Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

O jornalismo é uma forma de ativismo?

por Carlos Castilho ATIVISMO – Os manuais de redação respondem a pergunta com um rotundo e enfático não. Mas a realidade e o quotidiano dos jornalistas mostram o contrário. Há um ativismo jornalístico na defesa da democracia, da não violência, da igualdade de gênero e na condenação à discriminação racial, religiosa e cultural. Então porque o discurso oficial das empresas jornalísticas e dos manuais que normatizam a atividade jornalística diz justo o contrário? A explicação deste procedimento se baseia na controvertida teoria da objetividade jornalística na produção e publicação de notícias, o que garantiria à imprensa uma também controvertida isenção na abordagem de dados, fatos e eventos. A ênfase no discurso da objetividade e isenção procura relegar para um segundo plano a questão da militância da imprensa, claríssima quando ela defende intransigentemente a liberdade de informação, por exemplo. Ao diferenciar o ativismo em defesa de uma imprensa livre do ativismo contra a desigualdade social e econômica, a imprensa faz uma opção política. Não se trata mais do questionamento do ativismo com postura, mas do tipo de ativismo que está em questão. Portanto, a defesa da democracia, da não violência, da igualdade racial, religiosa e de gênero configura um ativismo tão politico quanto o da promoção da transparência nos negócios públicos, no combate ao agravamento da desigualdade social, na denúncia do autoritarismo e da beligerância. Ao tratar a questão do ativismo jornalístico, a imprensa assume discretamente uma diferenciação entre um ativismo “bom”, o dela, e um ativismo “condenável”, praticado por aqueles que pensam e agem fora dos padrões ideológicos predominantes nos grandes conglomerados empresariais do ramo da comunicação.   Acontece que a diferenciação entre bom e mau não consegue mais explicar a maioria dos fenômenos sociais, da mesma forma que o conceito de objetividade está sob forte questionamento. Há um crescente consenso entre os pesquisadores no campo do jornalismo e da comunicação, de que a objetividade absoluta não existe. Uma notícia é sempre o produto da visão pessoal do repórter que, ao produzi-la, inevitavelmente incorpora elementos cognitivos localizados em sua memória de curto e longo prazo. O mito da objetividade Mesmo que quisesse, um repórter não pode produzir um texto capaz de funcionar como uma “fotografia” objetiva da realidade observada por ele. Inclusive os fotógrafos não conseguem fazer isto porque a imagem final reproduz o ângulo escolhido pelo profissional. Ele seleciona o tipo de imagem que vai fotografar de acordo com suas preferências e preocupações pessoais ou da empresa para a qual trabalha. Não há objetividade absoluta na imprensa, porque o jornalista, como qualquer ser humano, tem uma percepção própria da realidade. A maneira pela qual percebemos o mundo que nos cerca pode ser muito parecida com a de outras pessoas. Mas nunca será igual porque somos diferentes em matéria de formação intelectual, experiência histórica individual, nível de conhecimentos , estrutura familiar, atividade econômica, condição social ou poder aquisitivo. Tudo isto influencia nossa percepção da realidade e consequentemente a forma como vamos reproduzi-la em texto, áudio e imagens. Como somos todos ativistas porque defendemos causas e se há diferentes formas de ativismo, então todos os ativismos são justificáveis e consequentemente respeitáveis. O diálogo entre iguais é a única forma de lograr uma convivência entre diferenças, que são inevitáveis e sempre existirão. Mas quando se trata de defender privilégios e vantagens, descola-se o ativismo do seu contexto para acomodá-lo aos interesses setoriais e individuais. Aí o confronto é inevitável. É o que estamos vivendo hoje em dia. Mas a culpa não é do ativismo, mas sim da incapacidade ou decisão de não entendê-lo como um fato normal em nossa sociedade. O jornalismo, como um serviço de utilidade pública, sempre será uma forma de ativismo. LEIA OUTROS TEXTOS DE CARLOS CASTILHO EM https://medium.com/@ccastilho A resistência de jornalistas na ditadura

