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Política análise

Análises de nossos colaboradores sobre a conjuntura política.

Sobre o que somos no capitalismo

Não há novidades na vida daqueles que não são proprietários, que não pertencem à classe dominante. Seu cotidiano é o do não-ser. Eles não existem como pessoas, que têm nome, sobrenome, filhos, sonhos. Não. O que não faz parte do 1% que domina é considerado um número, uma estatística, um receptáculo de força de trabalho. Nada mais. Mesmo os alto executivos, que dependem de salários, ainda que polpudos, estão na mesma condição. Um belo dia o patrão cansa, e adeus. Quando o capitalismo começou a se firmar, a riqueza de poucos proprietários de terra e fábricas se fez em cima do trabalho duro da maioria das pessoas que eram arrancadas de suas terras, recebendo como prêmio a liberdade. Não mais prisioneiros do feudo, mas livres para trabalhar onde quisessem. Essa era a promessa, mas a toada era de fato outra. Marx, no livro “O Capital” conta como tudo aconteceu na Inglaterra. Ele diz: “Os recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam”. Ou seja, não era uma escolha. A terra ficara para trás e só restava o trabalho pesado nas fábricas. Mas, como empregar toda aquela multidão que estava sendo expulsa do campo? Impossível. Muita gente ficava pelo caminho, amargando a mendicância. E o que faziam as pessoas de bem daquela época? Ajudavam, sentiam compaixão? Não! Aplicavam leis perversas. Em 1530, na Inglaterra, a miséria era tanta entre os velhos que eles recebiam licença para mendigar. Isso era o máximo que se fazia por eles. Já os adultos que não conseguiam trabalho tinham como punição o açoitamento e a prisão. E se ao sair da prisão não encontrasse um emprego a pessoa podia ser escravizada. E quem escravizava a criatura desafortunada? Aquele que o denunciava como vadio. Era a lei. No reinado de Elizabeth os mendigos que eram pego sem licença, mesmo se velhos, eram açoitados e os que com mais de 14 andassem na “vadiagem” podiam ser surrados e ter a orelha esquerda marcada a ferro. E caso ninguém quisesse dar emprego ao cristão, ele poderia ser executado. Eis a liberdade do capital no início dos seus tempos. “Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue a vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter por meio de leis grotescas e terroristas e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado”. Olhando para hoje, o que mudou? Façam o exercício de pensar. Nos dias que correm os “vagabundos” seguem sendo marcados a ferro, sem chance de se erguer. E são denunciados pelos seus iguais, que só se diferem um pouco pelo fato de terem conseguido um emprego para ser explorado. Mas, no fundo, fazem parte do mesmo grupo, daqueles que precisam vender sua força de trabalho para poder comer ou sustentar seus pequenos luxos. Os empobrecidos pelo sistema capitalista nunca estarão empoderados, em nenhuma situação. Sobre eles pesa a realidade concreta. Se não tem trabalho, não come. E não há trabalho para todos. Se o vivente cai na droga, na bandidagem, no vazio, não há quem lhe estenda a mão. O sistema organiza e impõe a concorrência, a disputa. É matar ou morrer. No Brasil, o presidente falastrão é só um gerente desse sistema de morte. Por isso não há novidade no grotesco do discurso. O que ele diz é o que diria um lord inglês no século XVI, XVII ou XVIII. O que ele diz é o que dizem os megaempresários nas suas mesas de negócio. O que ele diz é o que dizem os banqueiros que desalojam gente de suas casas. Morte, tortura, açoite, bala. É o normal da classe dominante e dos seus cães de guarda. A sua volta, voejam as moscas, os que riem dos torturados, dos assassinados, dos desaparecidos. Os que pensam que seu dia nunca chegará. Ele chega irmão. Por que se a pessoa não é dona dos meios que garantem a produção do que vai lhe gerar a vida ela está em permanente risco. Mesmo o maior puxa saco do planeta pode cair em desgraça. Porque que os poderosos são assim. Não veem pessoas. Eles veem coisas. E coisa se chuta. Resumindo a ópera. O inimigo é o sistema que torna a maioria das gentes uma coisa. Os gerentes vêm e vão, são melhores ou piores, mas a desgraça permanece. Então, quando um cão de guarda rosna, há que avançar para além dele, destruindo aquilo que ele guarda. É tempo de ir à fonte. Tio Sam, ajuda aí… Um dia na Ocupação Manoel Aleixo, em Mauá No capitalismo, o governo é dos ricos

