Zona Curva

Memória

Um povo sem memória é um povo sem história.

Os 80 anos da extradição de Olga Benário

por Sergio Caldieri Os 80 anos da extradição de Olga Benário (Olga Gutmann Ben-Ario) ocorrido em 23 de setembro de 1936, foram lembrados pela sua filha Anita Leocádia Prestes, nesta quinta-feira, dia 29/9, no Salão Nobre do IFCS/UERJ, no Largo de São Francisco no Rio de Janeiro, promovido pelo Instituto Luiz Carlos Prestes. Anita Prestes fez um emocionante relato da vida de Olga Benário sacrificada no campo de concentração nazista Bernburg, na Alemanha, em 1942, depois do julgamento e deportação pelos juízes STF dos mesmos togados de capa preta. Olga era filha de um casal abastado em Munique. Seu pai era advogado social democrata e sua mãe filha de banqueiros. Ela saiu de casa aos 16 anos para se juntar à Juventude Comunista de Berlim, onde conheceu Otto Braun, depois seu namorado. Otto foi preso e Olga conseguiu entrar na prisão de Moahit, conseguindo libertá-lo. Fugiram para Moscou, tornaram-se militantes do Cominter, recebendo treinamentos de tiros e paraquedismo. Olga foi convocada para fazer a segurança do líder comunista Luiz Carlos Prestes que estava exilado trabalhando como engenheiro na Rússia e pretendia voltar ao Brasil. Olga já tinha conhecimento do famoso revolucionário Cavaleiro da Esperança. Em dezembro de 1934, arrumaram documentos falsos como se fossem um casal de portugueses em lua de mel, passando por vários países na Europa, EUA, América Latina e por Buenos Aires e Montevidéu. Chegaram ao Rio de Janeiro e foram morar no Méier em março de 1935. Quando os gorilas do Filinto Muller descobriram o paradeiro de Prestes, os policias invadiram a casa e Olga se postou na frente de Prestes dizendo que não podiam atirar, pois estava grávida. Foram separados e presos. Olga ficou na Casa de Detenção, na Rua Frei Caneca, onde estavam várias prisioneiras, entre elas, a advogada Maria Werneck de Castro, a psiquiatra Nise da Silveira, a poeta Beatriz Bandeira, que depois casou com Raul Ryff, a jornalista Eneida de Moraes e a atriz Eugênia Moreyra, esposa do escritor Alvaro Moreyra. Com decisão do STF, embarcaram Olga Benário e Elise Ewert na calada da noite no navio cargueiro La Curuña direto para Hamburgo, sem nenhuma escala em países europeus, pois os estivadores dos portos da Espanha e França estavam dispostos a entrar no navio para resgatar Olga Benário e Elise. Foram para prisão de Barnimstasse, em Berlim. Já havia um clamor mundial pela libertação por Olga Benário. Prestes estava preso e ficou durante 9 anos incomunicável debaixo de uma escada num porão de uma delegacia no Morro da Conceição, no Rio de Janeiro. O advogado Sobral Pinto exigiu do governo a aplicação do artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais para retirar da prisão Elisa Ewert. Como foi advogado de Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, que foi barbaramente torturado pelos gorilas do capitão Filinto Muller. Anita nasceu em 27 de novembro de 1936. Contou que ficou um ano e três meses no campo de concentração e os policiais da Gestapo não deram nenhuma informação do seu paradeiro aos familiares. Com a campanha mundial pela libertação e resgate da filha de Olga, a sua avó Leocádia Prestes e a tia Ligia Prestes percorreram o mundo denunciando a libertação dos presos políticos e as atrocidades nazistas contra a judia e comunista Olga e sua filha Anita. Olga acabou sendo assassinada em 23 de abril de 1942, com mais 200 mulheres na câmara de gás em Bernburg. Prestes e sua mãe Leocádia só tomaram conhecimento através de um bilhete escondido na barra da saia de uma presa.  A Gestapo declarou que a morte foi causada por problemas cardíacos e se a família queria as cinzas. Anita citou várias vezes o excelente livro Olga, do consagrado jornalista e escritor Fernando Morais, como também o  filme Olga do diretor Jayme Monjardim, que teve quatro milhões de espectadores. A comemoração contou com as palestras dos professores universitários Lincoln de Abreu Penna e Sergio Murillo Pinto. A paranoia anticomunista com décadas de atraso

