Zona Curva

Política

Uma luz para você entender um pouco sobre o imbróglio político em que o país está metido.

Pandemia negacionista

Negacionismo significa refutar o irrefutável. Não se restringe a violências e desastres naturais, tampouco aos círculos fascistas. Atinge as melhores famílias. E é exatamente a disseminação da patologia, nas mais diversas molduras discursivas, que singulariza a catástrofe brasileira. Estatísticas, documentos auditados e textos legais provam que a Lava Jato cometeu delitos que elegeram Jair Bolsonaro. Não há margem racional para questionar a suspeição de Sérgio Moro nos processos contra Lula. Pois boa parte dos humanistas que chamam o presidente de genocida vê míseros “deslizes” na conspiração orquestrada por Moro. Aceita suas escusas. Enquanto investiga a existência de ONGs incendiárias e bois bombeiros, a patrulha da objetividade adota convicções para a culpa de Lula. Os inimigos de “fake news”, implacáveis verificadores de currículos, palpites e estatísticas, jamais checaram a sentença de Moro. Não ousam falar em verdades e mentiras quando elas afetam eleições presidenciais. Então disseminam-se as narrativas, em polarizações ociosas sobre a obviedade do óbvio. Num flanco, charlatões tornam “controverso” o aquecimento global. Noutro, chamam de “rigorosa” a decisão espúria do TRF-4 e de “positiva” a herança da Lava Jato. Na falsa equivalência entre opiniões sensatas e grotescas, o meio-termo gera um relativismo absoluto de hospício. A cloroquina dos mitômanos solidários é o estado democrático de Direito. Menosprezando a “gripezinha” ditatorial, afirmam que as instituições resistem, pois são probas e saudáveis. O STF avalizou abusos explícitos que puseram um fascista na Presidência, mas salva o país do ataque imaginário que ele só ameaça. A vacina venenosa vai curar o paciente moribundo. Os pessimistas da bolha naturalizam o retrocesso, como faz o bolsonarismo com a doença. Lula não passa de uma entre milhares de vítimas habituais do Judiciário. Ninguém está acima (dos abusos) da Lei. Se os direitos morrem diariamente, de causas numerosas e triviais, não há motivo para comoções quando eles sucumbem no privilégio de uma cela confortável e segura. Indo na mesma linha generalizante, as teorias apocalípticas sobre a barbárie contemporânea diluem os atos de indivíduos notórios numa coletividade zumbi sem rostos nem culpas. Foram as engrenagens ardilosas do inimigo oculto que elegeram Bolsonaro, não simplesmente a armação judicial que desmoralizou, prendeu e censurou seu maior adversário. Os negacionismos em voga não se espelham nos prejuízos que acarretam, e sim na covardia. Desde cedo esteve claro que a Cruzada Anticorrupção carregava um germe fascista. Moro passou anos sendo tratado como herói. Hoje, diante dos escândalos incontornáveis, seus fãs imitam Bolsonaro diante do morticínio: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” Esse conformismo retórico é falacioso. Basta aplicar a Moro os mesmos critérios usados nas críticas a bolsonaristas. Enunciar as verdades sobre a prisão de Lula que independem de sua defesa, sem volteios eufemísticos ou elogios compensadores. Ligar os pontos até as eleições e classificar os seus resultados no mais científico rigor possível. Nomear as coisas como são. Destruições e genocídios pertencem ao mesmo universo factual do golpe que fez o governo Bolsonaro ilegítimo e a Lava Jato um instrumento do avanço fascista. Em todos os casos, omitir a realidade é estratégia neutralizadora, uma performance de cegueira generalizada que normalize moralmente a inação. Nessa harmonia de farisaísmos o país ignora sua tragédia. Publicado originalmente no Blog do Scalzilli. As “fake news” não são um fenômeno passageiro As “fake news” como estratégia eleitoral Extrema direita deseja a tolerância ao intolerável nas redes Nossos dilemas diante da desinformação eleitoral  