Brasil, uma vertigem

Primeiro foi a reforma trabalhista que retirou direitos dos trabalhadores. Todas as vantagens para o patrão. Nada de carteira assinada, nada de multa por demissão sem justa causa, nada de incomodação na justiça, até porque a Justiça do Trabalho também se acabou. A propaganda era boa: o trabalhador estará livre, poderá escolher seus horários. Boa parte das gentes acreditou e vibrou. E veio o trabalho temporário, intermitente, sem qualquer vínculo. A uberização da vida. Todos os riscos são do trabalhador. E se ficar doente, tá morto. Porque se não trabalha no dia, não ganha. Não há direitos. Agora, já definida em primeiro turno, com todas as chances de ser mais uma estrondosa vitória no segundo, está pronta a reforma da Previdência. Toda a sorte de maldades contra os trabalhadores. Uma grande vitória para os empresários. Mas, para quem vive do trabalho a reforma é a destruição de sua velhice. Há que se trabalhar 40 anos seguidos para se pleitear algum alento nos últimos anos de vida. Poucos conseguirão chegar lá. Para a maioria será o chicote da exploração até a boca da cova. E nem bem os brasileiros começavam a digerir a amarga derrota no parlamento, que foi comprado com emendas somadas em mais de dois bilhões, o governo anuncia mais uma medida para arrebentar a vida dos empobrecidos. Pois o Ministério da Saúde rompeu contrato com os laboratórios que produziam remédios para serem distribuídos gratuitamente.  São 19 remédios que não mais serão disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, deixando na mãos mais de 30 milhões de pessoas que usam os medicamentos regularmente. Pessoas com câncer, diabetes e dependentes de transplantes. A jogada é clara. A intenção do governo é acabar com os laboratórios públicos que produzem esses remédios a um custo bem mais baixo e passar a comprar os medicamentos das farmacêuticas transnacionais. Mais um golpe na produção nacional e a entrega de bandeja para os grandes conglomerados. O lema de “Brasil acima de tudo”  é mesmo para inglês ver. Ingleses, alemães, estadunidenses e toda a sorte de empresas estrangeiras que irão encher as burras. O ministro já disse que os pacientes não serão afetados porque os remédios chegarão. Pode até ser. Mas, o custo para o país certamente será triplicado.  Mais dinheiro escoando para o monopólio farmacêutico e pau nos laboratórios nacionais. Também na última semana circulou a notícia de que o governo já estava pensando em introduzir a mensalidade nas universidades públicas, o que será mais um golpe sobre a classe média e os mais empobrecidos. E se articula também o fim do Sistema Único de Saúde, de gratuidade universal, que é modelo para muitos países. O governo de Jair Bolsonaro  quer passar a régua entregando os recursos dos trabalhadores para os Bancos, as Farmacêuticas, os empresários do Ensino e os mercenários da Saúde. A intenção é de que tudo que é público se acabe. E, apesar de toda essa trama contra os brasileiros, a população ainda está paralisada, dividida entre os que aplaudem sua própria desgraça e os que não encontram como expressar de maneira coletiva a sua revolta. As reações são pontuais e esporádicas. A massa se move ao sabor dos factoides criados para encobrir o verdadeiro desastre que se aprofunda a cada dia. O Brasil vive mesmo uma vertigem, que começou no dia primeiro de janeiro e que ao chegar quase ao final de julho, ainda cega a maioria. Como a desgraça vai atingir primeiro os mais empobrecidos, a reação ainda deve demorar. Por enquanto restam alguns “Jeremias” que, tal e qual o profeta, gritam no deserto, apontando os horrores e chamando para a luta. Poucos dão atenção e ainda há marchas de apoio à destruição do país. Há os que só esperneiam no facebook, terreno do inimigo, e há os que sequer querem saber do que está acontecendo. É de amargar. E a vida mesma, vai esboroando. O declínio social e econômico brasileiro O presidente invisível  

Pós-democracia

O banqueiro David Rockefeller declarou à Newsweek International, em fevereiro de 1999: “Nos últimos anos há uma tendência à democracia e à economia de mercado em muitas partes do mundo. Isso reduziu o papel dos governos, algo favorável aos homens de negócios. (…) Mas a outra face da moeda é que alguém tem que tomar o lugar dos governos, e o business me parece a instituição lógica para fazê-lo”. A queda do Muro de Berlim, em 1989, marca a rejeição ao estatismo. Em 1979, Hayek, guru do neoliberalismo, já advogava “destronar a política” em nome da “espontaneidade” do mercado: “a política assumiu lugar importante demais, tornou-se muito onerosa e prejudicial, absorvendo muita energia mental e recursos materiais”. É o que vem acontecendo mundo afora. Decepcionados com a política e os políticos, os eleitores são convencidos a escolher empresários, na esperança de que governem o país tão bem quanto o fizeram em seus empreendimentos. Na longa lista de empresários alçados a governantes destaco Berlusconi (1994) na Itália; Piñera (2010 e 2018) no Chile; Macri (2015) na Argentina; Trump (2016) nos EUA; e Macron (2017) na França. Esses homens nutrem a ambição de gerir o Estado como uma empresa familiar, como prometeu Erdogan ao assumir o governo da Turquia. Nessa ótica, as instituições democráticas são desprestigiadas e encaradas como estorvo ao desempenho do presidente-CEO. Este, convencido de seu carisma, adota uma prática “decisionista”, termo criado pelo jurista nazista Carl Schmitt em seu Teologia política (1922) para expressar o modo de tomar decisões com autoridade e determinação, sem se preocupar com as consequências. Ocorre, portanto, um processo de enfraquecimento do Estado e fortalecimento das corporações empresariais e da instituição fiadora da liberdade do capital sobre os direitos de cidadania, as Forças Armadas. O Estado, agora uma instituição híbrida, é despolitizado, reduzido à função de mero gestor, o que explica a supressão de Filosofia e Sociologia em universidades públicas. E as corporações assumem o papel de novos sujeitos políticos e seus tentáculos se estendem pelas malhas do Estado, como o comprova a Lava Jato, sobretudo nos casos da Petrobras e da Odebrecht, e as bancadas corporativas no Congresso Nacional. Fenômeno semelhante ocorreu com a modernidade ao desbancar a reforma gregoriana dos séculos XI e XII, quando o Estado-Igreja cedeu lugar às instituições democráticas, ora ameaçadas pela “privatização” do espaço público e dos direitos civis, como atesta a proposta de capitalização na reforma da Previdência. O dever do Estado se desloca para a defesa dos privilégios da elite empresarial e bancária. No Estado-Igreja, a ideologia predominante era a teologia. No Estado-empresa, a hegemonia cultural é assegurada pela laicidade das empresas-mecenas, como outrora a Petrobras ou a multiplicidade de institutos culturais do sistema S, dos bancos e de outras corporações, como Google, Amazon, Facebook etc. O advento do Estado-empresa comprova a “revolução passiva” apontada por Gramsci, reformar para preservar ou, nas palavras de outro italiano, Lampedusa, “mudar para que tudo permaneça como está”. A corporocracia é a face da pós-democracia. E entre as corporações se incluem as Forças Armadas, supostamente despolitizadas. Daí o incômodo do presidente-avatar e do poder Executivo-empresário com a não submissão dos parlamentares e do Judiciário. Na lógica de qualquer empresa, os que resistem às decisões do comando devem ser sumariamente excluídos. O Brasil das corporações acima de tudo e o deus criado à imagem e semelhança deles acima de todos. Frente a essa ameaça, o desafio é intensificar a repolitização da política e a desprivatização do Estado. Isso só se dará pelo fortalecimento das instituições democráticas e, sobretudo, dos movimentos sociais, de modo a ampliar os mecanismos de protagonismo popular na esfera do poder. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Querida democracia