Um gol inesquecível contra Pinochet

por Urariano Mota Carlos Caszely – Entre as imagens que nos vêm a partir do 11 de setembro de 1973, do dia em que houve o golpe militar contra Salvador Allende, entre tantas imagens vivas, uma poderia ser, com razão, do presidente Allende resistindo de capacete em último recurso, com alguns fiéis militantes às portas do palácio La Moneda. Essa imagem fala de um socialista democrata, que pela força das urnas julgava ter o poder, que é destruído ao fim, derrotado com a eloquência maior de bombas e crimes. Outra imagem poderia ser também a que correu mundo, dos livros sendo queimados por soldados do Exército nas ruas do Chile. Em um país de grandes poetas e tradição humanista, essa foto escapou do paradoxo, porque ela se fez coerente com o assassinato do poeta Pablo Neruda pela ditadura. E depois, essa imagem dos livros no fogo é tão simples e pornográfica, ao mesmo tempo de tamanho didatismo sobre a ideologia fascista no seu carbono Pinochet, que um comentário passaria pelo já visto, ao lembrar e repetir ações de Hitler a Franco, todos ótimos queimadores de escritores, livros e inteligência. Então falo rápido sobre uma imagem e personagem que marcam também. Não são muito divulgados no Brasil um gesto, a pessoa e o valor de Carlos Caszely. Ele foi um craque do futebol chileno. A wikipédia informa que Carlos Caszely é o jogador mais popular e querido da história do Colo-Colo e do Chile. Até hoje é chamado de El Chino, El Rey del Metro Cuadrado, ou de El Gerente. Mas o seu maior feito é este: astro da seleção de futebol do Chile, em cerimônia oficial dentro do palácio, no vigor de mortes e fuzilamentos de opositores, Carlos Caszely se negou a apertar a mão do ditador Augusto Pinochet. Ou como ele próprio fala desse momento raro e belo, anos depois: “Eu ouvi passos. Foi pavoroso. De repente as portas se abriram. Apareceu uma figura vestindo uma capa, de óculos escuros e quepe. Tinha uma cara amarga, suja, dura. Ele foi cumprimentar cada um dos jogadores qualificados para a Copa. Quando ele se aproximou, eu botei minhas mãos atrás das costas. Ele estendeu sua mão, mas recusei a apertar. Como ser humano aquela era minha obrigação. Tinha todo um povo sofrendo nas minhas costas”. Mas que coisa. As razões do gesto, desse heroísmo, são anteriores. Não foi um impulso louco. Antes, o jogador havia sido ligado ao ex-presidente Salvador Allende. Ele próprio, o jogador, socialista como o presidente morto. Depois do golpe, Caszely se transferiu para o futebol espanhol. E o que faz a canalha do regime no Chile? Perto da Copa de 1974, os militares sequestram, prendem e torturam a mãe do jogador. Supõe-se que isso era uma tentativa de calar Caszely e obrigá-lo a jogar pela seleção chilena. Entre os perseguidos da ditadura, ele era o principal jogador do futebol chileno, estrela do Colo-Colo e da seleção. Caszely achou o ato de tortura na mãe tão estúpido, que declarou recentemente: “Ainda hoje não está claro por que fizeram aquilo. Eles a prenderam e torturaram selvagemente, e até hoje não sabemos de que ela era acusada. Recordo um país triste, calado, silencioso, sem risos. Uma nação que entrava nas trevas. Eu sabia o que viria de cima. Eu tinha medo. Não por mim, mas por meus amigos e por minha família. Eu sabia que estavam em perigo por minhas ideias”. Então sua mãe é presa, torturada e solta, sem qualquer acusação. E pouco depois o jogador se encontra cara a cara com o ditador, na despedida para a Copa de 1974 na Alemanha. Este é o momento em que Caszely põe as mãos para as costas, enquanto Pinochet se aproximava a cumprimentar um a um. Caszely foi o único a rejeitar o ditador. Enquanto escrevo, ao lembrar esse ato, sinto um cheiro de perfume, daqueles inesquecíveis, cujo cheiro e composição química vêm apenas da lembrança que cerca um gesto. Naquele maldito e mágico ano de 1973, quando o mundo conhecido vinha abaixo, no momento exato em que grandes eram as esperanças, houve esse gesto de Caszely tão pouco ou nada divulgado. Soube faz pouco tempo. Mas que coragem, podíamos dizer. E aqui, se espaço houvesse, deveríamos discutir o quanto estão errados os que julgam ser a coragem um atributo de valentões, de homens que zombam do perigo. Não é. A coragem é a fidelidade ao sentimento de honra, dever ou amor. Por isso dizemos: que afeto e grandeza em ser fiel ao mais íntimo sentimos naqueles braços para trás de Caszely, enquanto avançava contra ele o ditador. Com certeza, o jogador tremia, mas não podia ainda assim ceder à mão de Pinochet no cumprimento. Não sei, mas esse me parece o maior gol de placa da história. https://urutaurpg.com.br/siteluis/na-copa-de-78-o-conselho-ditador-geisel-ao-artilheiro-reinaldo/ Réquiem para Diego  

O humor do Barão de Itararé como antídoto contra a barra pesada

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. Neste vídeo, vamos explorar a vida e o legado de um dos maiores nomes do humor político brasileiro: o Barão de Itararé. Conhecido por seu estilo irreverente e crítico, o Barão deixou sua marca na história do país, utilizando o humor como uma arma para questionar o poder e expor as contradições da sociedade. 4   por Fernando do Valle Barão de Itararé – Após o fracasso da Revolta Comunista de 1935, Apparício Torelly, vulgo Barão de Itararé, foi preso e levado para o navio-presídio Pedro I, ancorado na Baía de Guanabara. Muitos esquerdistas, como advogados, políticos e médicos, mesmo não vinculados diretamente à revolta, foram detidos. Em algumas noites, policiais invadiam as celas e surravam os prisioneiros. Em uma delas, Apparício gritou: “Viva a Revolução!”, os meganhas enfurecidos partiram pra cima dele que completou: ”… de 30!”. Os risos dos prisioneiros desmontaram a agressividade dos agentes do Estado. Popular nos bares e redações do Rio de Janeiro, o Barão aliviava a dura rotina da prisão com piadas e sacanagens. Divertido mesmo foi o depoimento para um improvisado tribunal, na verdade um teatro em forma de tribunal que o presidente Getúlio Vargas inventou para justificar as prisões. Aí vai um trecho do depoimento do Barão, retirado da ótima biografia Entre sem Bater, a vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé, escrita por Cláudio Figueiredo: “- Qual é o seu nome? – Ora, doutor, o senhor então atravessa o Atlântico numa lancha a motor, especialmente para me ouvir, e não sabe o meu nome? – Bom, isso aqui é só uma formalidade. – Mas eu estou completamente informal, nem procurei me vestir. Como é que o senhor me vem como formalidades? O juiz virou-se para o escrivão e disse: “Apparício Torelly.” – Ah, o senhor está vendo como sabia meu nome! E mesmo assim estava me perguntando? Eu sou um homem sério; não faça isso comigo. – Sua idade? – Esse é outro problema… Não sou criança, nasci há muito tempo…  Vou lhe dizer uma coisa: estou numa situação de tamanha pressão mental e nervosa que não me lembro de coisas que aconteceram ontem. E o senhor quer que eu me lembre de quando nasci. Isso é uma coisa de que não tenho a menor noção no momento. Ele se virou para o escrivão e disse: “Quarenta anos presumíveis”. – Presumíveis está muito bem. Aliás, há agora uma teoria em voga que diz que a vida começa aos quarenta. De modo que aceito o palpite. – A que o senhor atribui sua prisão? – Ora, doutor, eu julgava que o senhor é que vinha me dizer o motivo da minha prisão. Estava esperando que o senhor viesse me dizer: o senhor está preso por isso, por aquilo e assim por diante. Então, com toda dignidade, eu iria me levantar e contestar, com grande veemência, desmanchar esse castelo de cartas, essa acusação contra uma pessoa séria… Apesar de a sessão ter seu acesso restrito, ao erguer os olhos o Barão percebeu com satisfação que sua performance contava com uma plateia”. E assim prosseguiu o depoimento do Barão. Leia sobre a Revolta Comunista de 1935, que completou 80 anos no ano passado. Frase do Barão: “Dá-se o nome de família a um grupo composto de uma ou mais pessoas de sexos variados e gênios diferentes, que mantenham permanentemente, debaixo do mesmo teto, uma discórdia perpétua”. Na foto acima, o Barão já está detido na Casa de Detenção, onde conviveu com o escritor Graciliano Ramos, que escreveu sobre o período no livro Memórias do Cárcere. De temperamentos opostos, o Barão dizia que a cabeça do calado Graciliano era uma “panela de pressão fechada e em efervescência que quando explodia era só palavrão e blasfêmia, às vezes tenho vontade de partir-lhe a cabeça para ver o que tem dentro”. Falando em panelas, muitas décadas antes dos sons das panelas indignadas de certa classe média, o Barão, em premonição vanguardista, escreveu breve diálogo com as panelas, a sátira era direcionada a escritores empolados que ouviam a natureza, o coração, essas coisas supostamente superiores, Apparício ouvia as caçarolas: “Ora – direis – ouvir panelas! Certo Ficaste louco… E eu vos direi, no entanto, que muitas vezes paro, boquiaberto, Para escutá-las pálido de espanto. Direis agora: – Mas meu louco amigo, Que poderão dizer umas panelas? O que é que dizem quando estão contigo E que sentido têm frases delas? E direi mais: – Isso quanto ao sentido, Só quem tem fome pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender panelas”. De protestos bem mais criativos do que batucar panelas na varanda também entendia o ainda estudante de medicina em Porto Alegre Apparício. Pelos idos de 1918, Borges de Medeiros, governador gaúcho e adepto do positivismo, censurava com mão de ferro jornais e havia decretado estado de sítio que, entre outras medidas, proibia reuniões com mais de três pessoas nas ruas. Apparício liderou um protesto que ficou conhecido como a “passeata da rolha” que reuniu centenas de estudantes com rolhas nas bocas em filas de dois para não burlar a proibição de Medeiros. Na frente, Apparício também de rolha na boca em exaltado discurso mudo em cima de uma carroça puxada por um burro. A população divertia-se e cada vez mais porto-alegrenses juntavam-se a inusitada manifestação. Ele foi preso com outros dois estudantes e solto horas depois. Cinco anos depois, na chamada Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul, adeptos de Borges enfrentaram os seguidores de Assis Brasil, os maragatos como Apparício, em um violento conflito com fuzilamentos de prisioneiros, estupros e incêndios. Frase do Barão: “Adolescência é a idade em que o garoto se recusa a acreditar que um dia ficará tão cretino como o pai”. Apparício desiste da medicina ao se incomodar com a avidez pelo vil metal entre os médicos e não perdoava o Bastão de Asclépio, tradicional símbolo da medicina que