Jovens para sempre ou a danação da juventude

por Albenísio Fonseca Filhos de casais separados ou de mães solteiras como chefes de famílias, boa parte dos jovens brasileiros são verdadeiros rebeldes sem causa ou, paradoxalmente, cheios delas. Esta juventude – e considere-se aqui uma faixa etária entre 15 e 27 anos – foi tolhida em algumas das suas mais vitais capacidades para oferecer contribuições eficazes, seja na resolução de suas vidas, seja no próprio desenvolvimento da sociedade brasileira. Embora “ser jovem”, diferentemente da adolescência (dos 12 aos 18 anos), refira-se a um período não necessariamente delimitado pela idade, trata-se de grupo geracional no qual estão inseridos valores bem próprios, mas que compreende outros fatores relacionados a intensas transformações biológicas, psicológicas, sociais e culturais, que variam de acordo com as diferentes classes sociais, culturas, épocas, etnias, gênero, dentre outros determinantes. Nascida em meio a crises econômicas, sob o signo da Internet e de uma “Constituição Cidadã”, essa geração tem como parâmetro em termos comportamentais certa indignação, mas vive em uma distância abismal entre a representação ideal da juventude e as diversas realidades em que se encontra a maioria dos jovens do Brasil. É visível – como se diria de saltar aos olhos – o quanto para os jovens negros e pobres resta o estigma da marginalidade e associação à violência e criminalidade. Para os demais, prevalece certa ótica progressista, embasada na ilusória liberdade individual. Seguem com direito às políticas de cotas, ao extraordinário acervo de informações do repertório global da humanidade, mas é fascinada apenas pelos tipos moldados pelo sistema cíclico da moda e da mídia. Como seres emblemáticos da Civilização da imagem, odeiam a leitura. Há perguntas sem respostas imediatas: Os tempos de mudança estariam de volta, quer a história repita-se (como farsa, tragédia) ou não? Há uma nova onda reativando as cabeças, redimensionando as aptidões? O certo é que, para a maioria dos que transitam nessa geração, quase não há mais tempo para reflexão e sim para respostas na ponta da língua, ainda que não percebam o quanto entrar na vida é ter que dar respostas ao fato de estarmos inseridos num gênero, numa cultura, numa classe social, num regime político e determinado sistema econômico. E a crise, cultural antes de ser política, mais pessoal que do campo das ideias, mantém-se como inescapável expressão das individualidades. O sistema fascina seus olhos, narinas e bocas com a glamourosa tentação de que se adapta aos seus desejos, quando na realidade são todos os seus desejos que se adaptam perfeitamente aos ditames das regras sociais, à voracidade do capitalismo e seu apetite de avestruz. Sim, fazendo-os ingerir a Coca-Cola com casco e tudo no burburinho dos fast foods. A juventude made in Brazil, tende a encarar a existência muito mais como “suporte” do que como linguagem desde a primeira década do século 21. Corações e mentes tatuados em invólucros de games, celulares, amizades via redes sociais, no cuidado excessivo com a aparência e sob o desejo de replicar tudo o que seja sucesso, seguem pelos “shoppings” preocupados com o que transcorre nas novelas da vida de personalidades estampadas na mídia. Nesse jogo de espelhos, não é tanto a busca de identidade quanto a de uma imagem o que os jovens pretendem discernir, na superfície áspera da sociedade de consumo com seus dedos pegajosos. Poucos buscam investir na tarefa de suscitar a si próprios enquanto experimentação social. Assim, a velocidade da modernização econômica e a ênfase no imediatismo têm gerado o que se pode supor como um novo conteúdo para a representação social da experiência de “ser jovem”. A questão da juventude será sempre um tema em evidência. Mais que um blábláblá, o que permanece em toda polêmica sobre o tema é uma ira quase incontível. Sim, em meio à dificuldade de esboçar um raciocínio, formular pensamentos lógicos e escrever com sintaxe e semântica corretos, tampouco demonstram buscar qualquer sentido para a existência além de um exibicionismo qualquer ditado pela indústria cultural. Como se disséssemos sobre objetos mais do que sobre sujeitos em uma sociedade de consumo ostentatória. Longe das escolas, as primeiras hordas lotam as ruas e casas de recolhimento. A violência, as drogas, a falta de empregos e de políticas públicas, um ensino caótico, são obstáculos a serem transpostos. Que as propostas de retomar o debate sobre a condição da juventude, seja em Salvador ou qualquer outra cidade brasileira, sejam bem mais que um retoque no batom ou um filete de sangue a escorrer das esquinas das nossas faces. Publicado originalmente no Blog do Albenísio. Um caso de bullying no Recife  

A morte de Marielle e outras mortes

por Marceu Vieira Quando eu era criança, lá em Morro Agudo, sempre que alguém era assassinado, e volta e meia isso acontecia, a mãe da gente limitava ao quintal de casa a área pra criançada brincar. A rua, o campinho, o beco, tudo mais além do portão se tornava zona de grande perigo, segundo elas. Até que o medo se dissipasse, a vida geral prosseguisse, elas, e sobretudo nós, garotos e garotas criadxs de pés descalços naquelas ruas de barro e poeira, enfim, a gente ficava confinado ao quintal até que todo mundo se esquecesse do grande perigo cotidiano, e o campinho, o beco, tudo mais além do portão voltasse a ser ocupado pela nossa pelada de futebol, por nossas bolas de gude, por nossas amarelinhas, nossas brincadeiras de pique-lateiro, nossos jogos de queimada e bandeira, por nossas linhas de pipa. Com a vereadora Marielle, ali na Favela da Maré, onde ela cresceu, deve ter sido assim também. Desde aqueles dias da infância em Morro Agudo, eu sei identificar som de tiro. Desde aqueles dias, eu associo barulho de tiro a morte. Desde aqueles dias, eu ouço adultos, como o que eu mesmo me tornei, perguntarem: “Até quando?” O extermínio da Marielle, menina criada num ambiente semelhante ao meu, inspirou de novo a pergunta renitente, que ela mesma havia feito dias antes de ser assassinada, ao lamentar a morte do menino Matheus Melo, de 23 anos, no Jacarezinho, depois de sair de uma igreja evangélica: “Até quando?” Até quando a gente vai ter de perguntar “até quando”? A audácia de criminosos como os que executaram a Marielle e o motorista Anderson não é tão incomum no Rio. Não faz um mês, um carro com atiradores passou pela Praça São Salvador, àquela hora da noite lotada de jovens de classe média e classe média alta, e de suas janelas saíram tiros que mataram duas pessoas. Não é preciso lembrar muitos exemplos. São vários. Estão na memória de todo mundo que vive ou se informa do que vai no Rio. Mas sempre que tragédias assim acontecem, nós, que conhecemos a temperatura do caldeirão da cidade, pensamos mais ou menos assim: “Ah, isso é algo fora da curva, não pode pesar na percepção de insegurança, na violência nossa de cada dia.” E aí seguimos. Ocorre que, ultimamente, o Rio inteiro é um fenômeno social fora da curva. Como pode uma terra tão bonita ser submetida ao jugo de criminosos de um lado civis, de outro fardados, ambos militarizados, sem que nada estruturalmente maior seja feito pra evitar a continuação desse estado de horror no futuro? Como pode uma cidade apelidada de “maravilhosa”, guardada ao Norte pelas montanhas, ao Sul pelo mar, seguir adiante tão infernizada por políticos cafajestes, policiais sem decência, milicianos impunes? O que houve de tão grave, gerações atrás, que resultou nesse estado de guerra em que a gente, apaixonado pelo Rio, vive? A asneira da intervenção militar, confrontada com a execução da Marielle e do seu motorista, confrontada com o extermínio na Praça São Salvador, confrontada com o assassinato do garoto Matheus no Jacarezinho, confrontada, enfim, com a nossa ração diária de barbárie, foi só isso aí mesmo, uma asneira, uma jogada política pra acalmar os ricos e dar satisfação a uma classe média que sempre escolhe o lado errado. A culpa dos assassinatos da Marielle, do motorista, do jovenzinho Matheus, a culpa dos tiros na São Salvador, a culpa desses e tantos outros crimes que aniquilam o Rio é muito anterior ao último carnaval, à contusão do Neymar, ao golpe do Temer, à plástica da Anitta e até à gravidez da Xuxa. Se a elite econômica e, sobretudo, intelectual brasileira tivesse ouvido Darcy Ribeiro quando ele disse, no início dos anos 1980, que, se não construíssemos escolas, faltariam cimento e terrenos pra erguermos presídios no futuro, se o aviso dele fosse ouvido, se a autofagia das esquerdas daquele tempo não tivesse servido de alimento pro ódio da classe média que elegeu Moreira Franco governador fuleiro do Rio em 1986, se o professor Darcy não fracassasse na sua tentativa sincera e inglória de convencimento, três ou mais gerações estariam salvas agora – e a Marielle, talvez, estivesse viva. Talvez a mobilização tão bela e tão triste que tomou a Cinelândia na quinta-feira à noite, e ainda toma o Rio e o Brasil todo, talvez ela fosse outra. Talvez. Certamente, a Marielle estaria lá. Publicado originalmente no Blog do Marceu Vieira. O uso político da informação na cobertura do assassinato de Marielle Franco Carta ao general Braga Netto

