Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

Pesadelo

por Fernando do Valle O general com sobrenome de tronco de amarrar gado fala todo pimpão na televisão sobre “os novos tempos” em entrevista ao jornalista barbudo brother de ditador que era mais chegado aos equinos do que aos bípedes. Desligo e digito minha senha no faceburka e me deparo com notificação sobre a censura de meu post com a entrevista de uma transexual. Revoltado, entro no twitter e ex-jogadora de vôlei e dublê de comentarista política, que vive entre os ianques adoradores de presidente ex-apresentador de reality show, arrota regras de comportamento em coro ao ator pornô ungido pelas massas de reacionários como líder da moral e bons costumes. A histeria os une na crença do resgate das criancinhas da perdição das mãos sujas de artistas, esquerdopatas, maconheiros, nudistas e vagabundos. Entro no elevador e meu vizinho que chama o filho de “um fracote que só faz mimimi e parece uma bichinha” (a parede e a música não são suficientes para me poupar de ouvir os xingamentos) me conta orgulhoso que vai ao museu lutar contra a pedofilia, não consigo falar, minha cabeça começa a doer e girar, olho para o painel do elevador e me desespero, ainda faltam 20 andares para o térreo. É a primeira vez que meu vizinho se dirige a um museu, mas a manifestação não passará da porta. O telefone toca e minha avó me avisa para não sair na rua que está invadida por “bandidos”. “Vó, o que você está falando?” Ela sempre repete o que assiste no programa televisivo do final da tarde de um gorducho sempre de terno que vocifera contra o “absurdo” em que vivemos com baba escorrendo pelo canto da boca. Ex-católica fervorosa, agora minha vovó deposita todo mês 10% de sua aposentadoria na conta do pastor do bairro, “um homem bom sem maldade no coração”, segundo ela. Resolvo levar minha filha ao parquinho da praça perto de casa e lá encontro uma turba de pais com calças camufladas do exército conversando sobre novos modelos de carros. Uns três mais próximos, que empurram as filhas no balanço, falam sobre política, um de cabelo curto e camiseta com um logo enorme de marca americana com etiqueta Made in China fala em quase grito: “a ditadura matou foi pouco, tinha que matar de novo esse bando de verme”. Mando ele se foder na hora. Ele me xinga também e eu dou um murro no nariz dele que começa a sangrar e suja o logo. Outros começam a me dar porrada, reajo e tudo vira um rebosteio. Minha filha sentada na cadeira do balanço chora, coloco ela em meu colo e saímos correndo. Sinto calafrios por todo o corpo, uma raiva imensa. Acordo todo suado e vou passar um café, ufa, que pesadelo. Nelson Rodrigues: o reacionário da boca pra fora

A guerra

por Marceu Vieira Uma notícia curtinha, veiculada sem destaque por alguns sites na quarta-feira 13 de setembro, e ignorada pelos jornais do dia seguinte, deu conta da paralisação pela Justiça da operação da Usina de Belo Monte, na Amazônia paraense. Com os olhos da grande imprensa todos voltados pro depoimento do Lula ao juiz Sérgio Moro, em Curitiba, a decisão tomada pelo Tribunal Regional Federal de Brasília não teve repercussão nem nas redes sociais. Uma pena. Pena mesmo. O Tribunal acolheu um pedido do Ministério Público ainda de 2015. Na ação, os procuradores denunciavam o descumprimento de condicionantes pra que a hidrelétrica pudesse operar – uma delas, o adequado reassentamento do povaréu ribeirinho, despejado de casa pelo desvio descomunal das águas do Rio Xingu. Em março de 2016, eu estive em Altamira, município-sede da usina, na região do Xingu. Fui lá pra uma série de sete relatos/reportagens sobre Belo Monte, publicados pelo querido site #Colabora. Comigo, estava a repórter fotográfica Marizilda Cruppe. É pouco provável que a decisão judicial de agora, tão tardia e ainda sujeita a recurso, resulte em algum benefício concreto pra aquela gente desassistida e afrontada pela construção de Belo Monte. Mas deve ter emprestado alguma alegria aos ribeirinhos que tanto lutaram contra o erguimento da usina. Naquela viagem inesquecível a um Brasil desconhecido da maioria, eu e Marizilda ouvimos os lamentos de muitos índios com quem convivemos. Lembro que uma índia da aldeia Juruna amarrou no meu pulso um bracelete de miçangas e disse mais ou menos assim: – Essa pulseira simboliza a força pra você entrar na guerra. Use até vencer a sua guerra. – Que guerra? – eu perguntei. Ela não respondeu. Mas, pelo sim, pelo não, desde ali, não tirei mais a pulseirinha do pulso. Entendi, pelo tom da jovem índia, que, se tudo desse errado, e ela nem me disse o que seria dar certo ou errado, eu deveria morrer com aquele adorno no pulso, caso não vencesse a “minha guerra”. Acredito que a “minha guerra” já tenha acabado, e que eu a venci. Porque a pulseira se rompeu esta semana, quando eu entrava num botequim da Rua Pinheiros, em São Paulo, e isso bem no dia da decisão de paralisar Belo Monte, tomada pela Justiça. A coincidência não quer dizer nada. Nada mesmo. Como também não quer dizer nada tanta coisa coincidente a que a gente assiste na vida. *  *  * Por acreditar que tudo continua igual, o cronista digital pede licença pra reproduzir aqui um trecho do primeiro relato daquela série publicada pelo querido site #Colabora. Fim de festa em Belo Monte Até onde a vista já não alcança, de tão vasto, e a poeira vermelha do barro da Transamazônica não deixa mais ver, de tão longe, o fim fica bem depois. Tudo é superlativo em Altamira, imensidão no Sudoeste do Pará. Seus monumentais 161.446 km² de área fazem do município o maior do país em extensão territorial e o terceiro do planeta. Se fosse um estado, Altamira ocuparia, em tamanho, a 16ª posição no mapa brasileiro, à frente de Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina, Acre, Ceará… Se fosse uma nação, seria, em dimensão, a 92ª do globo terrestre – engoliria uma Grécia e meia; quatro Suíças; quase duas vezes os limites de Portugal. Hoje, porém, também são cada vez mais superlativos os desapontamentos, as dores, as decepções e as tristezas da pobre gigante Altamira, cujo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU) mal chega a 0,6, patamar considerado sofrível. As sementes desse dissabor foram plantadas em 2011. Foi quando começou a ser erguida ali, no leito do Rio Xingu, sob a desconfiança severa de movimentos sociais, mas com a esperança de quem acreditava no desenvolvimento da região (sobretudo, empresários e poder municipal), a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Mamute de 24 turbinas que veio se somar às hipérboles do município como a maior hidrelétrica 100% nacional e a terceira mais imponente do mundo, Belo Monte, esteticamente, nada tem de bela. É um Everest horrendo de concreto e ferro no meio da Floresta Amazônica. Em dimensões e potencial energético, perde apenas para a chinesa Três Gargantas e a brasileira-paraguaia Itaipu Binacional. Ocupa uma clareira impressionante de 37.375.644 m² de área desmatada, imensidão equivalente a 9,11 Copacabanas, ou a 830,5 estádios do Pacaembu. Controlada pelo consórcio Norte Energia, formado pelo grupo Eletrobras (49,98%), pelos fundos de pensão Petros (10%) e Funcef (10%), pela brasileira-espanhola Neoenergia (10%), pelas associações Cemig-Light (9,77%), Vale-Cemig (9%) e pelas minoritárias Sinobras (1%) e J. Malucelli Energia (0,25%), Belo Monte foi orçada em R$ 16 bilhões e leiloada por R$ 19 bilhões em 2011. Hoje, já está custando cerca de R$ 32 bilhões, dos quais pelo menos R$ 22 bilhões foram financiados com dinheiro público pelo BNDES. É tão gigantesca que, para ser levantada, foi preciso um colar de construtoras. Foi erguida por empreiteiras que, mais do que nunca, nestes dias conturbados de Operação Lava-Jato, têm frequentado o noticiário político-policial – Andrade Gutierrez, líder do consórcio construtor; Odebrecht; Camargo Corrêa; Queiroz Galvão; OAS; além de Contern, Galvão, Serteng, J. Malucelli e Cetenco. A sociedade civil organizada da região de Altamira, apoiada por ambientalistas de todo o Brasil e lá de fora, não a queria. Lutou o quanto pôde contra sua construção. Foi acusada de tentar deter o desenvolvimento da Amazônia e do Brasil. Temia pelo Xingu, pelos índios, pelos ribeirinhos, por seus pescadores, pelas remoções que poderia implicar. Quase uma dezena de ônibus que levavam e traziam trabalhadores do Centro de Altamira até o canteiro de obras foi incendiada por manifestantes, índios e operários grevistas em protestos na Transamazônica. Em vão. Mesmo assim, a gigante, projetada 30 anos antes, ainda na ditadura militar, acordou – e foi erguida. Há seis anos, quando o então presidente Luís Inácio Lula da Silva desarquivou o projeto e anunciou o início das obras, atribuindo a “gringos” a grita contra a usina, a promessa oficial era de que Belo Monte levaria à região a contrapartida de desenvolvimento, emprego, renda, mais escolas, mais hospitais,