A pandemia e o imobilismo do governo Bolsonaro

Pandemia Covid-19 – O número de mortos no Brasil vitimados pela Covid-19 se aproxima de 40 mil e mais de 700 mil brasileiros já foram infectados pelo vírus, mas, na televisão e nos jornais esses números aparecem como uma mensagem qualquer enquanto as famílias almoçam ou jantam. Ao que parece essa é uma realidade normalizada, bem diferente da do começo da pandemia quando as pessoas se mortificavam com o número de mortos na Itália, por exemplo. Algumas inclusive se recusam a acreditar que as informações, imagens e falas que passam na televisão eram verdadeiras. “É tudo invenção da Globo. Eu mesma fui no hospital aqui e tá tudo vazio”, afirma uma parenta, bolsonarista raiz. “Na Record não passa isso”. Ela mesma não usa máscara, a não ser quando é obrigada a entrar no mercado ou outro lugar. E insiste em dizer que as covas abertas em lugares como Manaus e São Paulo são imagens falsas. Esse é o paradoxo que vive o Brasil. Enquanto os médicos e especialistas da saúde dizem uma coisa, o presidente Bolsonaro diz outra. Ele minimiza a pandemia, naturaliza as mortes e, não sendo médico, prescreve remédios para seus seguidores. Não bastasse isso, o Brasil deve ser o único país do mundo que nesse momento de grave crise sanitária não tem um Ministro da Saúde. Dois dos ministros da pasta saíram justamente por serem médicos e discordarem dos absurdos proferidos pelo mandatário. Um saiu porque não tinha como ser contra o isolamento social, coisa que o presidente insistia como inútil. E outro saiu porque se recusou a indicar a hidroxicloroquina como um remédio a ser usado indiscriminadamente por qualquer um que apresentasse sintomas. Entre os seguidores do presidente, a irracionalidade abunda. Dizem não crer na pandemia, mas todos já estocaram em casa os remédios aludidos e estão certos de que se a “doença comunista” chegar eles saberão combater. Pouco parece importar a dor das famílias que estão enterrando seus mortos, afinal “morrer é coisa da vida”, como diz o presidente. E se alguém tenta argumentar de que esses mortos poderiam estar vivos se as cidades tivessem acatado as medidas de achatamento da curva de infecção, dizem: E a dengue? E os ataques de coração? Tudo isso causa morte… Também se recusam a perceber que as mortes por essas doenças outras não acontecem por falta de espaço nos hospitais. E assim vai o país, enterrando gente,  a maioria moradora das periferias, onde já é precário o serviço de saúde. Uma olhada nas reportagens da televisão e as pessoas que clamam em frente aos hospitais são claramente empobrecidas. Não me lembro de ter visto alguma cena em frente a algum hospital particular. Provavelmente para os ricos não faltam leitos nem respiradores, já que eles mesmos são poucos. Mas, as gentes das comunidades, das cidades pequenas, as sem recursos, as de regiões mais afastadas dos centros pulsantes, essas estão morrendo nas cadeiras das Unidades de Saúde ou nas entradas dos hospitais. Em algumas cidades chegou a ter fila de espera para um leito com mais de 400 nomes. E como os leitos de UTI ficam ocupados por 20 ou mais dias, as pessoas simplesmente morrem sem o atendimento. Enquanto tudo isso acontece o presidente da nação se reúne com ministros para discutir o controle da Polícia Federal, porque não quer ver os filhos dele sendo  investigados por crimes como o do gabinete do ódio, que dissemina notícias falsas, ou o da “rachadinha” – esquema de corrupção que se apropria dos salários de funcionários fantasmas. E, nas ruas, grupos de extrema direita, copiando figurinos e palavras de ordem dos movimentos similares que existem nos Estados Unidos, lançam vitupérios contra o Supremo Tribunal Federal e contra os parlamentares. Pedem um golpe de estado, uma intervenção militar e, pasmem, estão armados. Fossem os sem-terra ou os índios já estariam apodrecendo na cadeia. Mas, esses, ao contrário, são protegidos pela polícia e nada lhes acontece. Diante da completa imobilidade dos partidos de esquerda, de centro, e da maioria dos movimentos sociais, torcidas organizadas de times de futebol, autodenominadas antifascistas, saíram às ruas para fazer o enfrentamento com esses grupos violentos da extrema-direita. O resultado não poderia ser outro. Onde as torcidas atuaram, a direita fugiu. Agora, com os protestos massivos nos Estados Unidos pelo assassinato de George Floyd, no Brasil também alguns movimentos decidiram se mexer e estão realizando protestos nas ruas, mas ainda sem a presença dos partidos ou das centrais sindicais. O medo do vírus e a atenção ao isolamento social tornam esse movimento de tomada das ruas ainda bastante lento. Não é sem razão que os que saíram primeiro foram os jovens torcedores antifascistas, já que eles mesmos estão nas ruas trabalhando, desde sempre, enfrentando quase sem proteção o vírus mortal. O dramático de tudo isso é que segundo todas as análises dos cientistas e agentes de saúde que estão na linha de frente do combate ao vírus, a curva de infecção ainda está ascendente, o que significa que muito mais gente vai morrer. Uma gente que perderá a vida simplesmente porque o governo do seu país não está preocupado com a sua existência. A tática do presidente tem sido jogar todas as responsabilidades para cima dos governadores e prefeitos, como se o governo federal não tivesse coisa alguma a ver com o que está acontecendo. E entre seus seguidores o mantra é: “vamos salvar a economia, abram tudo”. Para eles, nada está acontecendo. E todas as lágrimas que se derramam em frente às câmeras são de pessoas cujos familiares iriam morrer mesmo, de alguma doença. São tempos tristes os que vivemos. São tempos de perplexidades. E, infelizmente, de imobilidade. https://urutaurpg.com.br/siteluis/e-depois-da-pandemia/   CPI da Covid explode a bolha de silêncio criada pelo governo