Capitalismo é religião?

por Frei Betto O capitalismo é uma religião? Parece que sim. O Vaticano fica no FMI e no Banco Mundial, cujas ordens dali emanadas devem ser religiosamente respeitadas. Roma, em Wall Street. O papa, o presidente do Federal Reserve Bank, banco central dos EUA. O apóstolo Paulo, Adam Smith. Entre seus teólogos se destacam Locke, Keynes, David Ricardo, Hayek e Friedman. A teologia, o liberalismo. O deus, o Mercado, cujas mãos invisíveis regulam as nossas vidas. Meca fica em Davos. Todos os anos cardeais e bispos devem peregrinar até a cidade suíça para acertarem seus relógios. Suas basílicas, as Bolsas de Valores, para as quais se voltam atentos olhos, corações e bolsos dos que ali depositaram seus dízimos. As capelas, os bancos, que prometem operar o milagre da multiplicação das moedas confiadas às suas mãos. Seu dogma de fé proclama que fora do mercado não há salvação. O céu, a riqueza; o purgatório, as dívidas; o inferno, a falta de crédito e a exclusão social. Nas notas de dólar, está gravado In God we trust (Em Deus confiamos). Houve pequeno erro de grafia. A frase correta é In Gold we trust (No Ouro confiamos). Trata-se de uma religião canibal. Apropria-se até mesmo de Deus ao apregoar que Ele criou o mundo desigual, para que os ricos sejam generosos com os pobres, e estes lutem meritoriamente por seu lugar ao sol. O que seria dos pobres se os ricos não lhes dessem empregos e pagassem o salário que lhes assegura a sobrevivência? Seus santos, venerados por gerações, são Rothschild, Rockfeller, Ford, Bill Gates, Mark Zuckerberg e tantos outros afortunados. A teologia é disseminada mundo afora pelas confrarias GM, Sony, Coca-Cola, Nestlé, Apple e muitas outras marcas famosas. Quem é fiel a elas alcançará a felicidade, prometem os arautos da fé financista. O Santo Ofício são as agências de risco que aprovam ou desaprovam as nações interessadas em investimentos. O catecismo, as obras de Walt Disney, que ensinam às crianças como ser resignadas como Donald, sovinas como Tio Patinhas, imbecis como o Pateta. O capitalismo aponta os demônios dos quais todos os fiéis devem se manter distantes, como o socialismo e o comunismo. Seu L’Osservatore Romano são o Wall Street Journal e The Economist. Enquanto o cristianismo prega a solidariedade, o capitalismo incentiva a competição. O cristianismo recomenda o perdão, o capitalismo a desapropriação. O cristianismo, a partilha; o capitalismo, a acumulação. O cristianismo, a sobriedade; o capitalismo, a ostentação. Nas grandes cidades erguem-se as catedrais desta religião de culto ao dinheiro: os shopping centers. Nele, os fiéis do consumismo se deslumbram diante das sofisticadas capelas que, acolitadas por belas sacerdotisas, exibem os veneráveis produtos dotados do miraculoso poder de imprimir valor a quem os adquire. Aqueles que cometem o pecado de acreditar em ética, compaixão, partilha e justiça, a religião capitalista, que sacrifica no altar do deus Dinheiro a vida dos pobres para assegurar a dos ricos, condena ao limbo dos excluídos do festim dos eleitos. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. https://urutaurpg.com.br/siteluis/a-ditadura-teocratico-miliciana-o-sonho-do-evangelismo-monetario-no-brasil/ O sacrifício dos cordeiros