Governar pelo medo

Governo Bolsonaro – Esta é a hora dos avatares e arrivistas. Abaixo os políticos, e bem-vindos os que politicamente encarnam a antipolítica, como Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, Macri na Argentina, Macron na França etc. Na Ucrânia, o comediante Volodymyr Zelenskiy, sem partido estruturado, se elegeu presidente com 73% dos votos. Uma poderosa máquina ideológica, favorável à privatização do Estado, induz o povo a não acreditar mais em políticos, partidos e no poder público. Agora, cada um por si e Deus por mim. Depois da satanização do socialismo, chegou a vez do repúdio à democracia liberal voltada à promoção da igualdade de direitos. Nem o pacto, que lançou as bases do Estado de bem-estar social, merece crédito. As desigualdades se aprofundam. E o sistema já não encara como problema, e sim como solução, os crescentes endividamento dos pobres e enriquecimento dos ricos. No filme “Batman – o cavaleiro das trevas”, o Coringa sugere: “introduza um pouco de anarquia. Perturbe a ordem vigente, e tudo se torna o caos. E sabe qual é a chave do caos? O medo!” O medo leva as pessoas a trocar a liberdade pela segurança. Os condomínios de ricos são verdadeiras penitenciárias de luxo. Os gastos com empresas de segurança, blindagem de veículos e equipamentos de controle são exorbitantes. E o governo se transforma em garoto-propaganda da indústria bélica. A paz, que todos almejamos, não virá como fruto da justiça, conforme propôs o profeta Isaías (32, 17), e sim do equilíbrio de forças. Comprem armas, inscrevam-se em academias de tiro, transformem suas casas em arsenal! Pátria armada, Brasil! Se o Estatuto do Desarmamento, como sinal amarelo para a posse e o porte de armas, não impede que bandidos possuam armas privativas das Forças Armadas, é fácil imaginar o que ocorrerá com o sinal verde. O Brasil, campeão mundial de homicídios, com mais de 60 mil assassinatos por ano, recebe agora incentivo estatal para o comércio de armas. E em nenhum momento o governo se pergunta pelas causas de tamanha violência. Combater seus efeitos equivale a tentar apagar incêndio com gasolina. Como dizia Darcy Ribeiro, quanto menos escolas, mais cadeias. Muitas são as propostas para cortar gastos do governo, coroadas pela “miraculosa” reforma da Previdência. E nada de medidas para arrecadar mais, como o imposto progressivo. Entre 2013 e 2016 a arrecadação caiu 13%. O governo nem cogita suprimir o pacote de bondades à turma do andar de cima – isenções, subsídios, créditos facilitados, anistias fiscais etc. Em 2003, as benesses do governo aos mais ricos equivaliam a 3% do PIB. Em 2017, 5,4%. As isenções tributárias equivaliam a 2% do PIB em 2003. Em 2017, 4,1%. Os subsídios financeiros e creditícios correspondiam a 1% do PIB em 2003. Em 2017, 1,3%. Se o Brasil retornasse aos índices de 2003 nos itens acima haveria uma economia de 2,4% do PIB ao ano. Ou 24% do PIB em 10 anos, ou seja, R$ 1,6 trilhão em 2018, valor 60% superior ao que o ministro Guedes ambiciona com a reforma da Previdência. Segundo Fagnani e Rossi (2018), gastos de 1% do PIB com educação e saúde gerariam, respectivamente, crescimento de 1,85% na educação e 1,7% na saúde. No Bolsa Família e na Previdência cada 1% do PIB de investimento a mais eleva a renda das famílias em 2,25% (Bolsa Família) e 2,11% (Previdência). Não é no grito que se governa uma nação e se promove o desenvolvimento. Isso exige algo que muitos eleitos não querem e não sabem fazer: política. A arte de buscar consenso e erradicar as causas dos mais graves problemas. Mas isso não é para amadores. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Perdemos o bonde da história Por que tanto medo? A Lava Jato produziu o governo Bolsonaro