Circo dos horrores

Não me surpreendi com o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Como diria o Barão de Itararé, “é de onde menos se espera, daí que não sai nada”. O circo dos horrores revelado na reunião deixa evidentes impressões digitais, não apenas do Gabinete do Ódio, mas também do Escritório do Crime, como é conhecida a ala mais perversa dos milicianos do Rio. Bolsonaro comprovou que seu lema governamental é “Pátria armada, Brasil” ao manifestar o desejo de querer “que o povo se arme. Não dá pra segurar mais. Quero todo mundo armado, porque povo armado jamais será escravizado”. É óbvio que ele não cogita deixar o poder ao fim de seu mandato. Incentiva seus apoiadores a se transformarem numa legião de milicianos dispostos a violar todas as regras democráticas. Com tantos militares aboletados nas estruturas do governo federal, todos acumulando soldo da caserna com salário (alto) de funcionário público, alguém acredita que, caso Bolsonaro perca a reeleição em 2022, a 1º de janeiro de 2023 toda essa gente retornará resignadamente ao quartel ou ao pijama? Na fatídica reunião ministerial nenhuma palavra de preocupação com a pandemia no Brasil, no dia em que o país somava 2.906 mortos. Ao contrário, a ministra Damares, dos “Direitos Humanos”, propôs prender governadores e prefeitos que tomarem medidas rigorosas de prevenção. E foi superada pelo “imprecionante” ministro Weintraub, da Educação: “Eu por mim botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. Ricardo Salles, o sinistro do Meio Ambiente, deu a dica de como praticar crimes na calada da noite, já que, neste momento, a imprensa só se ocupa de Covid-19. Propôs “ir passando a boiada”, ou seja, modificar as leis ambientais do Brasil para agradar latifundiários, madeireiros, garimpeiros e mineradores, e permitir invasão de terras indígenas, titulação arbitrária de áreas tomadas da União, queimadas e desmatamentos. O ministro Álvaro, do Turismo, advogou a liberação de cassinos. O “paladino da moralidade”, o então ministro Moro, da Justiça, se omitiu diante de tantas barbaridades ditas na reunião ministerial. Foi uma reunião imprópria para menores, na qual se ouviram 37 palavrões, dos quais 27 proferidos pela boca do presidente, que se julga acima de todos e de tudo, a ponto de chamar o governador de São Paulo de “bosta” e o do Rio de “estrume”. Bolsonaro confirmou sua interferência em todos os sistemas oficiais de segurança no Rio, inclusive na Polícia Federal, para proteger a própria família. E enfatizou que não acata decisão do STF: “E, espero que eles não decidam, ou ele, né? Querer tomar certas medidas, porque daí nós vamos ter um… uma crise política de verdade. Eu não vou meter o rabo entre as pernas. Isso daí… zero, zero”. Essa reunião é a crônica de uma ditadura anunciada. E ela só não virá se as forças de oposição se unirem em torno de um Projeto Brasil e lograrem mobilizar amplos setores populares em defesa da democracia. Desafio difícil em meio à pandemia que assola o país. Com o STF e o Congresso divididos, e os presidentes das três casas em cima do muro (para ver melhor os dois lados, se diz em Minas), é o Executivo que, com a anuência ou aprovação das Forças Armadas, está com a faca e o queijo nas mãos. Quem viver, sobreviverá! Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Coronavírus: o vírus e os trabalhadores O plano é assaltar o Estado https://urutaurpg.com.br/siteluis/canis-et-circenses/

Os carregadores de voz

Bolsonaro imprensa – O jornalismo é um fazer que, segundo o teórico Adelmo Genro Filho, deveria ser uma forma de conhecimento capaz de transitar entre o singular, o particular e o universal. Ou seja, aquilo que é único no acontecimento, sendo mostrado na relação com o todo. Só assim o leitor, espectador ou ouvinte poderá compreender o que realmente aconteceu, porque terá à sua disposição toda atmosfera do fato. A universalidade. Fazer jornalismo assim não é para qualquer um. Precisa estofo. Isso significa que a pessoa que escreve, narra e descreve, tem de carregar dentro de si uma boa bagagem intelectual. Há que ter lido muita literatura, muitos livros de história, há que conhecer em profundidade os grandes dramas do seu espaço geográfico, há que ter capacidade de descrição profunda da realidade. Podemos pensar que atualmente os cursos de jornalismo não oferecem essa bagagem. A formação intelectual desapareceu. Muitos deles se tornaram meros repassadores de técnicas e tecnologias. Assim, podemos encontrar entre os recém-formados gente que sabe tudo sobre os novos softwares comunicacionais, mas é incapaz de fazer uma boa pergunta. E repórteres, senhores, já diria Acácio Ramos, são seres que perguntam. O que temos, na verdade, são os carregadores de voz. O jornalismo dos grandes meios comerciais já não se preocupa em narrar e descrever a realidade. E vamos ser honestos, entre os veículos alternativos a coisa anda por aí também. Basta dizer o que o outro disse. Segundo fulano, segundo beltrano. E nada de investigação, e nada de análise. Não importa. A informação é só uma sensação. Tampouco importa se o que o fulano disse é verdade. Se o fulano é autoridade, então, falou tá falado. Foi-se o tempo em que o jornalista escarafunchava arquivos em busca da verdade. Hoje não há tempo. A informação é pássaro fugaz. E a verdade é igualmente fluida. Não é sem razão que o presidente do Brasil ataca os jornalistas. Ele grita em alto e bom som que o jornalismo mente. E ao fazer isso está apenas expressando uma opinião que já está consolidada nos brasileiros. Por isso os seus seguidores aplaudem as patacoadas que ele faz com o grupo que está em frente ao palácio para mostrar – sem crítica ou análise – as suas atitudes. O jornalismo palaciano é uma farsa. E o presidente sabe disso. Por isso brinca e tripudia. Sabe que dali não sairá qualquer reportagem digna de nota. Sabe que os que ali estão apenas repercutirão seus gestos, ou uma frase infeliz. Não haverá consistência nem narrativa crítica sobre o governo em si, sobre os dramas da nação ou sobre as entranhas podres do poder. É um jornalismo do tipo “Caras”, voltado ao exótico, ao engraçado. É um jornalismo conivente, amigo, ajoelhado diante do poder. Quem não se lembra das corridas do presidente Collor, com os jornalistas correndo junto, ofegantes, alegres por mostrarem a nova frase que o presidente ostentava na camiseta? Tudo segue como dantes no quartel de Abrantes. Houvesse realmente jornalismo correndo nas veias dos que fazem a cobertura presidencial, eles haveriam que sair da frente do palácio e entrar. Vasculhar as gavetas, sob o tapete, manipular os papéis, os decretos, os projetos, contar ao povo o que se está armando contra ele. E se fossem impedidos, teriam de encontrar formas de encontrar a verdade que se esconde sob a lógica das piadas, das grosserias, da estupidez. O show diário da presidência é um esconderijo de verdades. E os jornalistas palacianos ficam ali, observando o que não existe, enquanto que o que existe, de fato, continua invisível para a maioria. O jornalismo precisa deixar a opinião pública informada sobre a essência das coisas, não sobre a aparência. O jornalismo é espaço de fatos concretos, não de sensações. O jornalismo é a análise apurada do dia. Ou isso, ou nada. É só uma algaravia sem sentido que muito bem serve a quem quer embotar os sentidos. Há quem defenda os profissionais que seguem se submetendo aos vexames diários em frente ao palácio. Eu não. Existem sapos que temos de engolir para poder sobreviver num mundo no qual só temos nossa força de trabalho para vender. Sim, é verdade. Mas, momentos há que os limites se impõem. É bem conhecida a lenda de que no mundo das trabalhadoras do sexo há uma regra a ser seguida: se aceita tudo, menos beijo na boca. Porque o beijo é algo íntimo demais, só oferecido ao amor. Assim no jornalismo. Podem-se engolir sapos ao longo da vida para se garantir um emprego, mas coisas há que não são admissíveis. É o beijo na boca. E aí, há que dizer não, ainda que se nos custe a vida. Mas, essa decisão de honra não é fácil de ser tomada. Ainda assim, há que recusar o jornalismo de sensações e recolocar essa profissão nos trilhos, ou ela perecerá como vaticina o presidente. Destapar a verdade que os poderosos querem ver escondida. Informar ao público sobre o que lhe cabe. Produzir conhecimento. É tempo de desalambrar, colegas, romper as cercas, desalambrar… https://urutaurpg.com.br/siteluis/os-muitos-dilemas-da-imprensa-no-governo-bolsonaro/