Sepé Tiaraju, presente!

por Elaine Tavares Rememorando os 260 anos do assassinato do cacique guarani Sepé Tiaraju, um dos grandes da história do povo originário, foi realizado em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, o Décimo Encontro Sepé Tiaraju, que reúne a gente Guarani que vive no Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia. Foi num fevereiro de 1756 que mais de 1500 guerreiros guaranis morreram em combate com as forças coloniais, na histórica batalha de Caiboaté. Naqueles dias ainda vicejavam as Missões, espaços onde os guaranis encontraram uma maneira de viver em paz com os invasores. Mas, ainda assim, por estarem cada vez mais autônomas, todas as missões foram destruídas, com a matança indiscriminada de guaranis e padres pelos exércitos português e espanhol. O lugar onde Sepé Tiaraju tombou hoje é uma fazenda, mas os guaranis, todos os anos, retornam a esse espaço para lembrar seu irmão, com festas e anúncios da Terra Sem Males, lugar de vida plena que eles buscam durante toda sua caminhada por esse mundo. A cada ano que passa mais gente chega, com guaranis de todas as paragens tornando o encontro um espaço continental. Luta e resistência na busca pela demarcação das terras e pelo bem viver. Veja o vídeo do 10º Encontro: Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos.

O filme que o Brasil não podia ver

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. Neste vídeo, falamos das Ligas Camponesas, movimento em prol da reforma agrária e contou com a ajuda da Igreja Católica e do Partido Comunista Brasileiro e de lideranças como Francisco Julião e João Pedro Teixeira.   por Urariano Mota Meus amigos, aquela frase do personagem Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol, quando ele grita: “Mais fortes são os poderes do povo”, eu posso agora adaptar para “Mais fortes são os poderes da pesquisa coletiva na internet”. A razão não é gratuita. Chegou para mim, não faz muito, a revelação de que, finalmente, o Brasil pode ver o documentário que, há muitos anos, jornalistas brasileiros e pesquisadores desejavam ver. Há mais de 5 anos que o procurava. Em registro público, em agosto de 2012 publiquei um texto sobre a minha busca pelo documentário “Brazil: the troubled land”. Esse é um filme que narra a luta pela terra em Pernambuco, realizado para a rede de televisão norte-americana ABC, com imagens de 1961. Mas ninguém sabia informar, até parecia uma lenda. Ao fim de muitas buscas, descobri que o filme existia na Universidade Indiana. Agora seria fácil, pensei então. Mas a resposta não tardou, no inglês que traduzo aqui livre e mal: “Agradeço pelo contato para a pesquisa do filme Brazil: the troubled land. Ele pertence ao arquivo da coleção da Biblioteca da Universidade de Indiana. Reenvio para a arquivista responsável”, que me respondeu: “Para o acesso ao filme que você pesquisa, o ‘Brazil: the troubled land’, nós não o temos digitalizado ou em cópia para ser visto. No momento, o filme está disponível somente nesta biblioteca, ou então, se você desejar obter permissão do proprietário dos direitos autorais, nós  poderíamos fazer uma cópia em DVD para você emprestar ao escritor brasileiro. A McGraw Hill é a editora dona do filme”.  Mas a poderosa McGraw Hill, apesar dos meus pedidos, nada me respondeu para  a liberação de uma cópia. Em desespero de causa, cheguei a solicitar até mesmo a compra de um exemplar, com a ajuda, é claro, de outros jornalistas brasileiros, que também o procuravam. Nada. Mais uma vez, por razões de Estado primeiro, depois por razões do capital, o Brasil deixava de ver a própria cara, num flagrante das relações históricas da opressão em 1961. O escritor e jornalista Antonio Callado fez uma série de reportagens no início dos anos 60 sobre as Ligas Camponesas em Pernambuco e nos mostrou o Brasil que infelizmente perdemos a chance de ser. The Troubled Land havia sido visto nos Estados Unidos, onde alcançara grande repercussão, mas nunca passou nos cinemas ou na televisão brasileira. O Conselho de Segurança Nacional o julgara inconveniente para os padrões nacionais. Mas não desisti. Quase um ano depois, em março de 2013, publiquei um texto cuja introdução observava que a melhor diferença da imprensa na web sobre a do grande capital era a liberdade de pensamento.  E que havia um valor a mais de um texto na internet sobre o de papel: era a sua permanência, com acessos infinitos no tempo  e espaço para a leitura. Assim havia sido com a coluna “Procura-se um documentário sobre o Brasil” , publicada em agosto de 2012. Ela me fizera receber um presente que eu não imaginava. A partir da coluna, recebi então fotos históricas do filme, e a revelação (perdoem a palavra) de um fotógrafo de 76 anos, em 2013, que os estudiosos do cinema não sabiam existir. Era o espanhol Fernando Martinez Lopez, que me enviara fotos maravilhosas em preto e branco do documentário “Brazil, the troubled land”. Fernando Martinez, a partir das perguntas feitas por este curioso, assim se apresentou: “Após busca  entre 4000 negativos, encontrei as fotos, algumas estragadas pelo tempo. Sou espanhol, casado com brasileira e filhos e netos brasileiros. Trabalhei no filme como fotógrafo de still e também como cinematographer… Helen (Helen Rogers, a diretora do documentário) era uma americana bonita e muito inteligente, casada com um cineasta, eles deixaram dois filhos. Para mim, ela era pró-Estados Unidos, pois este filme foi feito justamente para que o Brasil não se tornasse uma nova Cuba. Foi filmado na Zona da Mata de Pernambuco, para filmar a vida de um camponês. Na feira de Carpina encontrou um Severino, cortador de cana, que trabalhava para Constâncio Maranhão. A filmagem demorou aproximadamente 25 dias, tendo a contribuição da Sudene para transporte etc”. Então vinham raridades nas fotos: Helen Rogers, Francisco Julião, Eva (tradutora) e Bill Hartigan. Era um flagrante da política traiçoeira dos Estados Unidos, que enviara uma bem intencionada cineasta ao Nordeste do Brasil, para que documentasse uma nova Cuba em território pernambucano. Mas o filme que era bom, mesmo, nada. E assim se passaram mais de dois anos. Há dias, me chega pelo Face um recado, postado pelo jovem historiador Felipe Genú, com estas palavras: “Senhor Urariano, li um texto seu de 2012, onde o senhor estava à procura do documentário The Troubled Land, da ABC. O senhor já o encontrou?” Respondo: “Não, Felipe, ainda não. Eu desejava mais esse documentário quando escrevia o meu romance “O filho renegado de Deus”. Mas o meu interesse continua”. E o imprescindível pesquisador Felipe Genú: “Senhor Urariano, eu sou historiador, e no momento estou escrevendo uma dissertação sobre o Teatro de Cultura Popular do MCP, do governo Arraes. Depois de ouvir falar no The troubled land, fiquei muito interessado, e pesquisando encontrei uma versão dele posta na internet pela School of Cinematic Arts. Eles o postaram num site chamado vimeo. Basta o senhor se cadastrar e buscar ‘Brazil The troubled land’ que vai aparecer o documentário”. Tudo que pude responder foi: “Genial, Felipe. Muito obrigado, rapaz”. E assim, amigos, para todo o Brasil, eis o vídeo que o grande público não podia ver, que era um verdadeira lenda de pé de cobra. Vejam Francisco Julião em 1961, Celso Furtado na Sudene em entrevista, o latifundiário Constancio Maranhão a se exibir dando tiros para mostrar qual era