O declínio social e econômico brasileiro

Declínio social – O IBGE divulgou, na última semana de fevereiro, que o desemprego voltou a crescer no Brasil. Agora são 12,7 milhões de pessoas. Quem se encontra nessa situação, ou já passou por isso, sabe como é terrível estar desempregado. A autoestima se reduz, as incertezas assustam, a insegurança se aprofunda. Como pagar o aluguel, o gás, a luz, o telefone, e as prestações dos eletrodomésticos? O trabalho é o nosso fator de identidade social. Quando somos apresentados a uma pessoa não basta saber-lhe o nome. Paira a pergunta: e o que faz? A resposta qualifica socialmente o interlocutor. Segundo levantamento do Instituto de Economia da Fundação Getúlio Vargas, no final de 2018 a desigualdade se agravou devido à dificuldade de os trabalhadores menos qualificados aumentarem seus rendimentos. O governo modificou os critérios de aumento anual do salário mínimo, o que reduziu o poder aquisitivo dessa parcela da população. Desde 2015, o salário mínimo não tem ganho real, porque o PIB, que mede a riqueza do país, encolheu em 2015 e 2016. E piorou com a reforma trabalhista da gestão Temer, porque o emprego informal, quase sempre desqualificado, passou a pagar salários indignos, muito aquém das necessidades básicas dos empregados. O Brasil é, hoje, o 9º país mais desigual do mundo, e o 1º da América Latina. Os outros oito países mais desiguais ficam todos na África. Hoje, a renda média da metade mais pobre da população é de R$ 787,69 por mês, inferior ao valor do salário mínimo (R$ 998). Sessenta por cento dos brasileiros sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês. Em 2016, os pobres tinham renda média de R$ 217,63. No ano seguinte, R$ 198,03. Perda de 9%. Já os 10% mais ricos tiveram 2,09% de aumento na renda, que chegou a R$ 9.519,10 por mês. Desses 10%, 12 milhões ganharam até R$ 17,8 mil de renda tributável. E a parcela de 1% mais rico, que abrange 1,2 milhão de brasileiros, teve rendimento médio superior a R$ 55 mil por mês (Oxfam). Portanto, ainda que o PIB volte a crescer, isso não significa que haverá aumento da renda dos trabalhadores. A desigualdade é agravada pela apropriação abusiva que uma pequena parcela da sociedade faz da riqueza nacional. O Brasil é um país de jovens. Nessa faixa etária, segundo a ONU (Pnud), o desemprego em nosso país é de 30,5%, o maior percentual da América do Sul. E um em cada quatro jovens integra o time dos “nem nem”, ou seja, aqueles que nem trabalham nem estudam. Ora, não é preciso ter bola de cristal para saber como esses jovens conseguem bancar seus gastos. Ou desfrutam de renda alheia (família, herança etc.) ou recorrem a atividades ilícitas (narcotráfico, contrabando, roubos etc.). Os economistas do FMI e do Banco Mundial, que controlam as finanças internacionais, defendem que, para o Brasil crescer, é preciso impor austeridade, promover ajuste fiscal, respeitar o teto de gastos e fazer a reforma da Previdência. Como diz Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia (2001), o capitalismo só cresce se contar com produtores e consumidores. Mas hoje o sistema tem como foco principal a financeirização da economia, denunciada por Piketty. Com um PIB de R$ 6,3 trilhões, o Brasil é um país rico. Daria para toda a nossa população viver muito bem. Somos 208 milhões de habitantes. Dividido o valor do PIB pelo número de habitantes, cada um teria uma renda anual de R$ 30 mil. Ou R$ 10 mil por mês para cada família de 4 pessoas, o que asseguraria a todos uma vida digna. Portanto, como alerta o economista Ladislau Dowbor, o problema brasileiro não consiste na falta de recursos. Reside na falta de justiça e de distribuição da renda. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Austericídio e desemprego

Luiz Fux e a covardia ativa

O Dicionário Aulete registra para cobardia (o mesmo que covardia): “s. f. || fraqueza de ânimo, pusilanimidade, medo, timidez, acanhamento”. O Dicionário Houaiss, mais extenso, define: “comportamento que denota ausência de coragem; atitude, gesto que se caracteriza pelo temor, pelo acanhamento, pela falta de ousadia 2 violência contra o mais fraco sinônimos cobardia, cobardice, covardice; ver tb. sinonímia de timidez e antonímia de coragem” O ministro Luiz Fux do STF, ao suspender a investigação das irregularidades de Flávio Bolsonaro, ampliou e muito o sentido que os dicionários dão à palavra covardia. Notem que pelo Aulete o covarde é o tímido, o acanhado, o medroso, o pusilâmine, o fraco de ânimo, vale dizer, o fraco de vontade ante um desafio. Ou seja, pelo Aulete, em sua definição museológica, Fux não foi covarde. Pelo contrário, foi desinibido, cheio de ânimo e vontade a favor de Bolsonaro. Como seria covarde pelo Aulete? Pelo Houaiss, tampouco. Aqui, mais uma vez, Fux (Fiat Lux?) mostrou atitude, ousadia, e não usou de violência contra o mais fraco motorista, que na verdade é representante legal do filho do Chefão na presidência. Então, como ser covarde pelo Houaiss, que o definiria como até corajoso? Para sua atitude, faltam novas definições. A esta altura, temos que pôr um sentido social e político para a palavra Covardia, que os dicionários poderão registrar depois da mais recente decisão de Luiz Fux. Diferente daquelas pessoas omissas que viravam o rosto, fingiam nada saber ou conhecer dos fornos crematórios sob o regime nazista, e faziam de conta que nem sentiam o fedor de carne queimada na vizinhança, Fux é um homem transformado sob os Bolsonaros. Dele não se dirá que se ocultou sob o anonimato, que fingiu não ver. Pelo contrário, ele viu, soube, sabe, conhece e proclama que mudou o também o sentido de foro privilegiado. Para um simples privilegiado das circunstâncias deste Brasil, ele não vira o rosto, ele o mostra à lux das câmeras, como se gritasse o feito heroico. Parece dizer, “aqui, ninguém é mais novo covarde que eu”. Diferente ainda dos covardes que engrossam a multidão que espanca um marginal, que põe fogo em um acusado, que chuta cachorro morto, que mete socos, pontapés e barras de ferro em um homem dominado, não, disso ele é incapaz. Seria indecoroso da sua parte, até porque a qualidade dos seus ternos obriga a uma outra falta de coragem. Ele é ministro do STF, ele se põe e se pôs no centro do noticiário ao decidir contra a apuração de manifesta “ilicitude”, um eufemismo para corrupção. A sua decisão define um novo tipo e palavra. Assim como no Brasil de hoje temos a ignorância mais desavergonhada, que não mais se oculta sob pudor e inferioridade diante da cultura e da ciência, que esbraveja e zurra que a terra é plana, que a mudança de clima é invenção de marxistas, ou que a teoria de Darwin é uma hipótese sem provas, assim também Luiz Fux inaugura uma nova definição para covardia. Ele está pleno, supremo da Covardia Ativa. Ele é o novo covarde. Parodiando Orlando Silva, quando ao ser chamado de poliglota, depois de apresentações na Argentina, respondeu: “Sim, poliglota, mas dos ativos”, podemos dizer que Fux marcou para sempre o Princípio da Covardia Ativa: aquela que sem pudor se mostra aos olhos de todo o mundo. Imune à vergonha, orgulhosa de si. Que tempos, que novos dicionários. Já é uma tragédia