Pós-democracia

A cada ataque mais veemente do arbítrio, surgem novos textos opinativos reafirmando a saúde da democracia brasileira. As instituições funcionam, as liberdades sobrevivem, há eleições. Os vaticínios catastróficos da esquerda falharam. O governo de Jair Bolsonaro pode ser medíocre, mas segue os padrões do estado de Direito. Essas afirmações dependem de significados muito convenientes de “ditadura” e “fascismo”, baseados no Brasil de 1964 ou em referências estrangeiras de um século atrás. Também reduzem a ideia de democracia a um conjunto de ritos e estruturas burocráticas que pouco significam sozinhos. Os despotismos atuais, tão criticados, usam as mesmas desculpas. As eleições passadas transcorreram nos escombros de um golpe parlamentar. Seu fracasso vergonhoso estigmatizou ainda mais a classe política, fortalecendo a agenda revolucionária do bolsonarismo. Nesse ambiente, o apoio midiático à Lava Jato virou uma campanha maciça a favor da ideologia anticorrupção, com óbvios efeitos persuasivos sobre o eleitorado. A disputa vencida por Bolsonaro foi tudo, menos democrática. Sua campanha beneficiou-se de um episódio policial suspeito, espalhou ameaças, agrediu oponentes e cometeu crimes eleitorais em escala inédita. Empresas e órgãos públicos engajaram funcionários na militância bolsonarista. Comícios de estudantes foram impedidos, a propaganda petista censurada. Mas nada supera a conspiração judicial que tirou da disputa o favorito das pesquisas, julgando seu caso em tempo recorde, condenando-o por “crime indeterminado”. Promotores federais armaram conchavos clandestinos com veículos de comunicação e grupos de militantes para incentivar o voto em Bolsonaro. Enquanto perseguiam seus opositores. A tentativa de criminalização do jornalista que revelou esses escândalos mostra o nível de cidadania vigente. Outro “caso isolado”, de tantos que já parecem habituais: manifestações pacíficas oprimidas, vídeos e textos proibidos, apologias oficiais ao nazismo, execuções e atentados impunes, a inviabilização do trabalho de artistas e acadêmicos. São as instituições em pleno funcionamento. Os Poderes divergem no máximo entre círculos hipócritas e raivosos, uns dissimulando a perenização da inconstitucionalidade, outros vazios de quaisquer escrúpulos. Legislativo, Judiciário e Executivo se equilibram numa luta por hegemonia, ávidos para imporem suas respectivas agendas antipopulares e despóticas. Esse “normal” é o fato consumado, que os negacionistas tratam como a ameaça perpétua de si mesmo. Os sintomas bastam para conhecermos tanto a doença quanto o antídoto democrático que deveria preveni-la. Um Bolsonaro não chega ao Planalto sem que algo tenha se perdido no trajeto, algo cuja ausência nenhuma fantasia resistente conseguirá suprir. Revela-se aí o custo da aventura irresponsável que unificou a direita brasileira pela destruição sistemática do lulismo. Não importa a lisura do objetivo. Os métodos foram (ou precisaram ser) ilícitos, e assim passaram a definir a natureza do resultado. O Regime de Exceção é indissociável da tirania de milicianos que ele ajudou a materializar. A ausência de rupturas drásticas significa apenas que elas se tornaram desnecessárias. Uma imprensa que naturaliza a tramoia eleitoral da Lava Jato não irrita os censores. Um STF que ignora a suspeição de Sérgio Moro dispensa baionetas. As polícias garantem o silêncio das ruas, enquanto o império da pós-mentira performa sua liberdade de hospício. O fascismo jamais destruirá as fontes institucionais de sua obscena legitimação. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. Sobre a democracia e o voto Face autoritária do neoliberalismo  