Antonio Callado vislumbrou um país mais justo com as Ligas Camponesas antes do golpe de 64

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. Neste vídeo, falamos das Ligas Camponesas, movimento em prol da reforma agrária e contou com a ajuda da Igreja Católica e do Partido Comunista Brasileiro e de lideranças como Francisco Julião e João Pedro Teixeira.   por Fernando do Valle Antonio Callado – No início dos anos 60, uma revolução social se desenhava em Pernambuco com a luta por justiça social pelas Ligas Camponesas. Milhares de camponeses se organizaram em prol da reforma agrária com a ajuda da Igreja Católica e do Partido Comunista Brasileiro e de lideranças como Francisco Julião e João Pedro Teixeira (cuja história foi contada com maestria por Eduardo Coutinho no documentário Cabra Marcado para Morrer). Entre 7 de dezembro de 1963 e 19 de janeiro de 1964, o jornalista e escritor Antonio Callado publicou uma série de reportagens no Jornal do Brasil sobre o movimento reunidas no livro Tempo de Arraes – padres e comunistas na revolução sem violência. Poucos meses antes, Miguel Arraes havia sido eleito governador de Pernambuco e deu suporte às Ligas. Callado já tinha realizado reportagens para o Correio da Manhã em 1959 em Pernambuco sobre o movimento camponês que combatia os desmandos dos coronéis e latifundiários. Animado com o que viu por lá, Callado vaticinou meses antes do golpe: “sob a liderança de Miguel Arraes, Pernambuco se dedicara a mais escassa das atividades deste país: a de fazer História”. Em 1967, Callado publicou Quarup, livro genial que desvenda o Brasil real através das agruras de Nando, um padre idealista, que se dedica à defesa de índios e camponeses. Entre as medidas que contaram com o apoio de Arraes e favoreceram os trabalhadores no campo, houve a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, que entre outras medidas, aumentava em 150% a diária paga aos camponeses da zona canavieira de Pernambuco, que passaram também a ter direito ao 13º salário. O governador Arraes também modificou o trabalho policial, uma das principais engrenagens que mantinha tudo sempre igual há muito, muito tempo. Se antes, a polícia funcionava praticamente como uma tropa exclusiva em defesa dos interesses dos latifundiários e donos de engenhos, agora seus integrantes agiam em defesa do Estado de Direito, respeitando todos, principalmente os mais pobres. “Quem quiser matar camponeses, tem de fazê-lo por conta própria”, sentenciava Callado, denunciando os crimes cometidos pela polícia pernambucana. O convívio com os camponeses das Ligas e o caráter pacífico do movimento enchiam o jornalista Callado de esperança. Ele rechaça o quadro de caos e violência propagado pelos setores conservadores, segundo ele, a situação em Pernambuco “não parece em absoluto encaminhar-se para a guerra civil e sim para uma extrema democratização do Estado”. Óbvio ululante que os latifundiários não embarcaram no entusiasmo de Callado e a reação foi na base da bala para a manutenção do status quo vigente. Entre os resistentes, encontramos Alarico Bezerra, “espécie de latifundiário de literatura de cordel”, que não se conformava com os novos direitos dos trabalhadores como o salário mínimo, 13º salário e indenização pra quem abandonasse suas terras. Com a debandada dos trabalhadores, seu genro sugeriu que ele arrendasse o engenho para outro, Alarico Bezerra revidou: “seu comunista!”. O dono do engenho foi embora para Recife sem pagar os trabalhadores. “O Brasil é um país tão tímido que até hoje não tem História nenhuma. Só temos golpes, a História feita às pressas, envergonhadamente… Pernambuco tomou nojo do Brasil, da injustiça social que a gente procura esconder” (Antonio Callado). A primeira Liga Camponesa surgiu no engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, a 53 quilômetros da capital pernambucana, em 1955. A propriedade congregava 140 famílias de foreiros (trabalhadores que pagam uma taxa para o dono da terra) que não conseguiam mais pagar o valor cobrado pelo proprietário. Aqui vale lembrar o estado de abandono que vivia a população nordestina na época. Só para citar um exemplo, dez anos antes, em 1945, um em quatro bebês morria em Salvador antes de completar um ano. Se em uma das cidades mais importantes da região, a situação era essa, no interior a extrema pobreza, a fome e o analfabetismo eram a rotina de um cenário social dramático. Diante da difícil situação, os trabalhadores rurais fundaram a Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP), a elite local passou a chamá-la de liga de forma pejorativa, pois assim eram chamadas algumas tentativas de organização camponesa que não vigaram na década de 40. O nome vingou e a SAPP passou a ser conhecida como Liga Camponesa, e outras semelhantes começaram a surgir em Pernambuco e na Paraíba. O advogado Francisco Julião, que já atuava desde a década de 40 em defesa dos direitos de camponeses, foi chamado para assessorar a formação da Liga Camponesa da Galileia e o nome de Julião passou a ser identificado ao movimento das Ligas. Muitos até hoje ainda acreditam que foi Julião o fundador da Liga da Galileia, o próprio Julião esclarece que foi procurado por um grupo de camponeses com certa militância política. Segundo ele, uma comissão foi à sua casa e propôs que ele assessorasse o grupo, Julião aceitou de pronto. Como em 1954, Julião havia sido eleito deputado estadual pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), seus discursos na Assembleia Legislativa em defesa de justiça no campo o tornaram símbolo do movimento. Em 1958, Julião foi reeleito com consagradora votação e em 1959, venceu o processo judicial que garantiu a posse das terras do engenho da Galileia para seus moradores, baseando-se em uma lei recém-promulgada que determinava a desapropriação da propriedade com pagamento de indenização ao antigo dono. “Já foi há quatro anos que procuraram Julião no Recife. Sua revolução modesta é hoje uma realidade nacional. Mil pessoas e um bacharel fizeram uma Revolução Francesa em algumas centenas de hectares de terra de cana no Brasil. Julião registrou como sociedade de fins beneficentes a associação dos lavradores (Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, que