Não acredito, pai

Não acredito, pai Que pela primeira vez na vida Decidiu me dar banho Mas porque só agora Quando a mamãe saiu? Não acredito, pai Que vai me vestir com a saia Que a mamãe disse curta demais Aonde aprendeu fazer tranças, pai? Estou feliz, vamos observar a lua Logo você, que mal para em casa Está sempre dormindo E sem tempo pra mim Hoje me chamou de “minha bebezinha” Está tão amoroso, pai Mas ainda é estranho Porém, não posso desperdiçar Um momento único com meu pai Queria que a mamãe também estivesse Mesmo com você dizendo ser um programa De pai e filha Eu com treze anos Não tão velha para sentar em seu colo A saia curta subiu demais “É só seu pai que está aqui, fique tranquila” E ao ver a bela lua cheia Ouvi seu zíper abrir Senti algo duro encostar em mim E ao tentar olhar para trás Você força minha cabeça para frente “Continue olhando a lua, amor” Ele suspira e geme Não quero acreditar no que estou passando “Continue, minha bebezinha” Eu choro, desesperada Sinto um jato quente no meu bumbum E corro para o quarto Com o esperma do diabo na saia Tomo banho como quem não toma há anos Com intenção de me limpar do ocorrido Mas ainda estou suja Estou imunda E estarei até minha morte Porque você sujou minha alma, pai Sua missão era me amar Por que falhou tão miseravelmente? Era pra você me proteger Dos lixos que vou encontrar na vida E não ser deles o pior e mais medonho (…) Já não consigo mais olhar para a lua Mesmo que tão linda Me faz lembrar daquele jato Do gemido Do membro podre dele tocando em mim E só agora, depois de 6 anos Minha mãe soube Descobri que minha mãe foi estuprada Violentada por ele Quando era moradora de rua “Me desculpa, filha Ele tinha condições Para cuidar de nós Mas se eu soubesse Que ele seria capaz disso Permaneceria na rua” Desculpa, mãe Por ter nascido do que te machucou Me desculpa por usar aquela saia Me desculpa por existir E ser tão apaixonada por família Ser carente de afeto Querer a presença de um pai E não fazer nada para impedir seu pranto Arruma as malas e vamos nos reinventar Deixa o diabo viver sozinho Porque mãe, vou te dar uma vida de rainha As mágoas estão pesadas Muito mais que as malas Mas juntas, conseguiremos carregá-las Pode ser num quarto barato Numa pensão fedida Ou até na rua mesmo Mas vamos embora daqui E voaremos Em busca da alegria que nunca tivemos Em busca da alegria que é nossa por direito Em busca dos nossos sorrisos. Leia outros textos de Juliane França em seu blog: http://meussentimentosereflexoes.blogspot.co Do país dos “direitos humanos”

Brizola: “julgamento de Lula foi um teatro”