Já é uma tragédia

Nesse momento do Brasil, eu gostaria muito de usar o tom cordato que aprendi na política, e dizer: “votei contra Bolsonaro, mas agora vou torcer pra dar certo, porque ele é o presidente de todos os brasileiros”. Esse bom-mocismo é sempre recomendável nessas horas, até por respeito à divergência de pensamento. Mas lamentavelmente, não dá nem pra ensaiar uma frase absurda dessas. Em menos de 24h, o governo Bolsonaro já representou um doloroso e brutal retrocesso aos parcos avanços históricos da democracia brasileira. Bolsonaro extinguiu o CONSEA! Sim, fechou as portas do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, em um momento em que o Brasil está retornando ao mapa da fome! É que na cabeça alucinada da extrema-direita, órgãos de Segurança Alimentar são coisa de “comunista”… Além disso, Bolsonaro entregou a demarcação de terras aos ruralistas! Colocou a raposa pra tomar conta do galinheiro. Bolsonaro extinguiu o Ministério da Cultura, porque na mentalidade absurda da extrema-direita, os artistas são todos comunistas chupando o sangue do estado brasileiro através da Lei Rouanet… (será que esses caras ouvem música? Será que assistem filme?). O presidente também retirou a população LGBT da matriz dos Direitos Humanos (o Brasil é o país que mais mata LGBT+ no mundo, um a cada 19 horas). E mais. Bolsonaro elegeu, como um de seus primeiros atos, diminuir o salário mínimo. Sim, diminuir. Porque Temer havia anunciado aumento para R$ 1.006, e Bolsonaro reduziu para R$ 998. Bolsonaro demonstrou como tratará a liberdade de imprensa, ao submeter os jornalistas, em sua posse, a falta de condições de trabalho e regras torturantes e inaceitáveis (quase nenhuma palavra sobre isso no Globo e no Estadão de hoje!). Bolsonaro anunciou que vai determinar, por decreto, a universalização da posse de armas. E quanto aos históricos e graves problemas da educação brasileira, Bolsonaro acha que a solução deles é “eliminar o marxismo das escolas” (ele não explicou como um país cujas escolas são marxistas é capaz de eleger a extrema direita). Bolsonaro também deu espaço ao delírio, ao dizer que vai libertar o povo do socialismo (em um país onde os bancos lucram fortunas mesmo na crise, e onde apenas seis brasileiros controlam metade da fortuna nacional), e também vai libertar o povo do “politicamente correto” (oi?!). Além disso, vai acabar com a “ideologia de gênero”, conceito que não quer dizer coisa alguma. Faltou ele prometer acabar com os duendes na floresta Amazônica, com a visita dos ETs a Varginha, e com o coelhinho da Páscoa. Amigas e amigos, temos uma trupe ultrarradical e populista no poder, e que tem base social consolidada. Parte significativa da população está esperançosa… Mas a oposição a esse projeto reúne de Marina Silva a Guilherme Boulos, de Luciano Huck a Marcelo Freixo, de Reinaldo Azevedo a Eduardo Suplicy, da Folha de S. Paulo ao PSTU. Combater esse projeto será um trabalho difícil, tortuoso e às vezes desanimador, mas muitos são os braços se levantando para a tarefa. Se resistir é a função que a História nos reservou, resistiremos! Publicado originalmente no Planeta Uchoas. Desigualdade social: Ricos ganham 36 vezes mais que os pobres no Brasil, segundo IBGE Luiz Fux e a covardia ativa