Quem é o inimigo?

por Elaine Tavares O sistema capitalista de produção é uma máquina de ódio e sobre esse sentimento se sustenta. Sua principal arma – que mantém a maioria das gentes sob seu comando – é a invenção de que o inimigo de cada um é outro. A pobreza, a miséria, a dor, a desgraça, a fragmentação, a doença, nada disso tem a ver com a forma como a sociedade se organiza. Tudo é culpa do outro. O outro passa a ser aquele a quem cada um e cada uma tem de eliminar. Mas, prestem bem atenção. O outro que tem de ser eliminado não é qualquer outro. É o outro da mesma classe, a classe empobrecida. E essa é a que tem de se digladiar diariamente, para disputar um espaço na sociedade do “mundo livre”. Está consolidada a ideia de que o rico, o “bem nascido”, o criado a toddy é um abençoado por deus e a que ele se deve toda a reverência. A ele nenhuma culpa é imputada, nasceu marcado pela bênção. Se matar alguém dirigindo bêbado, pobrezinho, teve uma má noite. Se estuprar uma menina, coitado, não foi por mal. Se agredir uma mulher, estava exaltado. Se juntar os amigos para matar negros e gays, é porque essa gente não deve prestar mesmo. Essa ideia é permanentemente é inoculada nas gentes. É claro que muitos conseguem escapar dessa lavagem cerebral, mas uma boa parte das pessoas é envolvida por essa ideologia. Então, o que acabamos vendo, perplexos, é pessoas da mesma classe, que sofrem os mesmos dramas, se agredirem em si, disputarem, competirem e até se matarem. Esse é o bom trabalho da ideologia. Tornar real o que não é. Mostrar como verdade o que é mentira. Iludir, enganar, obscurecer. E àqueles que são tomados por essa ideia de que o outro, pobre, negro, gay, comunista, macumbeiro, é o inimigo muito dificilmente conseguimos tocar com o discurso. É por isso que não adianta muito insistir no Facebook para que os paneleiros apareçam quando o Dória joga água nos mendigos em noites de inverno. Os que bateram panela contra o PT, a Dilma ou contra os comunistas, definitivamente acham que está certo “limpar” a cidade dos mendigos, porque a ideologia diz pra eles que os mendigos são ladrões e eles têm medo dos ladrões. Todos temos. Então, como o outro, sujo e desempregado, é o inimigo, que o estado o elimine. Igualmente é inútil chamar os paneleiros para bater panela contra o Aécio, o Caiado, o Temer, ou o Gilmar Mendes. A grande maioria faz parte desse grupo de bem nascidos, sobre os quais não recai culpa. Imaginem se o neto do Tancredo vai ser um traficante? Isso só é possível aos pobres e pretos da favela. Rico não comete crime. Rico é abençoado. Para os que estão sob o comando da ideologia só os pobres podem ser ruins, perversos, criminosos, violentos, inúteis. Vejam a Argentina, onde milhares se levantaram na última semana para exigir a aparição com vida de um artesão que foi levado pela polícia e sumiu. Pois se milhares pedem pela vida do jovem, outros milhares de seres silenciosos estão em casa, concordando com a ação da polícia. Afinal, pensam, o que um hippie, um artesão, representa para a sociedade? Nada. Eles não produzem para o sistema. Devem ser eliminados. E secretamente, essas pessoas assentem a cabeça diante do crime. Da mesma forma é possível sentir essa silenciosa aprovação quando os jagunços matam índios no Brasil, ou quando fazendeiros matam ambientalistas e sem-terra. O Datena grita na TV que eles são bandidos, vagabundos, marginais. E as pessoas assentem, crédulas, dando graças aos céus por haver jagunços e fazendeiros tão legais que limpam o mundo dessa ratatuia. Como entender a simpatia que uma mulher da classe alta venezuelana, como a Lilian Tintori, desperta nas brasileiras. Ela é loira, jovem, rica. Seu marido, Leopoldo Lopez, é o responsável pela morte de mais de 40 pessoas nas guarimbas de 2014, e agora, durante as guarimbas de 2017, incentivou outras tantas. Então por que os brasileiros e brasileiras se doem tanto pelo fato de ele estar preso? Por que não fazem campanha pelos tantos negros e negras que hoje mofam nos cárceres, alguns até sem julgamento? Ou pelos que estão presos porque roubaram um pote de manteiga? Que mistério é esse que leva a tanta simpatia pela riquinha branca? É essa ideologia que promove a divisão entre os empobrecidos, para que permaneçam sempre atados ao poste da escravidão. Matem-se entre si, mas amem seus algozes. É claro que essa silenciosa massa que odeia seus iguais não é uma gente do mal. Estão aí, pelos séculos e séculos sendo inoculadas nesse ódio aos seus. E não é coisa fácil escapar. Ainda que os empobrecidos sejam 99% da população mundial, não conseguem compreender o seu poder. E o poderoso 1% que domina o mundo tem os meios e as condições para sistematicamente fortalecer essa ideologia de que é o pobre que é ruim. Só ele pode ser capaz de maldades e violência e contra ele há que estar toda a força. É por isso que gritar pelos paneleiros no Facebook não ajuda em nada a mudar esse quadro. A saída é a lenta e esgotante batalha de construção da consciência de classe. Só que isso não acontece com discursos vazios ou cheios. A consciência de classe só desperta quando estamos jogados na luta coletiva. Quando caminhamos em comunhão na direção de um objetivo que transforme nossas vidas. E essa construção é algo que precisa de intenso trabalho na vida real, no chão do mundo, no encontro cara-a-cara com esse outro que nos vê como inimigo. Temos de retomar, com urgência, o contato com a vida. As novas tecnologias são boas, são legais, e podem até ser revolucionárias, mas elas sozinhas não mudam a vida. Assim como uma faca não pode sair matando sozinha, a internet também não tem esse poder. São as pessoas por trás da técnica que movem a roda da

