Brasil não está quebrado – é a austeridade que sufoca a economia

Austeridade – A falsa alegação de que o “país está quebrado” usada por Bolsonaro faz parte do terrorismo fiscal semeado pela mídia há anos para naturalizar cortes no orçamento e precarizar o serviço público. Entretanto, a pandemia deixou claro que a austeridade não passa de uma cloroquina econômica liberal. “O Brasil está quebrado, chefe. Eu não consigo fazer nada.” A declaração de Bolsonaro tem raízes profundas no discurso econômico construído nos últimos anos.  Diariamente entram nos lares brasileiros análises econômicas que apelam para o lugar comum. Economistas, usualmente homens brancos, nos dizem que o governo deve colocar ordem na casa e que, assim como uma família, deve apertar o cinto nos momentos de crise. Análises que carregam uma carga moral para exaltar o comportamento associado ao rigor, à disciplina, aos sacrifícios, à parcimônia, à prudência, à sobriedade e reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários. Discursos que não apenas simplificam o funcionamento da economia, mas falsificam: trata-se da retórica da austeridade que transpõe, sem adequadas mediações, supostas virtudes do indivíduo para o plano público, personificando, atribuindo características humanas ao governo.   Austeridade é mantra político, insistência ideológica, base de um discurso que busca interditar o debate econômico com afirmações do tipo “se não fizer a reforma tal, o Brasil vai quebrar”, “se flexibilizar o teto de gastos teremos depressão econômica” e “se aumentar o gasto público voltaremos à hiperinflação”, dentre outras. Trata-se de terrorismo econômico, ameaças que criam um clima de medo para coagir a aceitação de uma determinada agenda econômica pela opinião pública. No Brasil, a austeridade fiscal foi vendida como uma fábula da cigarra e da formiga. O argumento moral aponta que os excessos devem ser remediados com abstinência e sacrifícios. Esses excessos têm várias faces – aumentos de salário mínimo, gastos sociais, intervencionismo estatal e até a Constituição de 1988 – e o remédio tem nome: austeridade. E o país vem se tratando com esse remédio que não tem eficácia comprovada e apresenta efeitos colaterais, como uma cloroquina da economia. Argumenta-se que os cortes de gastos vão recuperar a confiança e assim o crescimento e que as reformas econômicas que reduzem o papel do Estado encurtam esse caminho. Mas as reformas são realizadas e a crise continua e, não obstante, realimenta o discurso: enquanto houver crise haverá uma reforma adicional que supostamente vai gerar crescimento. Pandemia fragiliza os dogmas Durante a pandemia, a ideia de austeridade fiscal entrou de quarentena, vários mitos caíram por terra e dogmas foram deixados de lado diante de uma realidade impositiva. Em poucas semanas, o gasto público passou do grande problema do Brasil para a principal solução. Na retórica de alguns, o Estado que estava quebrado ficou solvente e o dinheiro, que tinha acabado, reapareceu. Assim, durante a pandemia, a crise postergou o debate sobre as reformas e criou um quase consenso entre os economistas de que é preciso gastar com saúde, assistência social e apoio às empresas e trabalhadores. No entanto, o aumento da dívida pública resultante da atuação pública na pandemia é o pretexto perfeito para a intensificação do discurso da austeridade a partir de uma ideia que dialoga com o senso comum: teremos que pagar a conta da pandemia. Um momento propício para o que Naomi Klein chamou de “doutrina do choque”, uma filosofia de poder que sustenta que a melhor oportunidade para impor as ideias radicais é no período subsequente ao de um grande choque social. Mais uma vez, o apelo ao senso comum é uma falsificação da realidade: não existe uma conta da pandemia a ser paga. A dívida pública não precisa ser reduzida. Papéis serão pagos, outros serão emitidos. Esse é o padrão do comportamento das dívidas soberanas: dívida pública não se paga, se rola. Isso vale para as experiências históricas de grande endividamento público, como na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, quando a dívida pública chegou a 250% do PIB. Essa dívida foi rolada e se reduziu ao longo do tempo em relação ao PIB em um ambiente de alto crescimento e juros baixos. E essa redução não passou por nenhum plano de austeridade, pelo contrário, no pós-guerra o país realizou uma ampla expansão dos gastos públicos que construiu o Estado de bem-estar social, o que também ocorreu em outros países que saíram endividados da guerra. Governo não são famílias O Brasil precisa desbravar o seu caminho para a reconstrução e sair do atoleiro da crise, do desemprego estrutural e da piora sistemática dos indicadores sociais. Nessa direção, a austeridade é contramão. E a tentativa de forçar uma redução da dívida pública por meio de cortes de gastos será tão inconsequente socialmente quanto inútil do ponto de vista fiscal. Como mostra Mark Blyth, cientista político e professor de economia política internacional na Universidade de Brown, no livro Austeridade – A Historia de uma Ideia Perigosa, há um problema de composição nesta falácia que vai de encontro ao senso comum: se formos todos austeros ao mesmo tempo a economia desaba para todos. O gasto público é renda do setor privado, a dívida pública é ativo e o déficit público é superávit do setor privado. Ao gastar, o governo aumenta a renda do setor privado e realoca recursos. Ao se endividar, o governo pega dinheiro de quem tem riqueza sobrando e entrega um papel de dívida. Quando a economia opera abaixo de sua capacidade, com desemprego, o gasto público pode melhorar a eficiência do sistema e aumentar os recursos do conjunto da sociedade. O desemprego é um desperdício de recursos sociais, além da violação do direito humano ao trabalho e de um fator de agravamento das desigualdades sociais pré-existentes. Se o mercado não garante o emprego, o Estado deve ajudar por meio da política fiscal. Portanto, a metáfora que compara os orçamentos público e familiar é dissimulada e desvirtua as responsabilidades que a política fiscal tem na economia em suas tarefas de induzir o crescimento e amortecer os impactos de crises e dos ciclos econômicos na vida das pessoas. Mito da austeridade expansionista Como afirma Mark Blyth, … Continue lendo Brasil não está quebrado – é a austeridade que sufoca a economia