A paranoia anticomunista com décadas de atraso

   por Fernando do Valle Quando certa paranoia anticomunista ainda provoca delírios, alguns até cômicos, com certeza esses reacionários de hoje teriam uma síncope se vivessem há décadas atrás, quando duas importantes capitais (Recife e Natal) e a capital do país à época (Rio de Janeiro) foram o cenário da Revolta Comunista que tentou derrubar Getúlio Vargas em novembro de 1935. Muitos conhecem a revolta como “intentona comunista”, apelido depreciativo dado ao governo ao levante, basta dar um pulo ao dicionário que encontramos intentona como um “intento louco, um plano insensato”. A prepotência dos aliados de Getúlio, que apelidaram com desprezo o movimento, talvez se deva à rapidez com que venceram os revoltosos: cerca de uma semana. Quem liderou a revolta foi a Aliança Nacional Libertadora (ANL), fundada poucos meses antes, em maio de 1935. No comando da ANL estavam os comunistas, mas ela reunia democratas, liberais, antiimperialistas, anti-latifundiários e socialistas que se opunham ao avanço do nazi-fascismo. A Aliança chegou a reunir 70 mil filiados, entre eles, militares descontentes com os rumos do governo Vargas que participaram da Revolução de 30. Os militares alinhados ao governo acusavam a ANL de receber “ouro de Moscou” e defendiam seu banimento do cenário político. Com o lema “Pão, Terra e Liberdade”, a ANL tinha entre suas principais bandeiras a urgência de uma ampla reforma agrária. Foi um jovem militante comunista, Carlos Lacerda, quem leu o manifesto de Luís Carlos Prestes que pedia “todo o poder a ANL” que consagrou o Cavaleiro da Esperança como presidente de honra da Aliança. Mais tarde, Lacerda tornou-se um empedernido conservador e ferrenho opositor de João Goulart e Juscelino Kubitschek. O Partido Comunista foi fundado no Brasil em março de 1922, cinco anos após a Revolução Russa de outubro de 1917. Com apenas quatro meses de existência, foi colocado na clandestinidade pelo estado de sítio do presidente Arthur Bernardes. Entre 1924 e 1925, a Coluna liderada por Luís Carlos Prestes lutou contra o governo central. Os planos do levante comunista no Brasil começaram a tomar corpo em Moscou entre o final de 1934 e o início de 1935. Em abril de 1935, Prestes retorna da capital russa e passa a contar com a ajuda de comunistas infiltrados no Brasil como o ex-deputado comunista alemão Artur Ewert, o argentino Rodolfo Ghioldi, além de outros, para articular a revolta. Os planos de Prestes incluíam a tomada do poder e a instalação de um governo popular que prepararia a implantação de um regime socialista no país. “As lutas continuam, porque a vitória ainda não foi alcançada e o lutador heroico é incapaz de ficar a meio do caminho, porque o objetivo a atingir é a libertação nacional do Brasil, a sua unificação nacional e o seu progresso e o bem-estar e a liberdade de seu povo e o lutador persistente e heroico é esse mesmo povo, que do Amazonas ao Rio Grande do Sul, que do litoral às fronteiras da Bolívia, está unificado mais pelo sofrimento, pela miséria e pela humilhação em que vegeta do que uma unidade nacional impossível nas condições semicoloniais e semifeudal de hoje!” (trecho do manifesto de Luís Carlos Prestes). O 21º Batalhão de Caçadores na cidade de Natal abrigou o primeiro levante militar no dia 23 de novembro de 1935. Após 19 horas de confrontos que vitimaram 100 pessoas, os rebelados tomam o controle da cidade e formam o Comitê Popular Revolucionário, com integrantes do Comitê do Partido Comunista. Durante 4 dias, Natal viveu a revolução, mas a reação das tropas do governo massacrou os rebeldes, oficiais foram presos e soldados e militares de baixa patente foram torturados. Com a insurreição em Natal, o secretariado do Partido Comunista do Recife marcou o levante para o dia 24. O levante na Vila Militar enfrentou dura resistência, mas os rebeldes dominaram o quartel e conseguiram marchar em Recife. O governo mobilizou mais tropas e a rebelião também foi debelada na capital pernambucana. Mesmo com a revolta sufocada no Nordeste, o levante aconteceu na capital do país no dia 27 de novembro no 3º Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha, e na Escola de Aviação Militar do Campo dos Afonsos. No momento do levante no Rio, o governo já havia recolhido informações sobre os planos dos revolucionários, o que facilitou a reação das tropas fiéis a Getúlio. Sem contar com a adesão do operariado e da classe média, a rebelião foi violentamente derrotada. A partir daí, uma forte repressão se abateu não só contra os comunistas, mas contra todos os opositores do governo. Milhares de pessoas foram presas em todo o país, inclusive deputados e senadores. Para justificar os arbítrios cometidos, o governo ainda inventou que militares getulistas foram assassinados enquanto dormiam nos quartéis da capital fluminense. Participantes do levante foram torturados e membros do partido comunista que não participaram da revolta também foram presos. Getúlio Vargas aproveitou a histeria anticomunista para prender milhares de opositores, a grande maioria deles não havia participado do movimento revolucionário e mal sabiam o que tinha acontecido. Vargas usou o levante para concentrar ainda mais poderes em suas mãos: militares poderiam ser cassados, garantias democráticas da Constituição foram suspensas e a censura sobre a imprensa aumentou. Prestes só foi preso em março de 1936 ao lado de Olga Benário e libertado 9 anos depois, em 1945, quando recebe anistia de Getúlio Vargas. Sua companheira, Olga Benário, agente comunista alemã, grávida de Prestes, foi deportada pra seu país de origem, em 1942. Depois de dar a luz à filha, Anita Leocádia, em uma prisão da Gestapo (polícia secreta alemã), Olga foi morta em um campo de concentração com 34 anos de idade. Antonio Callado vislumbrou um país mais justo com as Ligas Camponesas antes do golpe de 64 Em 2002, o documentário “O Assalto ao Poder”, de Eduardo Escorel, nos dá mais detalhes sobre a Revolta Comunista de 1935: Em 2013, A TV Brasil entrevistou um dos participantes da revolta, Antero de Almeida, com 107 anos: Os 80 anos da extradição de