Mineração ameaça terras indígenas

O governo do Brasil encaminhou um projeto ao Congresso Nacional buscando liberar as áreas indígenas para mineração, geração de energia, agricultura e pecuária. Essa é uma promessa de campanha do atual presidente que finalmente foi colocada em andamento. Durante o primeiro ano de mandato, o presidente foi pródigo em declarações bombásticas contra os povos indígenas. Para ele, os indígenas ainda não são humanos e só o serão quando puderem produzir mercadorias. Daí esse projeto que visa tornar “produtivas” as terras que hoje conformam apenas 12% do território nacional, garantidos com muita luta pelas comunidades. A decisão do governo vem no sentido de fortalecer o grupo de latifundiários, mineradores e empresas estrangeiras que desde há muito estão de olho nas riquezas das terras que os povos originários têm conseguido manter vivas e cheias de biodiversidade. Esse grupo de latifundiários, que representa apenas 1% da população brasileira, detém atualmente – conforme o Atlas do Agronegócio – mais de 51% das terras no Brasil. Não satisfeitos com isso eles querem as terras indígenas onde pretendem ampliar a fronteira agrícola e extrair petróleo, gás e outros minérios importantes. O projeto encaminhado à Câmara dos Deputados autoriza a exploração e ainda define que serão permitidos estudos técnicos sobre as regiões pretendidas, sem que seja necessária a presença de estudiosos na área. Tudo poderá ser feito à distância com “dados e elementos disponíveis” (seja lá o que isso for). Na verdade, isso significa que com base em um laudo qualquer, de um amigo qualquer, sem qualquer contato com as populações envolvidas, a autorização poderá ser efetivada. Mais uma vez o governo ignora e tripudia o conhecimento construído ao longo dos anos, fruto do incansável trabalho de campo de inúmeros cientistas em parceria com as comunidades. Esse conhecimento sobre a realidade brasileira também foi ironizado na fala do mandatário do país, quando declarou que os ambientalistas só atrapalham e que se fosse por ele seriam todos confinados na Amazônia. “Se um dia eu puder, confino eles lá, já que gostam tanto de meio ambiente”. Na verdade, o que ele chama de ambientalistas são estudiosos, pesquisadores, lutadores sociais que têm um conhecimento técnico, prático e acumulado sobre os ecossistemas e sabem muito bem o que pode acontecer se continuar a devastação desenfreada que tanto querem os latifundiários e outros empresários rurais. Os representantes do governo dizem que os povos indígenas serão consultados sobre os projetos e terão poder de veto sobre ações de garimpo. Mas, a considerar o que já acontece atualmente, com o aumento da violência nas regiões de terras indígenas, com a ação desinibida de jagunços e pistoleiros, não resta dúvida de que essa “consulta” está sob suspeita, visto que poderá ser feita a ponta de bala. Também não se deve descartar a possibilidade de persuasão de algumas comunidades já bastante enredadas no modo de produção capitalista. A possibilidade de ganhar dinheiro arrendando as terras ao garimpo ou à agricultura poderá levar muitas comunidades a aceitar a transação, justamente porque vivem em situação de abandono por parte do poder público. A sedução do mundo capitalista é grande e o governo vai apostar muitas fichas nisso. É o que já afirma o presidente quando diz que os indígenas não têm hoje autonomia e que com esse projeto poderão de “libertar”, podendo servir ao capital sem qualquer amarra. Ele busca dividir para reinar com eficácia. Mas, dentre as mais de 300 etnias que vivem hoje no Brasil, a maioria tem se colocado contra a proposta, porque sabe que essa é a porta aberta para a destruição do seu modo de vida e também do ambiente, com o qual consegue estabelecer uma relação harmônica. Para a população indígena, não há desconexão entre a terra e o ser humano. Tudo está ligado e precisa ser trabalhado de forma a manter o equilíbrio. Explorar a terra, exauri-la em projetos como a mineração ou a agricultura extensiva é matar também o seu próprio modo de ser. Por isso a reação a esse projeto será à altura. Desde o início do atual governo, em janeiro do ano passado, que as entidades indígenas e as comunidades têm atuado em consequência. Atos em Brasília, marchas, recorridos internacionais, muita luta têm acontecido para denunciar a proposta e para conseguir apoio tanto dentro quanto fora do Brasil. As comunidades sabem que a proposta visa unicamente destruir qualquer forma de resistência da vida originária. Incluir os povos indígenas no modo de produção capitalista é condená-los à exploração, à miséria, à morte. Perder o controle sobre o território é perder tudo. A ganância dos latifundiários, o ódio aos índios, e o desejo do capital em incorporar mais de um milhão de seres ao seu exército de escravidão serão elementos poderosos nessa batalha. Mas, para quem resiste desde há mais de 500 anos, isso não é novidade. Está duro, está mais escrachado, mas nunca foi muito diferente. Os indígenas lutarão e com eles muitos apoiadores. E como diz o ditado popular, “enquanto houver bambu, vai flecha”. Nada está perdido. Ecocídio & genocídio Floresta em pé, o fascismo e o PL 490 no chão