por Marceu Vieira Em nova alucinação, o cronista digital voltou a entrevistar sua lembrança de Leonel Brizola – desta vez, no dia da condenação de Lula em segunda instância.  Governador, daí onde está agora, o senhor acompanhou o julgamento do Lula? Sim, Romeu. Eu, de cá onde estou, a tudo assisto e tudo ouço. Vi tudo isso com grande apreensão e tristeza. Francamente, sinto muita tristeza. Este velho coração, já parado, ficou mais engelhado, tu podes acreditar. Vi tudo isso, principalmente, com a preocupação de quem não pode mais estar aí para manifestar a sua indignação. Por isso, mais uma vez, pedi permissão aos líderes do universo, que um dia tu, que és novilho precoce, também saberás quem são, para acompanhar mais esse calvário, que não é só do Lula, creias, mas de todo o povo brasileiro. Pedi permissão também para dizer através de ti, novilho precoce, como tantos que aí vejo, algumas palavras. Novilho precoce? Tu me perdoes. Não te ofendas, Orfeu. Novilho precoce é aquele abatido quando ainda não completou 30 meses. É como vejo os sonhos da tua geração. A tua geração foi abatida em tantos sonhos desde que esses facínoras, não é verdade?, se aferraram ao poder no fim da ditadura. Deu-se, então, a ditadura econômica, comandada por esses filhotes da ditadura militar. Houve a vitória do povo com Lula, depois com a dona Dilma, mas, no fundo, tisc, no fundo, eles, os facínoras, estiveram sempre ali, de prontidão, o tempo todo, comandando os carreiros com suas varas finas, a guiar a boiada rumo ao abatedouro da ditadura econômica. Francamente, acredito que o PT, num dado momento, achou que a fatura já estava ganha e deu rédeas a esta gente. Eu sinto pena de ti e de tantos novilhos precoces abatidos em seus sonhos. E sinto, sobretudo, creias, uma profunda dó do Brasil. O julgamento do Lula foi injusto? Só a maldição do Coisa Ruim poderia fazer alguém, em sã consciência, acreditar que o que se passou com o Lula transcorreu de uma maneira limpa e justa. Francamente! Lula, vá lá, cometeu por aí os seus equívocos. Pecados veniais. Francamente, Lula costeou o alambrado algumas vezes, e até ultrapassou a cerca em ocasiões importantes, fazendo festa de cusco interessado num naco de carne, ou mesmo cegando os olhos para os donos do poder econômico e político, que ameaçavam a sua governabilidade. Mas, a rigor, não vejo em nada um crime que justifique esse calvário imposto pelo juiz Louro ao ex-presidente. O senhor fala do juiz Moro? Alfeu, perdoes este velho já morto, que vem de longe, e ainda não se habituou ao nome do magistrado. Mas, francamente, com todo o respeito aos louros, ele, o juiz, está mais para Louro, a ave, não é verdade?, aquela que reproduz o que o dono repete e não pensa nem sabe o que diz. Só reproduz o que lhe ensinam na repetição. O juiz Moro estaria a serviço de que dono? Francamente, a rigor, não vejo de outra forma. Ele, o Mouro, não parece ter a virtude da isenção, que se presume que os magistrados devam ter. Está claro, nas suas decisões, a quem ele serve. Veja como ele se comporta com os do lado de lá! Chega a ser perigoso para o Judiciário ter o destino do Brasil nas mãos desse jovem juiz, cujo objetivo, a mim me parece, é apenas o de esmagar Lula e suas possibilidade de retorno à Presidência. E a quem interessa que Lula esteja fora da peleja?! Não sei quais são as convicções políticas do meritíssimo, o que ele supõe como país ideal para os seus filhos. Mas se tem rabo de jacaré, dente de jacaré, couro de jacaré, só pode ser jacaré! Vejo essa artilharia contra o Lula diferente do bombardeio daquele cantor, por exemplo, o Tigrão, francamente, que ataca, ataca, ataca com sua língua afiada, e nada propõe para pôr no lugar do que deseja desconstruir. Essa gente a que o juiz Louro serve sabe muito bem o que quer perpetuar. Quem é esse Tigrão, governador? O cantor… Eu não saberia classificar. Funkeiro talvez não seja. Acho que é do iê-iê-iê, uma espécie de astro do iê-iê-iê brasileiro, que anda apartado da grande mídia. Ele tem uma música que admiro, que diz: “A vida passa na TV.” Nem sempre a vida real passa na TV. Mas este verso desse Tigrão, na verdade, diz um pouco do meu sentimento. Governador, não seria Lobão? Sim, é esse. Peço perdão a ele pelo meu engano, Aristeu. Marceu, governador. Ah, quanto a ti, já me desculpei muitas vezes. Sempre troquei teu nome. Tu me desculpes, Marcel. Mas deixe-me concluir. O juiz não é como esse Tigrão, que expõe seu desejo de demolir tudo isso que aí está sem oferecer uma alternativa capaz de estancar o sangue do povo brasileiro. Tu sabes que eu também jamais morri de amores pelo Lula. Há questões fundamentais nas quais divergimos ao longo de toda a minha passagem por este plano. Mas não vejo no Brasil alternativa melhor neste momento do que o Lula. O povão humilde, as nossas crianças de pés descalços e canelas ruças, as mulheres oprimidas, os nossos irmãos negros, quem melhor para olhar por eles? Penso que esse seja o Lula. Por isso, os interésses econômicos o temem tanto, porque querem o leite da vaca só para si! Quem melhor para estancar as perdas internacionais que mantêm tudo isso que aí está?! No meu entendimento, honestamente, o Lula. Governador, o presidente Temer disse que… Um momento, Argeu! Tu me desculpes interromper. Não quero falar desse Temer. Esse Temer, a rigor, não é nada! É um rito de passagem, um bonecão do posto, não é verdade?, tu me entendes, um bonecão do posto que está ali, tisc…, está ali só para cumprir a tarefa de quem de fato comanda as ações, que é o poder econômico, que é essa elite apodrecida, que, daqui onde estou eu pressinto, um dia vai morrer de velha sem que ninguém vá ao seu funeral!

Para uma nova idade

por Urariano Mota Há 10 anos escrevi: “O que toda a gente lê em Manuel Bandeira, no livro Itinerário de Pasárgada, longe está de ser uma verdade íntima, única e exclusiva do poeta, neste luminoso parágrafo: ‘Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante’. Mas é preciso experiência, é preciso tempo para ver e sentir o paradoxo da infância mais rica que a maturidade. E, a esta altura da idade e do parágrafo, veio uma lembrança da passagem dos anos. Então lembrei a bunda de Kim Novak, que descobri na infância em uma escondida revista Playboy. Parece que foi ontem, que digo?, parece que foi hoje, agora mesmo, nesta manhã. Depois, enquanto escovava os dentes (é sempre bom fazer essas coisas mecânicas com o próprio ser em outro lugar), eu me perguntava, sim, que mais? O cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: “quando voltar, me traga o boneco que fala”. O cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras, que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos mais dignos de serem vividos, revividos, estão na primeira infância”. Assim foi há 10 anos. Mas foi preciso alcançar esta sexta-feira para conhecer uma outra felicidade tão digna quanto a da primeira infância. Eu me refiro aos amigos e companheiros que nos fizeram ser o que somos, que só pude conhecer e reconhecer quando concluí o romance “A mais longa duração da juventude”. Então hoje, quando sei o que antes não sabia, me pergunto: o que eu seria sem esses amigos? O quanto deles incorporamos à nossa consciência? O quanto deles fizemos espelho para o nosso próprio rosto? Então descobri esta revelação no romance: “A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz. Nós só vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu. A paixão é isto, o trompete de Louis Armstrong, a voz de Ella Fitzgerald, aquela pergunta de Luiz do Carmo em frente ao Cine São Luiz, ‘como vais escutar Ella se não tens vitrola?’ E eu apenas olhava o Capibaribe, e apertava o disco de Ella contra o peito, e me falava ‘eu a tenho perto de mim, não importa onde irei escutá-la. Ela é a minha negra de peixe-de-coco. Vai ser a senhora da noite, das horas malditas’. Aquilo que num poema Goethe gravou: ‘Deve mover-se, obrar criando / Tomar sua forma, ir-se alterando / Momento imóvel é aparência. / Na eternidade em disparada / Que tudo arruína / Que tudo arruína e leva ao nada / Somente o ser tem permanência’ ” O quanto demoramos ser o que deveríamos. Quantos caminhos tortos, até descaminhos, passamos. Então, aos amigos, às amigas, à companheira, às mulheres, a todas as riquezas que os bravos nos legaram, agradeço muito. Sei agora que sou devedor, assim como sei também que jamais conseguirei pagar tão imensa dívida. Como ensinar literatura