Como o general Lott garantiu a posse de JK e Jango em 1955

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. Neste vídeo, exploramos um pouco a história do General Henrique Teixeira Lott, personagem político pouco lembrado, mas que desempenhou papel crucial na história do Brasil. Vem entender melhor como o General Lott impediu um golpe militar e garantiu a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek e seu vice João Goulart, desafiando setores conservadores e lutando pela democracia.   por Fernando do Valle General Lott – Em 1955, o general Henrique Teixeira Lott, infelizmente figura política pouco lembrada da história brasileira, impediu o golpe militar que setores conservadores das Forças Armadas e lideranças da UDN armavam para impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek e o vice João Goulart, vencedores da eleição de outubro de 1955. Os ataques virulentos do udenista Carlos Lacerda contra JK, chamando-o de corrupto e amoral, não impediram a vitória do político mineiro com 36% dos votos sobre seus oponentes: o militar Juarez Távora (UDN/PDC/PSB/PL), com 30%, Ademar de Barros (PSP), com 26%, e o integralista Plínio Salgado (PRP), com 8%, em 3 de outubro de 1955. No seu jornal Tribuna da Imprensa, Carlos Lacerda delirava e mentia descaradamente, criando pânico em setores da classe média antes da eleição. Segundo ele, Jango, com a ajuda do argentino Perón, do PCB e do dinheiro “espúrio” de JK, contrabandeava um arsenal bélico da Argentina para “implantar a ditadura sindicalista” no Brasil. Em 1º de novembro, quase um mês após a vitória da chapa JK-Jango, o coronel Jurandir Bizarria Mamede, ligado à Escola Superior de Guerra, escolheu o enterro do general Canrobert Pereira da Costa (chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e então presidente do Clube Militar) para defender o golpe militar contra a posse dos eleitos, que se realizaria no início de 1956. O efusivo Mamede discursou contra “a corrupção e a fraude dos oportunistas e totalitários que se arrogam no direito de oprimir a Nação nessa mentira democrática”. Após o suicídio de Vargas em agosto de 1954, o vice-presidente Café Filho (PSP) havia assumido o cargo e nomeado o general Lott como ministro da Guerra, que exigiu a punição do coronel Mamede, mas não foi atendido pelo presidente. Nesse ínterim, Café Filho se afasta do cargo por problemas de saúde. Quem assumiu foi o presidente da Câmara, Carlos Luz, do PSD e próximo aos conservadores. Luz foi o presidente com o mandato mais curto da História Brasileira, míseros três dias, entre 8 e 11 de novembro de 1955. No dia 12 de novembro, foi empossado na Presidência da República o primeiro vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Um dia antes da posse de Ramos, o general Lott comandou 25 mil homens, que, em poucas horas, tomaram os pontos estratégicos do Rio, então Distrito Federal. Lott divulgou uma nota direcionada aos comandantes militares exigindo “o retorno da situação aos quadros normais de regime constitucional vigente”. O general garantia a posse de Ramos, que se comprometeu em assegurar a legalidade. No dia 11 de novembro, o Congresso votou o impedimento de Carlos Luz, que acompanhado de Carlos Lacerda, coronel Bizzaria Mamede e parte do Ministério se refugiaram no navio Tamandaré. A intenção dos golpistas era estabelecer um governo paralelo em São Paulo com o apoio do governador Jânio Quadros, o plano fracassou. Amedrontado, Lacerda tentou fugir do país mesmo com as garantias de sua imunidade parlamentar. Buscou abrigo nas embaixadas de Peru e Cuba, que lhe forneceu asilo político. Antes do embarque para Cuba, ainda sob o jugo de Fulgencio Batista, derrubado em 1959 pela Revolução, o deputado escondeu-se durante três dias em uma caixa-d’água seca. “O episódio conhecido como “contragolpe” ou “golpe preventivo” foi mais um entre as diversas intervenções militares na vida republicana brasileira… Se o general Lott não podia ser qualificado como um homem de esquerda, até pelo mesmo pelo seu anticomunismo declarado, definia-se como nacionalista e legalista”. (trecho do livro “João Goulart, uma biografia”, de Jorge Ferreira). Aqui vale retornar um pouco para narrar acontecimentos que explicam os ânimos exaltados em novembro de 1955. Os antigetulistas opunham-se frontalmente às candidaturas de Juscelino Kubitschek e de João Goulart à presidência e vice-presidência da República, apoiados pelo Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Parte da pressão de oficiais das Forças Armadas contra JK veio pela escolha do vice, João Goulart. Em 1953, eles já haviam pressionado Getúlio Vargas pela demissão de Jango do ministério do Trabalho pelo seu projeto de aumento do salário mínimo e proximidade com os sindicatos. Leia texto sobre o mandato de João Goulart como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas. Enquanto isso, Juscelino Kubitschek já se credenciava como forte candidato a presidente, construindo sólida carreira política como deputado federal, prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais. As figuras mais tradicionais do PSD, partido do político mineiro, não apoiaram sua candidatura, mas JK contava com o suporte de setores mais progressistas do partido como o deputado federal por São Paulo, Ulysses Guimarães. “Para os conservadores, e os udenistas, Juscelino, Jango e Getúlio tinham o mesmo significado. Convocado por Café Filho ao Catete, Juscelino ouviu do presidente a ameaça: ou ele desistia da candidatura ou as Forças Armadas dariam um golpe. Juscelino respondeu: “no dia em que o governador de dez milhões de brasileiros, em ordem com todos os preceitos legais e ainda por cima indicado pelo partido de maior eleitorado político do país, não puder ser candidato, acabou-se a democracia no Brasil”. “Depois não diga que não avisei”, alertou Café Filho. (trecho do livro “João Goulart, uma biografia”, de Jorge Ferreira) Sem dúvida, JK ficou em dívida com Lott pelo esforço do militar em garantir sua posse e de Jango. O presidente assumiu em 1956 e o general Lott foi seu ministro da Guerra. Em janeiro de 1959, Lott abandonou a caserna e foi transferido para a reserva remunerada como marechal. A popularidade conquistada em novembro de 1955 garantiu sua nomeação como candidato na eleição de 1960, com Jango