Escola sem Partido é Escola sem Conhecimento

por Urariano Mota Para a chamada Escola Sem Partido, é preciso escrever sobre os atrasos que virão para o ensino e o pensamento brasileiro. Na medida de minhas possibilidades, chamo atenção para alguns desastres anunciados. Primeiro, para não falarem que exagero o exagerado, olhem o site do movimento, quero dizer, o sítio do imobilismo, de onde copio estes atentados:  “Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar:  A doutrinação política e ideológica em sala de aula ofende a liberdade de consciência do estudante; afronta o princípio da neutralidade política e ideológica do Estado; e ameaça o próprio regime democrático, na medida em que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores. Por outro lado, a exposição, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais dos estudantes ou de seus pais, viola o art. 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. O Programa Escola sem Partido é uma proposta de lei que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio de um cartaz com o seguinte conteúdo”.  E seguem-se os mandamentos divinos da sarça ardente, que reza entre suas ordens:  “O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas… O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”  Ora, desde Moliére, no avançadíssimo século dezessete, que filhas resistem ao mando dos pais. Mas estamos, conforme indicação do calendário, no século vinte e um. Consiste um grave assalto à democracia submeter conteúdos ministrados ou impressos ao que esteja de acordo com convicções trazidas da casa do aluno, ou pretender que valores de ordem familiar estejam acima da educação moral, sexual e religiosa. As famílias não se constiutuem de cientistas, escritores e filósofos nem na Grécia de Ouro. Ainda que disponham de pais ilustrados, o que seria algo abaixo de um milésimo, a família como instituição é conservadora.  Com essa projeto de lei e movimento imobilizado, corre-se o risco, no limite, de que em breve se exija a equiparação de ensinamentos bíblicos a descobertas da ciência, como no caso da extraordinária contribuição de Darwin. Na Origem das Espécies, o homem é um animal e como todas os demais seres vivos se originou de processos naturais, o que nega a crença religiosa da criação divina tal como é apresentada pela Bíblia. E aí, como ficamos? Com Darwin ou com os ignorantes pais?  Recuemos mais, até 1543. Nesse ano, um louco e herege, de nome Nicolau Copérnico, revolucionou a ciência ao mostrar que a Terra girava em torno do Sol. A Igreja ficou perplexa com essa teoria, pois, segundo seus teólogos, a Terra era plana, imóvel, o centro do Universo. Enquanto o Sol, esse intruso secundário, é que girava em torno da Terra. E todos ficaram giros com esse tal de Copérnico. Notem o crime contra o evangelho. A primeira edição de De Revolutionibus Orbium Coelestium (Sobre as Revoluções das Esferas Celestes) só foi publicada um pouco antes da morte do astrônomo. Quando veio a público, a teoria foi rechaçada pela Igreja e banida por quase três séculos. Hoje, com a Escola Sem Partido, voltaria a ser condenada.  Na verdade, não escaparia nem a Bíblia. Ela somente poderia ser conhecida como expurgos, como, por exemplo, dos trechos pouco edificantes das filhas que embriagam o pai e o levam à cama para o sexo. Leiam que devassidão de costumes:  “Vem, demos a nosso pai vinho a beber, e deitemo-nos com ele, para que conservemos a descendência de nosso pai. Deram, pois, a seu pai vinho a beber naquela noite; e, entrando a primogênita, deitou-se com seu pai; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou. No dia seguinte disse a primogênita à menor: Eis que eu ontem à noite me deitei com meu pai; demos-lhe vinho a beber também esta noite; e então, entrando tu, deita-te com ele, para que conservemos a descendência de nosso pai. Tornaram, pois, a dar a seu pai vinho a beber também naquela noite; e, levantando-se a menor, deitou-se com ele; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai”. Com agravantes, pois Ló, pai e amante das filhas, era irmão de Abraão, que por sua vez casou com a prória irmã, Sara. Depois, Naor, outro irmão, se uniu à sobrinha Milca. Que fazer? Censure-se a Bíblia ! gritarão os adeptos da nova escola.  Hoje no Brasil, conservadores e fascistas, em Santa Aliança, julgam que reprimir a palavra vida consegue conter a própria vida. Isso equivale a dizer: eles imaginam que o expurgo de aulas sobre o comunismo acabará com a existência do comunismo. Ou então pensam que reduzir o amor ao papai e mamãe de antes de Cristo acabará com toda forma de amor, dos séculos passados ao futuros. O projeto da Escola sem Partido é bem uma luta desigual entre a repressão e a vida. Desde o poeta Horácio que se conhece a luz dos seus versos: “Reprime a natureza, ela voltará sem freios”. Ou de modo mais literal, “Expulsa a natureza com um forcado, que ela voltará sempre a correr”.  Nessa cruzada do obscurantismo, não sobrará nem mesmo Machado de Assis. É sério. A obra de Machado não passará de um amontoado de palavras de negação dos valores da família, porque contrária à moral mais casta de evangélicos. Se pensam que escrevo em delírio, olhem por favor a prova da febre direitista a seguir. Tudo que copio abaixo existe e está sendo divulgado – uma reavaliação porca, de extrema-direita sobre o maior escritor brasileiro:  “Pois então, chegamos ao que considero o ápice