Vinícius de Moraes hoje

por Urariano Mota Para estes dias de novo golpe no Brasil, vale a pena esta evocação e invocação de Vinícius de Moraes. O crítico literário José Castello, numa entrevista, contou certa vez que o poeta maior Vinicius de Moraes apresentava um show em Lisboa em 13 de dezembro de 1968. Esse foi o dia em que os militares do Brasil acabavam de dar um golpe dentro do golpe com o Ato Institucional número 5. E o que lhe acontece? À saída do teatro, militantes da Juventude Salazarista, todos vestidos de terno e gravata, ficaram esperando a saída do poeta para hostilizá-lo. Eles relacionavam Vinicius à esquerda e ao comunismo. Mas o poeta não se deixou intimidar, e contrariando a orientação recebida, que evitasse o enfrentamento, eis que o poeta encarou os manifestantes recitando de improviso todo o seu poema Pátria Minha. Que vale a pena retomar: “Pátria minha  A minha pátria é como se não fosse, é íntima Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo É minha pátria. Por isso, no exílio Assistindo dormir meu filho Choro de saudades de minha pátria. Se me perguntarem o que é a minha pátria direi: Não sei. De fato, não sei Como, por que e quando a minha pátria Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água Que elaboram e liquefazem a minha mágoa Em longas lágrimas amargas. Vontade de beijar os olhos de minha pátria De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos… Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias De minha pátria, de minha pátria sem sapatos E sem meias pátria minha Tão pobrinha! Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho Pátria, eu semente que nasci do vento Eu que não vou e não venho, eu que permaneço Em contato com a dor do tempo, eu elemento De ligação entre a ação o pensamento Eu fio invisível no espaço de todo adeus Eu, o sem Deus! Tenho-te no entanto em mim como um gemido De flor; tenho-te como um amor morrido A quem se jurou; tenho-te como uma fé Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito Nesta sala estrangeira com lareira E sem pé-direito. Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra Quando tudo passou a ser infinito e nada terra E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz À espera de ver surgir a Cruz do Sul Que eu sabia, mas amanheceu… Fonte de mel, bicho triste, pátria minha Amada, idolatrada, salve, salve! Que mais doce esperança acorrentada O não poder dizer-te: aguarda… Não tardo! Quero rever-te, pátria minha, e para  Rever-te me esqueci de tudo Fui cego, estropiado, surdo, mudo Vi minha humilde morte cara a cara Rasguei poemas, mulheres, horizontes Fiquei simples, sem fontes. Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta Lábaro não; a minha pátria é desolação De caminhos, a minha pátria é terra sedenta E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular Que bebe nuvem, come terra  E urina mar. Mais do que a mais garrida a minha pátria tem Uma quentura, um querer bem, um bem Um libertas quae sera tamem Que um dia traduzi num exame escrito: ‘Liberta que serás também’ E repito! Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa Que brinca em teus cabelos e te alisa Pátria minha, e perfuma o teu chão… Que vontade de adormecer-me Entre teus doces montes, pátria minha Atento à fome em tuas entranhas E ao batuque em teu coração. Não te direi o nome, pátria minha Teu nome é pátria amada, é patriazinha Não rima com mãe gentil Vives em mim como uma filha, que és Uma ilha de ternura: a Ilha  Brasil, talvez. Agora chamarei a amiga cotovia E pedirei que peça ao rouxinol do dia Que peça ao sabiá Para levar-te presto este avigrama: ‘Pátria minha, saudades de quem te ama… Vinicius de Moraes’ “ Segundo José Castello, então se deu uma cena incrível: os jovens salazaristas tiraram seus casacos e fizeram um tapete para que o poeta passasse. A isso ligo o Vinícius no Portugal salazarista a estes pesados dias no Brasil. Antes como agora, o nos salva é a literatura. Assim, copio a seguir uma referência ao poeta em um trecho do meu próximo romance “A mais longa duração da juventude”. No livro, o personagem Zacarelli, quando está numa praia diante da jovem por quem está apaixonado, deste modo se declara a ela nos anos da ditadura: “- Quem fala bem sobre o amor, fala bem da revolução. É claro, mesmo que não queira, todo poeta é comunista. Mas quando expressa bem o amor, ele é um revolucionário em essência. Vinícius de Moraes tem uma composição que é sublime. Aquela que fala ‘ó minha amada de olhos ateus, teus olhos são cais noturnos cheios de adeus”. Todo grande poeta socialista assinaria’. Creio que o Vinícius em Lisboa concordaria. Dorival Caymmi cantou a riqueza de sua terra