A luta de Harriet Tubman contra a escravidão nos Estados Unidos

por Elaine Tavares Harriet Tubman – Era uma dessas desgraçadas noites de senzala no ano de 1819. Uma negra escrava, entre dores, dava à luz a uma menina. Seus dedos magros a acolheram e apertaram. Mais uma para sofrer. Mas, naquela madrugada, no pequeno condado de Dorchester, no estado de Maryland, Estados Unidos, a menina que arejava os pulmões com gritos fortes não carregaria o peso da dor. Ela seria uma libertária, uma dessas loucas, nojentas, que nada dobra e, anos depois, se tornaria uma das mais importantes “condutoras” de negros para a liberdade. O nome dado pela mãe foi Aramita Ross. Mas muito pouco conviveu com quem lhe deu à luz. Ainda garotinha foi levada para a plantação e ficou sob os cuidados da avó. Com seis anos de idade já estava no trabalho de uma casa branca. Apanhava muito. Uma vez levou uma surra só porque comeu um cubo de açúcar. Ela ruminava a dor e sentia que a vida lhe pesava. Quando completou 11 anos, passou a usar uma bandana na cabeça, indicando que saíra da meninice. Foi aí que mudou de nome. Virou Harriet e já tinha nos olhos o ar da rebeldia. Não foi à toa que quando viu um capataz pedindo ajuda para segurar um negro fujão, se recusou a fazê-lo. Por isso levou um golpe na cabeça e sofreu a vida toda as conseqüências. Conheça outra guerreira das Américas, a peruana Micaela Bastidas. Harriet cresceu ali, na plantação, a matutar. Nunca passou do 1m50. Era pequena, de olhos penetrantes e cheia de ideias de liberdade. Não ia morrer escrava. Quando tinha 25 anos casou-se com um negro livre, John Tubman, e vivia a pensar em planos de escape. Coisa que não achava eco junto ao marido. Ele não compartilhava das loucas ideias que ela sussurrava nas noites de inverno. Mas ela queria ir para o norte, fugir, ser livre também. Aguentou cinco anos e, numa destas noites, escapou no rumo da Filadélfia. Sua fuga foi digna de filme. Ajudada por uma família branca, foi colocada dentro de um saco, num vagão, até estar segura nas casas dos abolicionistas que revezam na rota de fuga. Chegou inteira e logo começou a trabalhar. Do dinheiro que ganhava, guardava uma parte que usava para libertar outros negros. Mas, para Harriet, dar dinheiro não bastava. Aquela alma atormentada precisava agir, e ela decidiu liderar as tropas de negros e brancos que marchavam para as fazendas e libertavam os negros. Fez muitas dessas incursões. Em uma delas, no comando, chegou a libertar 750 negros de uma só vez. Tudo isso já bastaria para tornar Harriet uma lenda, mas ela ainda iria mais longe. Como não era mais uma jovenzinha, decidiu abandonar o comando das tropas e passou a atuar como “condutora”, no que ficou conhecida como a “estrada de ferro subterrânea”. Esta estrada de ferro não era uma estrada de verdade, mas o nome dado à rota de fuga de milhares de negros em todos os Estados Unidos. Uma rede muito bem urdida de estradas, rotas e casas, as quais os negros percorriam e se abrigavam durante a grande travessia para a liberdade. Essas rotas eram pronunciadas junto aos negros sempre com os jargões da estrada de ferro, para que nenhuma suspeita fosse levantada e, justamente por isso, foram chamadas assim. Nesse processo de fuga a figura do “condutor” era, sem dúvida a mais importante. E Harriet se fez um deles. Foi a mais famosa e a mais eficiente. Armada de revólver e da sua atávica coragem ela chegou a carregar mais de 300 pessoas para os estados em que a escravidão já estava abolida. Nunca perdeu qualquer passageiro. Ficou conhecida também a frase que dizia aos seus conduzidos quando empreendiam a caminhada rumo ao norte: “Serás livre ou morrerás”. E foi com essa bravura que também carregou para a liberdade seus irmãos de sangue e seus pais, esta última uma viagem espetacular. Não foi à toa que ficou conhecida como “o Moisés” de seu povo. Harriet era mestra na arte da fuga e do disfarce. Graças a isso entrava e saia do sul escravista a qualquer hora. Em 1857 sua cabeça valia o prêmio de 40 mil dólares. Nunca foi pega. Durante a guerra civil estadunidense ela, já entrada nos anos, ainda serviu como enfermeira e espiã das forças federais. Seu nome é reverenciado até hoje por todos os negros e negras daquele país como uma mulher que não aceitou a sua condição e, generosa e solidária, deu sua vida para garantir a liberdade dos negros. Morreu velhinha, em 1913, considerada uma heroína nacional. Mesmo assim, foi só em 2003 que o estado instituiu o dia 10 de março (dia de sua morte) como o dia de Harriet Tubman, a Moisés do povo negro estadunidense, a condutora, aquela que nunca abriu mão da liberdade. “Há duas coisas que tenho direito: a liberdade ou a morte. Se não tiver uma, tenho a outra. Nenhum homem neste mundo vai me tomar a vida”. E assim foi. Hoje, contam os negros, quando apita um trem lá para os lados do sul, todo aquele que sofre alguma prisão, seja física ou espiritual, sente um arrepio. É Harriet, a condutora, chamando para a grande travessia. E sempre há quem se levante e encontre o caminho. Publicado originalmente no blog Palavras Insurgentes.   Violência contra pessoas negras denuncia a gravidade do racismo Viva Pagu