O Rio de Tarso de Castro

por Marceu Vieira Quem é torcedor de futebol conhece aquele sentimento de vergonha do próprio time depois de um vexame. Não é uma vergonha qualquer. É diferente. Torcedor de futebol, em geral, sabe a diferença entre perder e dar vexame. Vexame é vexame. Não é a mesma coisa. Uma goleada de 7 a 1 numa Copa do Mundo em casa, por exemplo. Pois é com este sentimento diferente de vergonha, depois de um vexame, que, nesta temporada paulistana, eu tenho acompanhado ao que vai no Rio. Assisti outro dia ao documentário “A vida extraordinária de Tarso de Castro”, dirigido pelos gaúchos Zeca Brito e Leo Garcia. O filme me arremessou numa viagem no tempo. Fui parar num certo dia de 1985, quando eu era muito jovem e conheci o Tarso, de quem o filme trata. Eu ainda não tinha concluído a faculdade de jornalismo, ganhava, na moeda da época, 500 e alguma coisa por mês como estagiário da “Tribuna da Imprensa” e morava num quarto alugado em Copacabana. Ia trabalhar de ônibus 464, Maracanã-Leblon, bebia cerveja sozinho no botequim do Raimundo, na Rua Bolívar, e me enchia de crença num Rio e num Brasil feitos de sonho nas vezes em que era escalado pra entrevistas coletivas do Leonel Brizola e do professor Darcy Ribeiro. O Rio era o Rio que eu queria que fosse, o Rio que eu quero que seja, o Rio que talvez nunca tenha sido ou não volte a ser – e eu ouvia o barulho do mar no Posto 6, e eu sentia o cheiro da maconha do Posto 9, e eu me supunha importante por estar no meio dos aplausos dedicados ao pôr do sol em Ipanema, e eu comia chuleta com salada de agrião na churrascaria Plataforma uma vez por mês, quando recebia o salário, e eu ficava ali na Plataforma a duas ou três mesas do Tom Jobim, só pra olhar pra ele com seu chapéu panamá, e eu acompanhava os discursos inflamados dos petistas contra os brizolistas (e vice-versa) nas mesas do Lamas, quase sempre sem poder gastar nada, e eu estava ali. O Tarso existia naquele Rio de Janeiro. Existia imensamente. Era, digamos, o Nabucodonosor no reinado da Babilônia. O Rio era a Babilônia. Um Rio incendiado naqueles dias. Um Rio que recendia a sexo, cigarro e cerveja. Um Rio cheio de esperança, já emergido dos anos de fel da ditadura militar. Tarso era o diretor de redação da “Tribuna”. Havia chegado não fazia muito pra assumir o jornal. Tinha deixado a “Folha de S. Paulo”. No meu imaginário, era um super-herói real, o cara que havia fundado o “Pasquim”, jornal alternativo que tinha sacudido a imprensa e a cidade e o Brasil todo no regime dos generais. Tarso bebia uísque às 9h da manhã na sala de trabalho dele (me ofereceu algumas vezes), diziam que cheirava cocaína a qualquer hora (nunca me ofereceu), tinha todas as mulheres que queria (eu assim achava), parecia um galã de ficção, e era o personagem mais bonito da história dele mesmo – um que nem o Clark Gable tinha conseguido ser na mentira das telas do cinema. A “Tribuna da Imprensa” ficava na Rua do Lavradio, no intestino grosso da Lapa, num tempo em que a noite do bairro boêmio era vazia e escura. Quando consegui meu diploma de jornalista e o registro profissional, o Tarso me chamou à sala dele e, quem sabe mais por afeto do que por merecimento, anunciou que estava me contratando como “o repórter mais bem pago da redação”. Deve ter mentido. Mas acreditei. Era divertido acreditar no que o Tarso dizia. Na vida, ele já havia cometido porralouquices mais graves. Gaúcho de Passo Fundo, Tarso era mais carioca do que o Maracanã – e alguma coisa boa deve ter enxergado mesmo no molequinho de Morro Agudo, que se vestia fora de moda. Era assim que eu me via, um molequinho recém-saído de Morro Agudo, vestido fora de moda. Tarso me apresentou à pérgula do Copacabana Palace, ao Florentino, ao Antonio’s, ao boteco Joia, à vodca com Fanta Laranja, me apresentou até à casa dele, na Rua Faro, no Jardim Botânico – e a festas onde eu via o Caetano Veloso, o Chico Buarque, um monte de gente famosa, um monte de mulheres bonitas, um monte de artistas que eu só sabia da televisão e das fotografias do “Caderno B” do “Jornal do Brasil”. Por falar em “Jornal do Brasil”, o Tarso me convenceu – sem dizer uma palavra, só mesmo pelo encantamento que era trabalhar com ele – a não aceitar um convite pra trocar a “Tribuna” por uma vaga de repórter do “Caderno B”. Naqueles dias, trabalhar no “B” do “JB” era o sonho de quase todo garoto ou garota que saía da faculdade de jornalismo. Era o meu também. Tarso me pautou pra matérias incríveis na “Tribuna”. Algumas “repautaram” a concorrência graúda do “JB”, do “O Globo”, da “Folha de S. Paulo”, do “Estadão” – como os relatos que me mandava escrever “de costas pro palco” do finado Teatro Fênix, da TV Globo, onde o Chico e o Caetano gravavam o programa que levava o nome deles, naquela segunda metade da década de 1980. Tarso só queria que eu prestasse a atenção na plateia de famosos do “Chico & Caetano”, no que aquelas pessoas faziam durante a gravação, no que cochichavam, como reagiam ao que ia no palco. O nome do sentimento que me dominava nos dias de trabalho com o Tarso era felicidade. O nome do que movia e alimentava aquele meu sentimento de felicidade era descoberta. O nome do que eu sinto agora, quando me lembro dele e daquele Rio e disso tudo, é saudade. O jornalismo tinha mais graça. O Brasil tinha mais graça. O Rio, sobretudo, tinha mais graça. Um dia, o Tarso não se entendeu mais com o Hélio Fernandes, dono da “Tribuna”, e pediu demissão. Mas tinha o dom de reconstruir as situações e os prazeres, os dele e os da turma que o seguia,