A anunciada crise institucional

por Carlos Fico Existe a possibilidade de ruptura institucional após a eleição presidencial deste ano porque o impeachment de Dilma Rousseff inaugurou fase de suspensão, de quase anomia, que ainda não superamos. Essa fase frequentemente ocorre após eventos traumáticos como as guerras, os julgamentos dos chefes de Estado ou suas mortes inesperadas (por atentados, por exemplo), eventos que costumam ser contemporâneos ao tumultus, “estado de desordem ou agitação”, e inaugurar períodos de exceção. Não é o caso de discutir, em termos teóricos, esse velho problema histórico, mas o julgamento do “príncipe”, do chefe de Estado, sua morte simbólica, tende a inaugurar esse tipo de fase, salvo se houver fenômeno agregador da sociedade – como foi, por exemplo, o Plano Real, posterior à “morte” (simbólica) de Collor (com o impeachment que não houve, porque ele renunciou). Não tivemos algo parecido após a morte simbólica de Dilma Rousseff – não há nada de agregador em Temer. Desde o impeachment de Dilma, várias expectativas de parte da sociedade (da classe média em geral, amplamente fomentadas pela mídia conservadora e apreendidas também difusamente pelas camadas mais pobres) foram frustradas, todas de natureza ético-moral, a saber, o combate à corrupção e a superação dos “problemas” (imprecisamente definidos, mas percebidos, como “problemas econômicos” – que são lidos pelos setores mencionados como rupturas da “economia moral” (desemprego, alguma carestia), não como problemas macroeconômicos). Expectativas, portanto, extremamente fluidas, esgarçadas sob o manto punitivo da “crise moral” – de que falava Rui Barbosa – que desonra apenas o outro, todo aquele que não pareça “cidadão de bem”, conforme o olhar do julgador, que sempre se entende imaculado. O impeachment impediu que o eleitorado avaliasse a capacidade ou incapacidade de o segundo governo Rousseff superar o “problema”, não obstante tenha ficado patente a contradição entre as promessas eleitorais e o efetivo governo (fenômeno político, de resto, comum no Brasil). Assim, boa parte do imaginário social consolidou a imagem de Dilma Rousseff como injustiçada, até porque nenhuma acusação mais grave lhe foi feita. A imagem de “mulher honesta” se afirmou – algo muito mais forte do que “pedaladas fiscais”. De fato, em muitos setores, construiu-se em torno da ex-presidente aura de perceptível simpatia que oculta os flagrantes erros de seus governos. Essa percepção de “injustiça” (que se iniciou no dia mesmo do impeachment, com a não suspensão dos direitos políticos sugerida pelo próprio presidente do Senado) e a dramaticidade do ato em si foram os principais detonadores do mencionado quadro de quase anomia. Em conjunto com outros fatores, a percepção de injustiça (em vários graus) explica a atual série de arrependimentos de diversos atores em relação ao impeachment: Tasso Jereissati, ex-presidente nacional do PSDB, disse-o explicitamente. Vários outros personagens, políticos e jornalistas por exemplo, têm sugerido esse arrependimento, seja por meio da pergunta retórica “onde foi que erramos?” (enunciada por suposição de que posições extremistas estariam por ocupar a Presidência da República – o que não é verdade no que diz respeito ao PT – ou porque haveria risco à democracia), seja por meio da percepção pragmática de que, sem o impeachment de Dilma, muito provavelmente a posição do PSDB seria eleitoralmente melhor e a do PT, nem tão destacada. Além do fato detonador desse quadro de quase anomia (o impeachment), tivemos a transformação de Lula em “troféu” da Operação Lava-Jato. Movimentos inusuais de aceleração do processo judicial não passaram despercebidos nem mesmo ao homem comum, foram sublinhados pela campanha de denúncias promovida pelo PT (que contou com apoio inesperado de respeitadas instâncias e personalidades estrangeiras) e agravou-se muitíssimo com a percepção de tendenciosidade (prevalece a ideia, não inteiramente correta, de que “ninguém” do “outro lado” foi preso). Ademais, para o senso comum, os crimes de Lula seriam pequenos se comparados com a corrupção dos tradicionais “homens ricos”. As evidências dos erros cometidos pelo PT e pelo próprio Lula diluíram-se ante o processo de vitimização do ex-presidente levado a cabo pela própria Operação Lava Jato. A prisão de Lula, nessas condições, correspondeu à segunda morte simbólica de chefe de Estado em pouco mais de um ano e meio: o julgamento, a condenação e a prisão do líder, do princeps. A guerra e o julgamento de chefes de Estado são os dois mais espetaculares eventos da História Política. Tivemos dois julgamentos: como não poderíamos ter tumultus e período de exceção, de quase anomia? Assim, o “arrependimento” também se ancora na percepção de que a Operação Lava Jato não operou a contento, ou foi longe demais, ou excedeu-se em erros, ou incorreu em moralismo – não importa a razão, a Operação Lava Jato, com a transformação de Lula em troféu, transformou-o em vítima e, ao PT, em alvo privilegiado, revertendo a trajetória negativa que ambos experimentavam, possibilitando-lhes um renascimento. Os dois principais personagens detonadores do atual quadro de quase anomia (Aécio Neves e Michel Temer) frustraram muitíssimo não só os que os apoiavam claramente, mas também aqueles que os viam com expectativas esperançosas ou pragmáticas. Aécio Neves viu ruir sua imagem de bom moço ante acusações inelutáveis de grossa corrupção. Michel Temer não conseguiu sanear a economia – não obstante alguns analistas, que justificaram e/ou apoiaram o impeachment, digam agora, sem bases empíricas, que sem ele (ou com Dilma) seria pior. Mas isso não conta para o eleitorado: conta a frustração. Temer (também acusado de corrupção) e Aécio são “pretendentes às cadeias” – como diria Afonso Arinos de Melo Franco. Quando Aécio Neves, traindo o passado pessedista do avô Tancredo, contestou o resultado da eleição de Dilma (como sempre fez a antiga UDN), associou-se à tradição golpista civil e brasileira de longa tradição. Tolamente, pensou ser possível “cavalgar o tigre” – para citar a expressão sempre usada por Roberto Campos. O PT lançou consigna segundo a qual o impeachment seria golpe. Como sempre fez a velha UDN, os conservadores da atualidade responderam com a Constituição, com a lei e com os tribunais. Os dois lados deixaram de perceber a gravidade da situação: impeachment, em bases tão frágeis (espécie de recall presidencial simulando parlamentarismo inexistente), abriria período de “vale-tudo”, de exceção, de quase anomia. De fato, tal período se iniciou logo após o impeachment. Além da imagem