Índios sob ameaça

Nos fundões do Brasil, os jagunços armados invadem aldeias, matam índios e intimidam famílias. São “trabalhadores” da morte, a soldo dos fazendeiros ou mineradores ricos que provavelmente nunca sequer pisarão nas terras que querem tomar. Os jagunços estão ousados, sabem que a polícia, que deveria proteger as pessoas, também tem a mesma intenção que eles: servir aos poderosos. E que dentro da corporação vão encontrar pessoas que, como eles, consideram aqueles índios uma gente suja e inútil, praticamente não-humanos. Provavelmente também devem ter ouvido o presidente da nação dizer algo assim. Então, estão seguros, protegidos. E sorriem quando matam um jovem guerreiro. Poderiam até pendurar a sua cabeça, como um troféu. Não o fazem porque ainda não podem. Nas cidades, uma gente amargurada vê na televisão sobre as mortes. Poucos sofrem ou se indignam. Pensam igual aos jagunços e aos policiais. Os índios não são humanos. São índios, alguma coisa entre o bicho e o nojo. Melhor que morram, imaginam. Assim, deixam de incomodar quem quer produzir. Essa é, afinal, a mensagem que recebem dia e noite por todos os canais de comunicação. Assim aprenderam na escola, onde o índio sempre foi só um tema do passado, dos tempos de Cabral. Hoje não há que ter índios, pensam, deviam se incorporar aos “brasileiros”, os tempos são outros. Para que querem tanta terra? É o que se perguntam, repetindo pergunta alheia, sem entender muito bem os fatos e sem ter informação alguma sobre o território originário, hoje apenas 12% do torrão nacional. E assim vai seguindo o bonde do terror sobre os povos indígenas, tanto nos grotões como nos salões. Só em 2019 foram sete indígenas assassinados. Todos em conflitos por terra. Há quem diga: Mas, só sete? Sim. Sete. Sete universos contidos num corpo. Seres com sonhos, com esperanças, com família. Isso sem falar nas sequelas de outras tantas violências como perseguições, ameaças, surras, violações, torturas. Também não contabilizamos aqui os suicídios de indígenas que acabam não suportando mais existir de um jeito que não é o que lhes cabe viver. Nos últimos 10 anos, 500 tiraram a própria vida, a maioria gente muito jovem, meninos e meninas sem saída no mundo do capital. 500 almas, 500 universos contidos num corpo. Mas, entre tantas desgraças acumuladas sobre os trabalhadores, quem realmente se importa? Cada um trata de lamber suas próprias feridas. E o índio segue sendo alguma coisa distante, um bicho sem alma. O verniz da “democracia racial” está totalmente descascado e os monstros se mostram às claras sem medo de punição ou vexação pública. Sentem que estão entre iguais. A face perversa do colonizador/explorador assoma no Brasil atual sem pejo. O que antes se escondia, agora se desvela. Uma olhada mais profunda sobre a questão indígena no Brasil e já se pode perceber que muito pouca coisa mudou desde a nefasta chegada dos portugueses ao porto seguro da Bahia. Os povos originários com suas vidas comunitárias, sua cultura panteísta, seu respeito à natureza não serviam para a lógica de exploração que vinha se implantar, e não servem hoje para o capital. Eles são seres inúteis para a produção capitalista porque não produzem mercadorias, nem querem produzir. Em vez de ficar 15 horas dentro de uma fábrica produzindo riqueza para um patrão, eles preferem ficar tomando banho de rio. Isso é um insulto à lógica do capital. E passa a ser um insulto também para boa parte da massa trabalhadora que olha para eles com ódio, rancor e inveja. O capital acirra a guerra intra/classe, afinal, tanto os trabalhadores quanto os índios são vítimas do sistema de exploração que rege a vida do planeta. Melhor que se odeiem, assim não se unem para acabar com a farra dos ricos. E assim segue o baile. Mas haverá de chegar o dia no qual os trabalhadores empobrecidos perceberão que estão no mesmo andar que os indígenas no navio da vida, e que querem a mesma coisa: vida boa, bonita, farta, com trabalho coletivo e banho de rio. E quando esse dia chegar não haverá mais jagunço e os poderosos serão varridos. Sei que posso pouco, mas no que posso estou com meus irmãos originários. Somos um. Espero que os demais que me leem, possam também compreender. https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-equador-e-o-sentido-de-comunidade/  