Um caso de bullying no Recife

por Urariano Mota Na década de 60, o bullying ainda não tinha esse nome. Mas ocorria, como ainda ocorre. O que eu narro a seguir é um trecho do conto Daniel, nome próximo de um amigo que carregou pelo resto da vida a humilhação que sofrera em um colégio do Recife. Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protesto, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas de um urubu visto à distância. Essa união o incomodava. Se ele tivesse ultrapassado aquele momento crítico em que rapazinhos e mocinhas se entreolham, em que as mudanças no corpo, no rosto, são mudanças de revelação, Daniel teria sobrevivido àqueles elos de siamesas. Mas as sobrancelhas para Daniel não eram propriamente uma revelação, porque há muito vinham sendo anunciadas. Se ele pudesse, naquela quadra da sua vida, teria feito uma cirurgia. Uma nova face, de quaisquer outras sobrancelhas, finas, ralas, densas, espessas, não importava, desde que fossem gêmeas cada qual a seu canto. Ele se sentia, ou melhor, os meninos e meninas faziam-no sentir-se um rapaz anormal, em razão de se acompanhar do que achavam anormais enfeites sobre a testa. E enfeites muito salientes, cerrados, que se apresentavam à frente, antes que ele dissesse “eu sou Daniel”. Enfeites incapazes de disfarce. Em outra pessoa aquelas sobrancelhas viriam a ser um distintivo de elegância, mas em Daniel … Ele era gordo, carregava a fama de ser um quase idiota. Quem é tido como insignificante já traz em si a sua zombaria. O grupo de alunos se tornava coeso, punha-se mais turma na eleição de Daniel para o divertimento. Que julgavam tão inocente: – Daniel, tira essa máscara! E num requinte de inocência, um do grupo se virava para as mocinhas: – Quem quer, quem quer um quilo das sobrancelhas de Daniel? Ele não se escondia, não descia para um buraco, porque era impossível sumir por entre os sinais do seu rosto. A classe toda numa gargalhada geral estourava. As meninas, a princípio tímidas, terminaram por aderir a esse tipo de malhação. Porque era malhado, Daniel se transformava no contato entre moças e rapazes, que antes mal se relacionavam. A cada zombaria as mocinhas dobravam a risada. Ruborizavam-se. Os rapazes, sentindo a terra fértil, acercavam-se mais estreitamente. Um banquete… Se ele fosse magro, se não mangassem dele, se ao menos tivesse sobrancelhas de gente, como era bom. Suas calças não guardavam vinco. A camisa não lhe descia, verticalmente, por entre as calças. Ela apenas era puxada, repuxada, naquela barriga. Um belo dia, Daniel entrou no colégio de sobrancelhas raspadas. Ou melhor, ele amputou o corpo, o ponto onde se uniam as duas asas do pássaro. Ou melhor, pensando em amputar o corpo, inabilmente foi mais longe, amputou também pedaços à esquerda e à direita das asas, fez sumir os pedaços que a natureza fazia cair rumo ao encontro. Melhor, no que sobrou, diminuiu o volume, a espessura dos pelos, ou das plumas. Melhor, finalmente, tirou plumas abaixo e acima das articulações, reduzindo-as a finas linhas. A cirurgia deu nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase a dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação. O turno da tarde, o colégio inteiro se levantou. Daniel não conseguia sentar-se em uma cadeira. Ficava rodando, com sua cara gorda de palhaço, por entre a turba excitada. “Mulherzinha, mulherzinha”, vinham em gritos agudos, vaias, risadas, de início uma passarada de praga, depois uma massa compacta, “Mulherzinha!”. Estrondavam. Num gesto reflexo, Daniel punha as mãos sobre o rosto, protegia a cabeça como um ser em queda, como um suicida em arrependimento tardio que se lançou do alto de um arranha-céu. Não se pode dizer que pensava, mas seu arrependimento tardio parecia tão somente falar “em que deu, Daniel, em que deu o teu sonho impossível de te fazer aceito”. Ao que outra voz respondia, na mesma escuridão, por entre seu corpo aos soluços, “agora o teu sonho se vai, Daniel. Antes houvesses feito do que era impossível uma hemorragia”. Com solenidade, os professores arrastaram o anormal para a secretaria. Uma procissão de meninos os seguiu. Na secretaria, diante daquele rapazinho cabisbaixo, dona Augusta mandou que ele erguesse o rosto. A medo obedeceu: tinha o rosto úmido, inchado, com as inscrições esborrachadas na testa. A diretora então, em seu natural prosaico, achou por bem lhe ajeitar as interrogações deitadas sobre os olhos, enfeixando-as numa única interrogação: – Por que você nunca usou um boné, Daniel? E assinou a sua expulsão. Jovens para sempre ou a danação da juventude