Notas sobre a velhice

por Elaine Tavares Então, de repente, a velhice mostra sua cara. E não é aquela dos folhetos da previdência privada, nem da Unimed. É velhice real, que chega e toma conta daqueles que amamos, com doenças e esquecimentos. Pode ser o pai, ou a mãe, ou um avô. E, no contrapé, pega de surpresa, afinal, as pessoas até percebem o velho, mas não notam que ele está perdendo a autonomia. Assim, sem manual e sem qualquer experiência anterior, por vezes é preciso enfrentar uma situação nova, cheia de desafios e surpreendentes ensinamentos. Foi assim com Nelson. Sempre ativo e tomando conta de tudo, um belo dia foi surpreendido pela filha rasgando documentos importantes. Ela perguntou o motivo daquilo. E ele negou veementemente que o havia feito. Não se lembrava. Acendeu a luz vermelha e lá se foi a família buscar um médico. Um dos melhores de Porto Alegre. Ele fez uma consulta padrão e em poucos minutos já dava o diagnóstico: Alzheimer. Essa doença tão temida, que provoca o esquecimento. A filha fica meio sem chão, mas, seguindo as receitas médicas começa a medicar o pai. O remédio logo mostra a que veio. Nelson estava como um bobo. Já não conseguia articular as palavras, não controlava as necessidades físicas, a boca entortava, não queria comer. Foi um baque, porque ele sempre fora o arrimo da casa. Vivendo no meio do mato, sem muitos recursos, a filha, atarantada com a mudança drástica de comportamento, decidiu suspender a medicação. Talvez tenha sido o que o salvou. A bobeira passou e ele começou de novo a atinar as ideias. A outra filha decidiu buscar outro médico. Trouxe para Florianópolis. Nova consulta, um médico capaz de olhar a pessoa e não a doença. Ele chegou à conclusão de que o que Nelson precisava era de uma boa nutrição, cuidado e atenção. O demais, como a perda de memória, ficaria monitorando. Poderia ser o esquecimento normal da velhice. Aos 85 anos isso não era algo tão fora da realidade.   E assim foi feito. Alimentação saudável, música, cuidado e paciência. Muita paciência. Mas, essa não é uma jornada fácil. Os velhos precisam de atenção durante 24 horas. Porque eles podem esquecer um fogão ligado, um cigarro aceso, meter a mão onde não devem. Aí vem o drama: como cuidar 24 horas, se é preciso sair para trabalhar? A vida vira de pernas para o ar. E quando o velho precisa ser trocado, usar fraldas e tudo mais, torna o cuidado ainda mais difícil. Afinal, é preciso força para erguer, virar, movimentar. Ter uma pessoa idosa em casa, exigindo atenção permanente, é uma virada radical. Poucas famílias conseguem segurar essa barra. Na verdade, ninguém está preparado para essa tarefa. Não há conhecimento sobre como proceder, o que fazer. A pessoa velha, doente e fora de sua casa, fica irritadiça, nervosa, rebelde. Não se sabe o que fazer. E a única saída é ir tateando no escuro. Ler sobre o tema, buscar relatos de outras pessoas que enfrentam o mesmo drama, buscar amparo. Algumas famílias são maiores, podem dividir as tarefas, construir tabelas de horários para um e para outro, constituindo turnos, rotinas, afinal, o cuidado é permanente. Ainda assim, é difícil conciliar estudo e trabalho. Agora, e quem não tem família, faz o quê?   Quem pode cuidar de um velho? Cuidar de uma pessoa velha e doente é difícil demais. Não existe nenhum lugar onde se possa buscar ajuda. Cada família que se vire. Existem os cuidadores particulares, mas o preço a pagar é muito alto. Para uma família de trabalhadores fica inviável. Possivelmente é por isso que uma das opções mais buscada é colocar os velhos num asilo. Não é por descaso ou desamor. É justamente o contrário. Sem condições de cuidar e tendo de prover a família, a pessoa fica sem saída. Em Florianópolis já existe uma casa, no bairro Santa Mônica, um bairro nobre, que funciona como creche. A família leva o velho e ele fica lá enquanto o povo trabalha. No fim do dia vão buscar e ele vive em família, sem ser privado da companhia dos parentes. Mas, igualmente, é uma opção privada e caríssima. Há algumas pessoas que já discutem em grupos na internet a possibilidade de criar um movimento pró-creches públicas para velhos. Mas, lendo mais sobre o assunto, surgem muitas dúvidas sobre se esse é um caminho saudável. No geral os velhos não gostam de sair de seus lugares habituais, mesmo os que estão sem memória. Eles têm suas próprias rotinas e andar com eles pra lá e pra cá, todos os dias, pode ser motivo de estresse. E teriam de sair da cama muito cedo para acompanhar quem vai ao trabalho. Um sacrifício total. E, depois, o velho não pode ser tratado como se fosse uma criança. Esse é um dos erros mais comuns que se comete. Eles já passaram por essa fase, e ainda que não tenham lembrança de várias coisas, de alguma maneira sabem que não são bebês. Então nada de guti, guti, nem de tutelagem. É fundamental que o velho tenha alguma autonomia. Que possa decidir sobre o que comer, o que fazer, como passar o dia. A família que cuida precisa ficar de longe, a cuidar e, vez em quando, propor um passeio, uma distração. Mas, isso, como já vimos, não é uma opção para muita gente. Fui buscar na internet sobre a experiência de cuidar velhos em Cuba, que é um país com uma proposta socialista, e percebi que lá eles têm discutido bastante essa questão. Porque também estão vendo sua população viver bem mais. Esse é um assunto novo, afinal, a longevidade não era coisa que fazia parte da nossa vida. No Brasil, entre 2005 e 2015, a proporção de idosos de 60 anos ou mais, passou de 9,8% para 14,3%. E há estimativas de que em 2050 esse número triplicará. Esses são números do Brasil, mas o envelhecimento da população é uma tendência mundial. Não é sem razão