Reforma tributária: mais dos ricos, menos dos pobres

O Planalto anuncia a Reforma Tributária. No Brasil, entre várias distorções, destaca-se o fato de o governo tributar pesadamente o consumo e a produção, quando deveria arrecadar mais da renda. Vigora hoje o imposto regressivo – quem é mais pobre e ganha menos paga, proporcionalmente, mais impostos que os mais ricos. A tributação deveria ser progressiva – cobrar mais impostos sobre renda e patrimônio, e isentar quem ganha até R$ 4 mil. Assim, os 206 bilionários brasileiros contribuiriam mais para financiar os serviços públicos. Na tributação regressiva recolhem-se mais recursos nos impostos sobre consumo de bens (sabão, arroz, liquidificador etc.) e serviços (luz, água, lanchonete etc.). Os impostos embutidos em bens e serviços são pagos por toda a população, sem distinção de poder aquisitivo. A faxineira e o banqueiro pagam o mesmo por um quilo de batatas. Ocorre que o imposto embutido no preço da batata é proporcionalmente maior em relação à renda do pobre. Ora, como os mais pobres consomem parcela maior de sua renda, assim acabam contribuindo relativamente mais para saciar a voracidade do Leão. Por que o Brasil, ao contrário de países desenvolvidos, adota o imposto regressivo? Além de o governo estar sob o poder dos ricos, a tributação sobre produtos e serviços é mais fácil de ser arrecadada. Se houvesse imposto progressivo, isto é, tributação sobre a renda de pessoas físicas, a arrecadação seria bem maior. E a redução dos impostos sobre bens e serviços viria barateá-los e aquecer o mercado, inclusive aumentar a geração de empregos. Essa tributação indireta, via produtos e serviços, favorece as desonerações fiscais, que sempre beneficiam os mais ricos, como a indústria automobilística. Como sugere o economista Rodrigo de Losso, é preciso corrigir a base de cálculo sobre a qual se aplicam as alíquotas do imposto de renda. Como os salários são corrigidos anualmente, tendo em conta a inflação do ano anterior, a atual correção pela inflação faz com que pessoas que estavam isentas passem a pagar imposto, o que aumenta a arrecadação, pois quando os salários são corrigidos isso não significa que os trabalhadores passaram a ganhar mais em termos reais. Também os dividendos (a parte do lucro da empresa repartida entre os acionistas) recebidos por pessoas físicas deveriam ser tributados, o que poderia aumentar a arrecadação em até R$ 60 bilhões. Apenas dois países não cobram este tributo: Brasil e Estônia. Hoje, as isenções de dividendos beneficiam 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01% da população), que pagam de imposto 1,56% de sua renda total, uma vez que boa parcela dessa renda vem de dividendos e é isenta de imposto. Ao tributar dividendos, as empresas seriam estimuladas a reparti-los menos com seus acionistas, e a fazer mais investimentos e gerar mais empregos. Em suma, a reforma tributária precisa reduzir os impostos indiretos e aumentar o imposto de renda de pessoas jurídicas. Segundo o economista Róber Iturriet Avila, o Brasil já teve uma tributação mais progressiva. Porém, desde a ditadura as alíquotas máximas de imposto de renda, que no passado chegaram a 65%, foram reduzidas até o patamar atual de 27,5%. Na Alemanha a alíquota chega a 45%; e na Suécia, 56,7%. Atualmente, 51,3% dos impostos recolhidos nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) têm origem no consumo de bens e serviços; 25% na folha de salário; 18,1% na renda; 3,9% na propriedade; e 1,7% em demais impostos. Na Dinamarca e nos EUA, por exemplo, metade da arrecadação vem de impostos sobre a renda e lucros. No Peru, Chile e Colômbia tais tributos representam, respectivamente, 39,9%, 35,8% e 33,5% da arrecadação. No Brasil, os impostos sobre patrimônio compõem apenas 3,9% da carga tributária. No Reino Unido, 12,3%; na Colômbia, 10,6%; e na Argentina, 9,2%. Os tributos que nosso país, quinto maior do mundo em extensão, recolhe sobre áreas rurais representam apenas 0,06% da arrecadação. Nos EUA e Canadá, 5%; no Chile, 4,5%; no Uruguai, 6%. A tributação sobre heranças é também muito baixa no Brasil. Representa apenas 0,2% da arrecadação, e a alíquota varia por estado, mas a média é de 4%. No Reino Unido é de 40%; nos EUA, 29%; no Chile, 13%. Até 2030 estima-se que a população brasileira será 10% maior que hoje. Como os gastos públicos estarão congelados e tendem a aumentar os gastos previdenciários, devido o envelhecimento da população, os demais serviços públicos, como saúde e educação, terão que ser reduzidos necessariamente. O Brasil está entre os países com maiores desigualdades do mundo, por tributar proporcionalmente mais os pobres e menos os ricos. Como os dados comprovam que a elite brasileira paga menos impostos que a classe média e a população de baixa renda, é preciso que haja muita pressão para que ocorram mudanças em nosso sistema tributário e ele se torne progressivo. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Ricos pagam menos impostos  

Esquerda: o resgate do sonho

Geração 68 -Pertenço à geração que teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60: Revolução Cubana, Che, Beatles, Rei da Vela, manifestações estudantis, Alegria, Alegria, Glauber Rocha, McLuhan, revista Realidade, Marcuse, Maio de 68, João XXIII, naves espaciais etc. Era a geração dos sonhos. “Sonhar é acordar-se para dentro”, lembra Mário Quintana. Estávamos permanentemente despertos. Nossas quimeras não eram acalentadas por drogas, mas por utopias. Segundo a teoria psicanalítica, todo sonho é projeção de um desejo. Nossa geração desejava ardentemente mudar o mundo, instaurar a justiça social, derrubar a velha ordem. O sonho quebrou-se ao tocar a realidade. A ditadura militar (1964-1985) encarou como subversivos nossos protestos e conteve, com cassetetes e tiros, nossas passeatas. Nossos congressos estudantis terminaram em prisões e, escorraçados para a clandestinidade, não nos restou alternativa senão o exílio ou a resistência. Em nossas utopias os carrascos abriram feridas, e dependuraram nossos ideais no pau-de-arara. O que era canto virou dor; o que era encanto, cadáver. A roda-viva se encheu de medo e o nosso cálice de “vinho tinto de sangue”. Nossos paradigmas ruíram sob os escombros do Muro de Berlim. Não era o socialismo das massas nem os proletários no poder. Era o socialismo do Estado, pai e patrão, atolado no paradoxo de agigantar-se em nome do fim iminente da luta de classes. O economicismo, a falta de uma teoria do Estado e de uma sociedade civil forte e mobilizada, levaram o rio das fantasias coletivas a transbordar sobre as pontes férreas dos engenheiros do sistema. O socialismo real saciava a fome de pão, não o apetite de beleza. Partilhava bens materiais e privatizava o sonho. Todo sonho estranho à ortodoxia era visto como diversionista, ameaçador. Astuto, o capitalismo socializa a beleza para camuflar a cruel privatização do pão. Aqui, todos são livres para falar; não para comer. Livres para transitar; não para comprar passagens. Livres para votar; não para interferir no poder. O Muro de Berlim ruiu e, ainda hoje, a poeira levantada embaça os nossos olhos. Solteira de paradigmas, a esquerda é uma donzela perplexa que, terminada a festa, não consegue encontrar o caminho de casa. Há muitos pretendentes dispostos a acompanhá-la, mas ela teme ser conduzida ao leito de quem quer estuprá-la. Ansiosa, envereda-se pelo labirinto do eleitorarismo e se perde no jogo de espelhos que exacerbam o narcisismo de quem se maquia no reflexo das urnas. Deixa-se arrastar pela rotatividade eleitoral, onde ideais e programas são atropelados pela caça a votos e cargos. E, quanto mais se aproxima das estruturas de poder, mais se distancia dos movimentos populares. É bem verdade que, ao assumir a administração pública, investe em programas sociais, aprimora o acesso à saúde, à educação, moradia e cesta básica. Contudo, desprovida de andaimes, não faz dessa massa um novo edifício teórico, alternativo à globocolonização neoliberal que execra a cidadania e exalta o consumismo, repudia os direitos sociais e idolatra o mercado.   A maré sobe – Equador, Chile, Argentina – mas, na praia, pescadores acostumados a selecionar os peixes têm os olhos cegos pelo reflexo do Sol. A história cessou? Fora da esquerda, não há saída para a miséria que assola o planeta (1,3 bilhão de pessoas). A lógica do capitalismo é incompatível com a justiça social. O sistema requer acumulação; a justiça, partilha. E não há futuro para a esquerda sem ética, utopia, vínculos com os pobres e coragem de dar a vida pelo sonho. Hoje, o socialismo já não é apenas questão ideológica ou política. É também aritmética: sem partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano, os quase 8 bilhões de passageiros dessa nave espacial chamada Terra estarão condenados, em sua maioria, à morte precoce, sem o direito de desfrutar o que a vida requer de mais essencial para ser feliz: pão, paz e prazer. Resta, agora, a esquerda acordar para o sonho. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Morremos sempre, mas levantamos Lula ganha no primeiro turno, segundo IPEC  