O que os pobres comem

por Urariano Mota As notícias desta semana atualizaram uma fala do prefeito de São Paulo, que em vídeo de 2011 gritou: “Pobre não tem hábito alimentar”. Essa frase lapidar de João Doria esteve de volta quando ele anunciou a distribuição da farinata – mistura de fascio e lixo de comida – como ajuda alimentar para os pobres e crianças em creches. No vídeo, o então apresentador Doria repreendeu um candidato que havia apresentado um programa que incluía hábitos alimentares da gente do povo. E gritou, o burguês Doria, cheio de ciência e autoridade: – Hábitos alimentares?! Você acha que gente humilde, pobre, miserável, lá vai ter hábito alimentar? Se ele se alimentar, ele tem que dizer graças a Deus. O pobre tem fome, não tem hábito alimentar. Por que essa insistência em um tema como esse? Ontem, soubemos que o prefeito desistiu de incluir na merenda das escolas da rede municipal de São Paulo a ração maravilhosa. Mas ele continua com a farinata para os pobres adultos, que será distribuída pela assistência social da prefeitura. Então, anoto brevíssimas observações para essa caridade típica do burguês. Primeiro, não é demais ensinar ao senhor prefeito que pobres são pessoas, são gente. Se o miserável burgomestre de São Paulo não sabe, vou lhe deixar aqui duas ou três coisas, do alto da minha experiência de pobre, que em dias mais sombrios também passou fome. Saiba, prefeito, que é uma experiência universal: as pessoas, por mais carentes, adaptam ou adotam um caminho de vida humana em meio à penúria. Assim, em todo Nordeste brasileiro, do sertão ao litoral, as pessoas de todas as classes gostam de comer cuscuz, arroz e feijão. Isso é um hábito, pré-feito, isso é um gosto, uma escolha, um instinto de nacionalidade que vai de geração a geração. Entre os pobres, até mesmo entre os mais miseráveis, existe o hábito de comer carne, ou algo que pareça ou lembre carne, quando nada vezes nada se possui para comer. Saiba, perdido feito, que eu já vi família de quem era vizinho comer pés e cabeças de galinha, cozidos em um caldeirão. Quero dizer, comer aquilo não era bem uma opção, mas uma resistência do hábito de se comer carne no almoço. Isto agora é cultura, burromestre, aprenda: uma mãe pode fritar um só ovo para quatro filhos, ou pegar meio quilo de carne de terceira, cheia de pelancas e osso, e servi-la para numerosa família. De pedacinho em pedacinho, de taquinho em taquinho de carne. Ou até mesmo – no extremo – sem ter nada vezes nada, uma senhora mãe pode pegar ervas no mato e fervê-las para servir em farofa. Nesse limite, ervas com farinha – não farinata, mas farinha de mandioca – essas pessoas lembram o hábito alimentar de comer carne, feijão, arroz. Que passa então a ser sonhado para melhor oportunidade.   Um exemplo, que talvez o magnífico burromestre entenda: um homem pode viver sozinho, sem mulher, mas isso não quer dizer que ele tenha se acostumado a não ter o calor do sexo. Ou que ele tenha se transformado em uma nova categoria de marciano. Então, tente compreender num máximo esforço, pré-histórico Doria: pobres também são pessoas que têm hábitos seculares, que estão inscritos no seu DNA antes que tenham consciência. Quero dizer: o hábito é um modo de ser, quando não, uma marca inescapável de identidade. Os pobres vivem e se adaptam como podem, mas têm sua identidade, seus hábitos alimentares, e o miserável burromestre não sabe. E atenção, olhem só até onde poderemos cair. A proposta da farinata – fascistada – levada adiante por Doria já foi aprovada este ano na Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado. Ou seja: a ração para os pobres ameaça se tornar uma lei nacional de combate à fome. Amigos, saibam que depois da legalização do trabalho escravo, poderemos ter ração de lixo em farinha para os miseráveis do Brasil. O Estado a que chegamos supera os mais inverossímeis pesadelos. Daí que não será indevida a grande antecipação de Swift, que piedoso já havia notado a terrível condição dos miseráveis que não têm o que comer: “É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola”. E num ato de gênio criou em 1729 a farinata de Doria: “Foi-me garantido por um muito sábio americano, que uma criança jovem e saudável, bem alimentada, com um ano de idade, é do mais delicioso, o alimento mais nutriente e completo – seja estufada, grelhada, assada ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que poderá igualmente ser servida de fricassé ou num ragu… Uma criança dará duas doses numa festa de amigos; e se for a família a jantar sozinha, os quartos da frente, ou de trás, proporcionarão um prato razoável. Se temperada com um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará ainda bem conservada no quarto dia, especialmente no Inverno. Concedo que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto, estará muito adequada aos senhorios – e dado que estes já devoraram a maior parte dos pais, poderão ter direito de preferência sobre os filhos. A carne dos bebês estará dentro do prazo o ano todo, mas será mais abundante um pouco antes, e depois, de março”. Ao fim, penso que em lugar do título “O que os pobres comem”, mais próprio seria ter escrito: O que come os pobres A resposta é simples: todo carnívoro de classe come os pobres. Gente à semelhança de porco feito Geddel, Blairo Maggi. Gente feito vampiro à semelhança de Michel Temer. Gente feito os parlamentares vendidos na Câmara e no Senado. Todo capital assim representado, todo capitalista come os pobres. Swift já dizia. Não há novidades para os pobres