Vargas na penúltima hora

por Urariano Mota O que se passa com um homem quando caminha para a morte? Vargas entrou no prédio quase de um salto, como quem entra no consulado em área livre da guerra civil. Subiu no elevador como as pessoas sem saída vão, e agora aperta a campa da advogada com a sua chama trêmula. Vida açoitada pelo vento em suas mãos. “Eu sou um homem”, e de tanto ódio pela tremedeira incontrolável, fecha os punhos, trinca a boca, pressiona os maxilares. “Eu sou um homem, porra. Eu não traio. Eu não trairei o que eu sou. Porra!”. E a porta se abre. À sua frente surge ela própria, a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar fundo em um homem, e nem por isso desperta o desejo mais carnal de sexo. De imediato, não. O desejo de amá-la viria espiritualizado, se podemos sofismar assim, quando à sua pequena altura, de olhar abrasante, associamos a coragem e os cadáveres que viu, denunciou, e o mundo abjeto contra o qual ela se indigna. Bem sei, ainda aqui não sou claro. Quero dizer, o amor à mulher Gardênia Vieira vem não só misturado do respeito à pessoa, mas em essência à sua visitação aos cadáveres de socialistas torturados. Então, se permitem um português mais chulo, ela desperta um tesão que é fora da genitália. Um tesão do espírito. Então Gardênia abre a porta e vê um jovem de cabelos crespos, assanhados, fronte suada e olhinhos miúdos, mas abertos além do normal. – Doutora, eu preciso lhe falar urgente. Vargas entra, olhando para trás. Gardênia fecha a porta, estica uma corrente de segurança no trilho. – Sente-se. Pode falar. Vargas desce para uma cadeira e se põe a gaguejar, um sintoma que nele é tensão e nervosismo, ele acha que não, acredita que é um tormento de palavras a se atropelarem na boca. A língua pesa, pouco flexível, como se anestesiada. Não lhe obedece: – Dou-tô-tô-raaa! – Calma. Fale devagar. O que era pálido na face de Vargas enrubesce. Ele para a fala, inspira o ar com força e volta a iniciar mais lento, como lhe é possível: – Dou-tôôra… Eu vou ser preso. Certe-eza. – Por quê? Caiu algum conhecido seu? – Nãao é…. é isso não. – E Vargas ganha uma fala retilínea, aos arrancos. – Só… só tem caído companheiro. E todo o mundo pensa que o culpado sou eu. Mas naão. A culpa, a entrega é de Daniel. Eu falava o contato pra Daniel e um companheiro caía. Eu sei, doutora! Eu tenho um primo que esclareceu pra mim. Daniel usa o carro de um torturador. E Daniel já notou que eu sei que ele é policial, doutora. Não tive como fingir, olhei pra cara dele e soube que ele estava mentindo. Doutora, eu tive que me controlar. Ele merecia um tiro na cara. Mas me controlei, não sei como. Acho que me controlei porque eu não queria acreditar que Daniel fosse infiltração. Mas agora não tenho mais dúvida. Vi Daniel na Rua da Aurora, com quem, doutora? Ele estava andando, conversando com um cara gordo, de óculos escuros, Fleury! Eu já vi foto desse assassino. Fleury está no Recife. Isso é missão, doutora. Fleury não sai de São Paulo pra fazer nada. Doutora, eu sou o próximo! Então Vargas arregala os olhos a ponto de quase saltá-los das órbitas. Não era só medo, essa palavra que ele evitava falar como expressão de um estado vergonhoso. Impossível de reprimir, não era só medo de ser preso. Agora, enquanto fala da presença da repressão cruel no Recife, Vargas tem a intuição do mais grave que se reserva para ele. Não será só preso. Ele vai ser morto. Executado, depois de infindável tortura. Então Vargas se vê dias adiante, e a cara que antevê não é a dele, mas de alguém inchado, tão largo, que não caberá no caixão encomendado para a sua altura e peso. Ele vê e recua com horror, bate com a mão no braço e espanta uma mosca. “Isso é superstição”, ele se fala ao expulsar a varejeira. Evita esmagá-la por nojo, primeiro. Depois, porque achatá-la seria sangrento, e isso lembra outra vez aquilo, a superstição de ver o próprio corpo, esmagado no chão. Se sobrevivesse a tal hora, Vargas perguntaria: “Por que os torturados morrem sempre pisados no chão?”. E Vargas espanta a varejeira, afasta a maldita do cadáver. Mas a mão do gesto não volta mais ao repouso. Põe-se a tremer do medo mais envergonhador. “Que canalhice é esta?”, ele se pergunta. E cala, em luta com a sua visão e a perda irreversível da serenidade. Gardênia o olha e parece a Vagas sorrir. Mas não, Gardênia o vê com funda simpatia, como se vê um filho, um sobrinho, um jovem a quem ela deve orientar. Não lhe escapam as mãos trêmulas, os olhos aterrorizados, a testa suada, a voz que dá um descontínuo, mas que ela sabe nada ter de canto ou improviso. É a voz de tom grave que oscila para o choro, que o jovem procura retornar logo para a firmeza. “Por Deus, como são parecidos”, ela se diz. Outros perseguidos ela já havia visto nas mesmas circunstâncias. “Há os loucos, os enlouquecidos. Há os covardes, que se acovardam. Há os desesperados, que caminham para a morte”, ela escreverá num diário, em que completará: “Vargas era do terceiro tipo. Ele estava desesperado”, primeiro anotará numa linha do seu caderno íntimo. Ela olha para Vargas