A fibra da guerreira latina Juana Azurduy

por Elaine Tavares Dos muitos “causos” ouvidos sobre Juana Arzurduy, um particularmente sempre me assombrou. Na guerra de independência contra a Espanha, acuada em uma gruta, ela lutou, espada em punho, contra dúzias de soldados, para proteger as duas filhas que levava enrodilhadas ao corpo. Abriu passagem e conseguiu fugir. Só um dos feitos heroicos dessa mulher altaneira, chamada de “sol do Alto Peru”. Teve seis filhos e cinco os perdeu nas batalhas pela liberdade. Duas das filhas nasceram no fragor da guerra. Apenas uma sobreviveu. Juana Azurduy Bermúdez nasceu em 12 de julho de 1780 num pequeno povoado da região de Potosí, hoje Bolívia. Mas, na época das guerras pela independência, o lugar conformava o vice-reinado do Alto Peru, incorporando também o que hoje é Argentina, Uruguai e Paraguai. Filha de um rico fazendeiro espanhol com uma mulher indígena de Chiquisaca, ela foi educada nos melhores colégios de freiras. Na juventude, órfã, seu destino era ser freira, mas a rebeldia que já desfraldava na mocidade a levou a ser expulsa do convento quando tinha apenas 17 anos. Conheça a luta de outra guerreira latino-americana, Micaela Bastidas  Tinha já 25 anos de idade quando decidiu casar-se com Manuel Ascencio Padilha em 1805 e quando explodiu a revolução libertadora em Chuquisaca ela e o marido somaram-se aos rebeldes em armas. Naqueles dias os revolucionários foram vencidos e suas cabeças colocadas a prêmio. Apesar disso, eles continuaram na luta e quando Buenos Aires se levantou em 1810 se alistaram no Exército Auxiliar do Norte para combater os realistas. Em 1811 o exército espanhol avançou pelo Peru, Juana e seus quatro filhos foram presos, enquanto o marido conseguia fugir. Dias depois, Manuel conseguiu resgatar a todos e mais uma vez escaparam. Em 1812 Manuel e Juana estavam integrados às tropas de Manuel Belgrano, com mais dez mil companheiros. Foram muitas batalhas travadas e Juana sempre à frente dos batalhões. Foi ela quem comandou o vitorioso ataque ao Cerro de Potosí em 1816, garantindo assim o posto de tenente-coronela. E justamente na batalha de La Laguna, quando ela foi ferida gravemente, o marido, na tentativa de resgatá-la, acabou morto. Ela seguiu na batalha, acompanhando Miguel de Guemes até a morte deste em 1821. No ano de 1825, o então libertador Simón Bolívar a encontrou e ao ver a condição de miséria a que estava reduzida, cobriu-se de vergonha. Juana era uma heroína da independência. Por conta disso deu a ela o grau de coronela. “Esse país não deveria chamar-se Bolívia em minha homenagem, mas sim Padilha ou Azurduy, porque foram eles que o fizeram livre”, disse Bolívar. Com a morte de Bolívar em 1830 e o fim do sonho da Pátria Grande, também Juana caiu no esquecimento e andava vagando pelas selvas do chaco argentino. Sabe-se que passou muitos anos vivendo na cidade de Salta, sem qualquer patrimônio visto que todos os seus bens tinham sido confiscados. Até mesma a pensão que ganhava como coronela lhe foi tirada em 1857. Uma das maiores expressões da luta pela independência nos campos da Bolívia e da Argentina morreu como indigente no dia 25 de maio de 1862, aos 80 anos de idade e foi enterrada em uma fossa comum. Só cinco anos mais tarde seus restos foram levados para um mausoléu erguido em sua homenagem na cidade de Sucre. No ano de 2009 a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner outorgou a Juana o posto de generala do exército argentino e no ano seguinte levou até Sucre o famoso sabre com o qual Juana esgrimiu os inimigos da independência. Agora, no mês de julho desse ano de 2015, uma gigantesca estátua da valente guerreira foi erguida na praça que a partir de então leva seu nome, bem atrás da Casa Rosada, em Buenos Aires, presente em bronze do presidente Evo Morales.  Na Bolívia, Juana recebeu o título de Mariscala do Estado Plurinacional e foi declarada como Libertadora da Bolívia. A estátua de Juana foi colocada onde antes estava a de Cristóvão Colombo que foi transladada para a região da Aduana onde os imigrantes italianos – que doaram a estátua do navegador – pisaram pela primeira vez no solo argentino. Esse já era um desejo antigo da colônia italiana e não houve qualquer constrangimento. A expressiva estátua da generala foi construída pelo escultor Andrés Zerneri, pesa 25 toneladas e tem nove metros de altura. A postura, sabre em punho, retrata seu perfil mais conhecido: guerreira, valente e audaz. A obra levou três anos para ser concluída e envolveu o trabalho de mais de 45 pessoas. Agora, a figura altaneira dessa mulher incrível descansa na praça argentina e pode ser reverenciada por todos que conhecem sua história e sabem da valorosa contribuição que deu à libertação de “Nuestra América”. Texto publicado originalmente Institutos de Estudos Latino-americanos. Sem Brasil, Celac encerra conferência com pautas conjuntas