A valorização da mulher numa campanha eleitoral mais preocupada com o passado

por Carlos Castilho Independente de qual seja o resultado das eleições deste ano, dois fenômenos já deixaram a sua marca: a valorização da mulher como protagonista politico e a preocupação de todos os partidos em buscar no passado a solução para os dilemas atuais, ignorando as mudanças que o futuro já está delineando. O eleitorado feminino se tornou o grande objetivo de todos os candidatos, de Bolsonaro até o PSTU, na reta final da campanha eleitoral. É um passo muito importante para a superação do machismo político, mas também é essencial constatar que os partidos e candidatos resolveram correr atrás das mulheres porque dependem hoje do voto delas, mais do que em qualquer eleição anterior. Outra coisa que impressiona quem acompanhou a atual campanha é a preocupante unanimidade dos partidos e candidatos em buscar no passado as soluções para os problemas atuais, bem como a insistência em propostas pontuais ignorando olimpicamente o contexto socioeconômico global marcado pela transição para uma era digital. Jair Bolsonaro apostou num retorno ao século XIX em matéria de autoritarismo, machismo, patriarcalismo, como fórmulas para acabar com o feminismo, com a rebeldia juvenil, a crise causada pelo desemprego, a violência urbana e a insegurança social gerada pelas consequências das inovações tecnológicas. Geraldo Alkmin e os demais candidatos de centro direita basearam suas campanhas presidenciais na glorificação de realizações passadas, como se elas pudessem ser repetidas indefinidamente numa realidade social que muda a cada semana. O Partido dos Trabalhadores (PT), uma sigla que 40% dos brasileiros associam à uma vaga ideia de renovação, propõe uma volta aos bons tempos dos governos de Lula, por meio do slogan “vamos ser felizes outra vez”. Para quem está desempregado ou teve a renda familiar reduzida em até 50% por conta da precarização do trabalho, a promessa de uma volta aos bons tempos é altamente sedutora, mas oculta um embuste. A politica de redistribuição de renda adotada por Lula entre 2002 e 2010 dificilmente produzirá os mesmos resultados porque a conjuntura mundial e nacional mudou. Além disso, o PT também mudou depois de usufruir a comodidade do poder e hoje está mais parecido com os demais partidos do que com a ideia de renovação política que sustentou a explosão de esperanças em 2002. Os dilemas ignorados Os dois fenômenos destacados no início deste texto sinalizam desafios enormes para o período pós-eleitoral e que terão de ser enfrentados sem os holofotes de uma campanha marcada por uma sucessão quase diária de pesquisas de intenção de voto. Os dois fenômenos destacados no início deste texto sinalizam desafios enormes para o período pós-eleitoral e que terão de ser enfrentados sem os holofotes de uma campanha marcada por uma sucessão quase diária de pesquisas de intenção de voto. A valorização eleitoral das mulheres as coloca diante do dilema de assumir um discurso próprio depois da votação. Até agora as candidatas inscritas pelos diferentes partidos adotaram, ao pé da letra, o discurso masculino na hora de se apresentar ao eleitorado. É um desafio enorme porque ainda não existe uma cultura política feminina, que priorize, sem dependências, o universo social das mulheres. Marina Silva deixou-se envolver pela cultura politica masculina, perdendo a imagem de mulher não contaminada pela politicagem tradicional e que seduziu tantos eleitores e eleitoras nos pleitos presidenciais de 2010 e 2014. A primeira ministra britânica Thereza May e a alemã Angela Merkel, fazem o gênero masculinizado na politica e pouco agregam à diversificação de gêneros no exercício do poder. Jacinda Ardern, a primeira ministra da Nova Zelândia, talvez seja um raro exemplo de comportamento público capaz de gerar novas perspectivas para o desenvolvimento da cultura politica feminina. O outro fenômeno que marca a atual campanha eleitoral brasileira é a omissão de partidos e candidatos no enfrentamento dos desafios que a era digital já está colocando para todos nós. O caso do desemprego é emblemático. Todos os candidatos presidenciais prometem criar novos empregos em massa. Henrique Meirelles diz ter uma fórmula para criar 10 milhões de novas vagas de trabalho, ignorando o fato de que o desemprego hoje deixou de ser apenas o resultado de uma gestão econômica desastrosa para se tornar a consequência da introdução de tecnologias baseadas na automação eletrônica. A substituição da mão de obra baseada na atividade física é inevitável numa economia começa a ser movida por robôs computadorizados e funcionando em rede pela internet. É um embuste prometer a devolução de empregos, quando tudo aponta na direção de uma mão de obra qualificada tecnologicamente. Nenhum candidato ousou penetrar no complexo terreno da reeducação de trabalhadores, um processo que onde o estado tem um papel fundamental já que as empresas só pensam em racionalizar a produção para sobreviver na transição de modelos de negócio. A obsessão pelo imediatismo Segurança, educação e saúde são outros temas onde os candidatos simplesmente ignoraram a realidade para alimentar, entre os eleitores, a ilusão de soluções rápidas. Todos eles preferiram o mantra da compra de armamentos, contratações e racionalização gerencial dos efetivos policiais, ignorando que a desigualdade social e econômica gera uma desproporção exponencial entre a proliferação de delinquentes e o aprimoramento do aparelho repressivo. A questão da segurança pública pode ser reduzida a uma equação bem conhecida dos policiais. É impossível colocar um guarda em cada esquina, 24 horas por dia, porque isto acabaria com o orçamento municipal ou estadual. Para sentir-se mais segura, a população teria que pagar impostos muito mais elevados e mesmo assim seria utópico pensar numa segurança total, num país onde a desigualdade social e econômica funciona como uma máquina de produzir delinquentes. O que a polícia pode fazer é identificar os chefes dos grupos criminosos e prendê-los. A população é que tem meios para prevenir e neutralizar a delinquência de rua, o assaltante de ocasião, sem que isto signifique legalizar a justiça com as próprias mãos. O medo de discutir temas complexos com o eleitorado levou os partidos e candidatos e evitar o debate sobre a necessidade do envolvimento direto da população na busca de soluções também para educação