A fila dos aspirantes a CEO

 por Fernando do Valle Os olhos do barbeiro brilhavam enquanto narrava a proximidade com tal CEO. Eu ali sentado ouvindo ao fundo o barulho da tesoura e o olhar alternando entre as mechas de cabelos no chão encerado e a minha facha no espelho. O tal CEO tinha dado veredito sobre a crise brasileira: todos NÓS somos canalhas e é por isso que esse país não tem jeito mesmo. O barbeiro se empertigava quando enchia a boca para elogiar o CEO que “empregava centenas de pessoas na fábrica de autopeças”. Comecei a imaginar o CEO como um aristocrata, um rei, um ser com poderes além da compreensão humana em mundo paralelo de iates, mansões, viagens na primeira classe a Europa e mulheres inalcançáveis para simples mortais. Eu murmurava um “não é bem assim”, outro “tem gente boa em tudo quanto é canto”. O barbeiro não me dava a menor pelota, pensei em inventar amigo CEO imaginário que desmentisse o colega, que acreditasse na igualdade entre as pessoas e na honestidade do brasileiro, senti vergonha e preferi calar a boca. Paguei e fui embora. O discurso do CEO de que ninguém presta obviamente o excluía da máxima. Como predestinado homem de sucesso, ele interpretava o papel do único ético do Brasil, ainda mais, sua mulher também prestava, sua família, seus amigos, o que modificaria um pouco o veredito para “ninguém presta (com exceções como eu, minha família e amigos)”. E como diz o velho ditado, como estamos em meio a máximas e vereditos, a exceção só confirma a regra. Ou ainda o papo do CEO era só para passar o tempo no barbeiro, e na padaria, no elevador, afinal ele já carregou malas de dinheiro por quartos de flats e sabe que o ser humano vale nada por experiência própria. No caminho de volta, tive a certeza de que para alcançar o cargo mágico de CEO, o barbeiro seria capaz de vender a mãe e trair o melhor amigo de infância. E me queimaria na fogueira como herege se ousasse questionar se o amigo CEO já conviveu com práticas antiéticas na firma de autopeças. Afinal, esses CEOS possuíam a infalibilidade de caráter, comportavam-se em seus negócios como semideuses munidos de extremo senso ético. Chegam lá porque merecem, dão duro e trabalham sem descanso, a grana preta que circula na alta roda não é para invejosos como eu e você. O menino com uniforme de escola pública que outro dia vi na barbearia, o filho do amigo do CEO, ouve o mesmo discurso do pai no almoço de sábado. Vai atravessar a adolescência com o sonho de se tornar businessman nas entranhas, na faculdade noturna, irá comprar livros que ensinam a ganhar o primeiro milhão antes dos 30 anos. Talvez consiga. O filósofo francês Alan Badiou no ensaio Em busca do real perdido afirma: “se ganhar o máximo de dinheiro possível é a norma, fica difícil dizer que não é verdade que todos os meios são válidos… É bastante curioso que a corrupção cause escândalo, já que poderíamos sustentar que a sociedade está corrompida da cabeça aos pés”. Badiou usa argumentos sem relação aparente como a morte do dramaturgo Moliére em pleno palco interpretando O Doente Imaginário, um poema de Pasolini e a definição de real do psicanalista Lacan para boa divagação sobre o real, a viabilidade do impossível, a corrupção sistêmica do capitalismo, a realidade revolucionária. A desculpa é irmã do crime. Se, como afirma Badiou, ganhar o máximo de dinheiro é a norma e o sistema está corrompido, picaretas encontram a escusa perfeita, afinal com tanto dinheiro dando sopa por aí, ninguém vai notar se eu pegar só um pouquinho já que todo mundo pega. Se a primazia dos interesses privados não prejudicassem o outro mais vulnerável, podia parecer atitude apenas egoísta abrir uma conta na Suíça com propina ou fraudar uma licitação. Difícil crer na prática inócua mesmo do mais puro egoísmo. A política, seara onde deveria ser encontrado o interesse comum e capaz de direcionar as práticas dos homens públicos nesse sentido, foi sequestrada pelos interesses corporativos. Em algumas recentes delações de bilionários empresários, ficou transparente como muitos políticos comportam-se como ardorosos defensores do capital privado. Não caio na armadilha da urgência da moralidade já que ela foi sequestrada por pastores milionários que vendem na televisão e na esquina mais próxima ao homem de bem e temente a Deus o mundo dos carros importados e lojas de luxo. Basta seguir o pastor engravatado para participar do círculo dos escolhidos, onde a grana é panaceia para todos os problemas, sobretudo para os problemas do guia. Então lembro que somos essencialmente seres sociais, o dinheiro desviado para o paraíso fiscal foi o que faltou para o tratamento do viciado em crack que mora sob o viaduto próximo de sua casa, o que causa a precariedade da creche sem vagas para o filho da faxineira que limpa seu prédio ou ainda, para o que se diz homem de bem (ou de bens) e sempre diz que não precisa de serviços públicos e ponto final, do asfalto que não tampou o buraco que quebrou o eixo da SUV. Joesley e Wesley, a cara do capitalismo brasileiro

