter a autonomia editorial sem comprometer a credibilidade junto ao público. É o caso do Sopris Sun, da cidade de Carbondale, no estado norte-americano do Colorado, cuja associação comercial local mantém reuniões mensais com a redação para troca de ideias sobre problemas da cidade e sobre a responsabilidade dos empresários na sustentabilidade do jornal.

Na nova realidade digital, a imparcialidade passa claramente a ser vista como uma meta e não mais como um atributo intrínseco de uma notícia. As ciências da cognição, sobre as quais se baseia o contato do jornalista com a realidade, atestam que a busca da isenção e da objetividade são objetivos permanentes, mas inalcançáveis em sua plenitude. Isto muda muita coisa no jornalismo atual. A maior delas é a necessidade de ter que abandonar dogmas como o da isenção no exercício da profissão.

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