A modelo negra da capa de revista

por Urariano Mota  Vanessa de Freitas Jorge é mais conhecida pelo nome de Malana. Ela é negra, elegante, linda e simples como não se vê em uma só modelo. Nem é preciso lembrar para ela antecedentes ilustres como a bela Dorotéia, de quem Baudelaire dizia que caminhava balançando com indolência o torso tão fino sobre as ancas tão largas, com a cabeça delicada e perna resplandecente e soberba. Não. Para a Malana que vi e ouvi numa Festa Literária de Porto de Galinhas, a moldura mais recente é o contexto das modelos que aparecem em capas de revistas. Em pesquisa banal, em qualquer banca, saltam aos olhos os cabelos louros, longos, finos e clichosos, encontrados em 95% das capas. Não importa o nome da revista: Marie Claire Brasil, Nova, Claudia, Criativa, Elle ou Vogue Brasil. Caberia até uma pergunta: por que as capas preferem as louras? E responder: as não-louras que nos perdoem, mas em todas as capas ser loura é fundamental. Mas minto. Há uma capa em que a modelo tem a pele menos clara, na Marie Claire de novembro de 2004. Olho bem e percebo a coerência entre a fêmea e o título da reportagem: trata-se de Emanuela de Paula para a reportagem “safári selvagem”… A julgar pelas capas, vivemos num país nórdico. Do frio mais glacial no céu azul. É impressionante como um valor que fere tanto a autoestima brasileira, a beleza de ver e de se ver e não negar a própria cara. Vanessa de Freitas Jorge, Malana, um de nossos melhores rostos, não é uma anti-Gisele Bündchen. Não vem ao caso, aqui, opor pessoas à grande Bündchen, coitada, que não tem culpa de ter nascido no Brasil. Mas se Gisele tivesse a sua negação numa forma nacional, Malana seria essa pessoa. Na variedade de modelos nacionais o tom e a cor gerais são do gênero branco, de origem e preferência alemã. Creiam, na frase anterior não houve ironia, me parece, ainda que tenha usado palavras antônimas na história e civilização brasileira. Paciência. Que os agentes da moda, os olheiros, os bookers descobridores de novas modelos sejam limitados e incultos, com os olhos voltados para o passado, até que entendemos. Que os agentes não descubram a beleza nas ruas, nos ônibus, nos subúrbios, porque sempre vão aos lugares de melhor renda, e por isso não veem nem podem ver alguém como Malana, que aos 13 anos entregava folhetos nos semáforos, isso também compreendemos. É natural. Os olhos têm névoas de preconceito e de classe. Há alguns anos, em entrevista para a revista Brasileiros, à pergunta de Alex Solnik, “Você já ouviu bookers dizerem, ‘ah, não quero negra e tal’, tem esse lance?”, Malana assim respondeu: “Na verdade, pra ser uma modelo você deveria ser boa, independente da cor da pele, do jeito do cabelo, cor de olho e etc., mas infelizmente não acontece exatamente isso. Se você não estiver dentro do padrão exigido, das medidas exigidas, lógico que isso dificulta bastante. Ser negra é mais difícil ainda porque a moda aqui no Brasil se espelha muito na moda europeia, naquela coisinha da pele clara, sabe? Dizem que a roupa cresce mais do que numa pele um pouco mais escura. Então, se conclui que o negro tem um desvalor, um valor menor no mercado do que a pessoa de pele branca, um pouco mais clara”. Essa é a razão porque, ao passar em uma banca de revistas, ninguém consegue não ver uma face negra, entre tantas claras, brancas, louras e nórdicas. A negra, entre a neve tropical, se destaca. Porque todas as revistas nacionais, melhor dizendo, no Brasil, para ser mais preciso, quando dizem e buscam beleza feminina para a capa, querem apenas dizer, vamos divulgar um rosto que não lembre as ruas sujas, feias e sem educação deste país. Ah, o que perdem. Perdem as Malanas do Rio e de São Paulo, perdem as Brunets de Belém e de Manaus, perdem as rebentações do Recife, de Salvador, perdem todos, que nem sempre recebem uma beleza negra como nesta capa de revista de alguns anos atrás: Parodiando Baudelaire, dizemos enfim: entorpecido, o mundo esmorece molemente nas capas, enquanto Malana, altiva e forte como o Sol, caminha nas bancas desertas de Brasil, único ser vivo nesta hora sob o imenso azul, pondo sobre a luz uma brilhante mancha negra. Violência contra pessoas negras denuncia a gravidade do racismo

Segundamente

por Marceu Vieira Desde a descoberta do fogo, a História do mundo mostra que há acontecimentos impossíveis de se evitar. Aqui, no Brasil, um foi a Independência – por mais fajuta que tenha sido. A Proclamação da República, golpe inaugural dos militares, foi outra. A Abolição da Escravatura, mais uma. Houve ainda a Revolução de 1930, o Estado Novo, a volta de Getúlio Vargas, a construção de Brasília por Juscelino Kubitschek, a provação brasileira com o governo Sarney, a Constituinte de 1988, tanta coisa. O golpe de 1964 também entra nessa lista. A elite empresarial estava inteiramente contrária a Jango. O pensamento conservador detinha a hegemonia da informação. As Forças Armadas, ali bem fortes, só precisaram dar o último empurrão no Brasil pra dentro do buraco sem luz da ditadura. Mundo afora, também houve acontecimentos assim, impossíveis de ser contidos. A Queda da Bastilha. A Primeira e a Segunda Grandes Guerras. A Revolução Bolchevique de 1917, na Rússia. A Queda do Muro de Berlim. O desmanche da finada União Soviética. Até a eleição do Lula, em 2002, foi acontecimento inevitável – e o fim daquele ciclo, com a derrubada da Dilma num golpe parlamentar imoral, nem aquilo foi viável deter. Quando os portugueses enforcaram Tiradentes, em 21 de abril de 1792, não supunham que o transformariam em herói da pátria. Mas era certo que acontecesse. Nas relações pessoais, nos contenciosos de trabalho, no dia a dia, na História, e até na ficção, em tudo é assim. Há fatos incontroláveis no seu desenrolar. Na tragédia de Shakespeare, não foi possível evitar a morte de Romeu e Julieta, um sem saber que o outro sobreviveria. No calvário de Jesus, nem Pôncio Pilatos pôde evitar sua crucificação. O goleiro Júlio César tentou evitar cada gol dos sete que a Alemanha impôs à seleção brasileira na tragédia do Mineirão, em 2014. Não conseguiu. Nesta quarta-feira, 24 de maio de 2017, a sensação é a de que mais um desses momentos inevitáveis se apresentou ao país miscigenado fundado por Caramuru e Paraguaçu. Nem no tiro no peito dado por Getúlio, nem nos piores dias da presidente Dilma, quando tudo conspirava contra a permanência dela no Planalto, nem nas manifestação de 2013, enfim, desde que a República é República, nem nunca o Brasil viu atos tão contundentes como esses desta quarta-feira em Brasília contra o Temer e o seu governo de araque. Não é sensato que ainda se acredite na viabilidade da continuação dele. Não haveria poesia bastante pra amenizar o que se viu neste 24 de maio em plena Esplanada dos Ministérios. A única saída honrosa que resta ao Temer e à sua gente, agarrada no poder desde 1985, é bater em retirada. Chega deles. Só o Insondável saberá que novo presidente poderia emergir de uma eleição direta convocada agora. Mas o Brasil precisa viver esse risco. Não há credibilidade sequer pro Congresso escolher um novo presidente numa eleição indireta. Pelo Michelzinho, pelos bebês que o Temer ainda pode ter com a Marcela, pelos filhos dos atuais ministros dessa administração falsificada e sem alicerce crível, pelos netos do Lula e da Dilma e da gente, por todas as crianças do Brasil – as que dormem sob viadutos e as aninhadas em camas de pelúcia nas mansões do Lago Sul -, por todos nós, degredados filhos de Eva, só a renúncia abreviaria o sofrimento coletivo de um povo que não sabe mais pra onde vai a nação desgovernada, com seus índices de desemprego sem parâmetro na nossa História. Não foi também possível evitar o Temer depois do impeachment da Dilma. Então, segundamente, que ele peça o boné e o Congresso apresse a votação de um Projeto de Emenda Constitucional pra convocar – já – uma nova eleição presidencial. Os partidos hegemônicos estão todos desmantelados. Com certeza, surgirá um Bolsonaro ou um genérico dele pra tentar a sorte. Dane-se, que seja enfrentado, então – mas no voto direto. O voto do povo pôs esses personagens abjetos todos onde estão hoje. Até ser cassado e preso, Eduardo Cunha, por exemplo, existiu no Congresso Nacional pra bagunçar o Brasil pela vontade de 232.708 eleitores do Rio de Janeiro. Bem feito pra nós. No mesmo Rio, Sérgio Cabral foi reeleito governador com 5.217.972 votos. Aécio Neves enganou 51.041.155 brasileiros em 2016. Quase se elegeu presidente da República. Agora é hora de deixar o povão decidir de novo. Inclusive quem bateu panelas. Inclusive quem não bateu. Texto publicado originalmente no Blog do Marceu Vieira. Brasil e o enredo da miséria política

Como ensinar literatura

por Urariano Mota Vocês perdoem, por favor, o título pretensioso. Por isso, corrijo um pouco. Deveria ter escrito “Como ensinar literatura para alunos colegiais”. Mas isso ainda é muito. Então esclareço desde já: tentarei escrever alguma coisa sobre a minha experiência com literatura para estudantes. E passo a anotar duas ou três coisas. Em minhas – na falta de melhor nome – aulas, a primeira coisa que aprendi foi que não se deve falar de literatura como um produto que sai dos livros. Deixe-se isso para os professores de cursinhos, que pensam ensinar enquanto põem o pobre do estudante a decorar nomes, datas, movimentos e obras principais. Isso não é literatura, não serve à literatura, nem serve ao conhecimento. Serve a um sistema estéril e formador de burros. Não se deve jamais falar de literatura com este nome cheio de pompa e reverência, “A Literatura”. Fale-se da vida, dos problemas vividos por todos nós, velhos, jovens, crianças, homens, mulheres, animais e gente. Se não for assim, será mais pedagógico contar anedotas da tradução popular de Bocage e de Camões, em lugar dos livros desses excelentes poetas. Só se deve falar sobre aquilo que apaixona a gente. Por favor, se o professor não descobriu a lírica de Camões, se não maturou no peito Manuel Bandeira, se não vê a beleza de Ascenso Ferreira, se não é capaz de curtir e amar Machado de Assis, se não se emociona até as lágrimas com Lima Barreto, por favor, mantenha distância desses criadores. O silêncio sobre eles fará um dano menor que a citação burocrática. Melhor para o mestre seria cantar Roberto Carlos, equilibrar mesas na ponta do nariz, imitar cornetas com um pente sobre a boca, fazer graça com arrotos cavalares. Seria mais pedagógico. Um autor deve ser apresentado a partir de um problema, vivido por todos nós. Ora, se querem saber, nada como o conto “Missa do Galo”, de Machado, para todos os adolescentes. Eles entenderão até a última linha, vírgula e pontinho das reticências. Eles vão respirar todos os movimentos implícitos e insinuados da conversa da mulher solitária com um jovem. Eles são esse jovem. Eles sonham com essa noite ideal em que os espere uma senhora sozinha. Elas compreendem esse jovem e essa mulher. O conto tem todos os elementos de promessa de sexo e conflito com o pecado antes de uma missa devota. Os contos, quando lidos, devem ser muito bem lidos. Quero dizer, com pausas, entonações, vozes, risos, pulos – o que o diabo achar necessário – como um ator de rádio. Isso quer dizer que o professor comanda a narração, faz uma leitura prévia, e pede para que ela continue em volta. Digo que começa com o professor porque nas escolas se perdeu o necessário e fundamental hábito de leitura em voz alta, todos os dias. Então é comum que um jovem estudante não saiba o valor de um ponto, de uma exclamação, de uma vírgula, de uma pausa – o valor ponderado de uma palavra em determinado contexto. Como poderão entender a maravilha de Manuel Bandeira, na infância com o coração a bater, se não souberem que a moça nua lhe fez o primeiro… ALUMBRAMENTO? Mas entendam, a dramatização dos textos nada tem de dramático. Quero dizer, nada é artifício, artificioso, operístico, melodramático, falso. Ou se fala do que se conhece e do que se vive ou não se fala. Ponto. Deve-se falar do amor, sempre. E nisso não vai nenhum romantismo. Deve-se falar do amor, sempre, porque toda obra é a sua busca ou a sua negação, a sua falta ou plenitude. Mesmo quando se fale da guerra, da violência mais brutal, não se pode esquecer que os meninos no tráfico, por exemplo, amolecem como flores diante de suas mães. Que o bandido mais cruel é capaz de virar o mais perfeito idiota ante a mulher – ou o homem – por quem tenha amor. Apesar de até aqui ter falado de minha própria experiência, devo terminar com duas coisas ainda mais pessoais. Primeira: não consigo até hoje falar de Andersen com profissionalismo, isenção e distância, quando me refiro ao conto “A pequena vendedora de fósforos”. Aquela trajetória da pequena menina que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom nas ruas geladas de uma cidade, que vislumbra pelo vidro embaciado das janelas a ceia posta nas casas burguesas e com profunda fome fica encantada… sei não. E me fere mais, e aí não consigo ir adiante, quando Andersen realiza aquela imagem extraordinária: enregelada, morta, a pequena vendedora sobe: “em um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe… longe da Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo” Esse é um conto que por várias vezes tentei ler em voz alta, em aulas de português para adolescentes pobres, e por mais de uma vez não consegui. Eu lhes dizia: “adiante”, e me virava para a lousa. Segunda. Certa vez, li para alunos com idades em torno de 11 anos o meu conto Daniel. Claro, expurguei os termos mais fortes, chulos, grosseiros do texto. Mas quando eu li: “Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protestos, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas dum pássaro, movendo-se no espaço da fronte”… Quando li o conto, na sala não se ouvia um só riso, apenas respirações ofegantes. Então eu ia para o quadro e desenhava as sobrancelhas, à Monteiro Lobato, para que eles vissem. Depois, já ao fim, quando acrescentei que Daniel raspara aqui e ali o seu estigma, e que “a cirurgia dera nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação”, voltei ao quadro para desenhar os dois pequenos ganchos que ficaram no lugar das sobrancelhas do personagem.