Morremos sempre, mas levantamos

Quem estuda história sabe. Desde os tempos mais remotos, quando o ser humano decidiu dividir-se em classes, há os que dominam em nome de suas demandas particulares e os que são dominados, geralmente conformando a maioria. Nem sempre foi assim, certo? Houve uma infinidade de povos que existiram em sociedades livres, comunitárias, de mando compartilhado, cooperativo, nas quais as demandas de todos eram levadas em conta. E até hoje podemos encontrar entre algumas nacionalidades originárias essa forma de ser e estar no mundo, ainda que ilhadas pelo capitalismo.  Dominar em nome de interesses particulares não é coisa fácil. Há que ter todo um trabalho cultural, ideológico, de disseminação de mentiras, que de tantas vezes ditas, se fazem verdades. É preciso fazer a maioria das pessoas acreditar que os interesses de uns poucos são os interesses de todos. E há que ter as forças da repressão para empurrar, pela força bruta, as mentiras feitas verdades àqueles que não foram enganados. É assim que ao longo da história humana as coisas aconteceram e seguem acontecendo.  Nesse processo, sempre que os dominados se levantam em luta contra todas as dores que lhe são impostas, a saída encontrada pelos que dominam em interesse próprio é o extermínio de quem luta, para que não apareçam como laranjas podres a contaminar toda a gente com a verdade que se impõe. Então, começam as campanhas de mentiras e difamações contra os rebelados: “bandidos, subversivos, comunistas, loucos, desagregadores da boa ordem, insatisfeitos, baderneiros, etc…”. E se isso não basta para que uma massa significativa sirva de anteparo à rebelião, chegando ao ponto de matar seus vizinhos, parentes e amigos, acreditando piamente que os rebelados são “do mal, do demo, do capeta”, então vêm as forças da repressão: tiro, porrada e bomba.  Essa é uma receita que se repete, e se repete, e se repete.  Mas, se é assim, porque então as pessoas se levantam em luta? Ora, porque chega uma hora na qual a mentira já não mais se sustenta e as condições da vida material das pessoas ficam tão horríveis que não há mais saída. Os filhos não têm escolas, não têm saúde, não há segurança, a morte ronda pela miséria, pela fome, pela violência social. Como num átimo, as pessoas se dão conta de que os interesses defendidos pelos poderosos não lhes dizem respeito.  Essa é a compreensão de boa parte do povo chileno, agora mesmo, em luta contra um estado que lhes tirou tudo. Eles observam e vêm que há uns poucos que juntam riquezas sem fim, enquanto a maioria empobrece sem parar.  Essa é também a compreensão de grande parcela do povo boliviano, que tinha um governo que apresentava sensibilidade social, garantindo que pelo menos parte das riquezas do país fossem investidas no próprio país, servindo a toda gente. Por isso os bolivianos não aceitam o golpe. Sabem que os que estão a clamar por democracia em nome de deus serão bem piores, e que governarão para si e para garantir seus interesses particulares.  Aos que não têm nem a máquina ideológica, nem as forças da repressão, resta juntar-se e, a partir daí, lutar. Quem decide enfrentar o horror sabe bem o que arrisca: nada menos do que a vida. Porque o poder não tem piedade, nem compaixão, nem clemência. É o que podemos ver no Chile, com os soldados do governo atirando para matar, ou, suprema crueldade, cegar. É o que vemos na Bolívia, com os mortos se acumulando.   Morrem, fatalmente, morrem sempre os do lado da luta pelas demandas coletivas. Os que se atiram frente à repressão em nome de um mundo que possa ser bom e bonito para todos. E são esses mortos os que garantem as conquistas. É assim que é. E é por causa deles que o mundo avança. São os heróis dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos índios, de toda a gente que começa a enxergar. Caem, estão mortos. Mas, desde a beirada de suas tumbas, se junta todo um povo, que se levanta e caminha. E é assim que os mortos levantam e caminham também.  Hoje, no Chile, na Bolívia, no Equador, na Colômbia, nas ruas do Rio de Janeiro, nas veredas das terras indígenas do Brasil, no campo,  tombam os mortos das nossas fileiras. Nós os reverenciamos, os choramos, e os colocamos para andar. Que seja assim, sempre.  Para os que ficam vivos, o poema de César Vallejo: Massa Terminada a batalha, E morto o combatente, veio até ele um homem E lhe disse: “Não morras, te amo tanto”. Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Vieram mais dois e repetiram: “Não nos deixe! Valor! Volte à vida!”  Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Acudiram a ele vinte, cem, mil, quinhentos mil Clamando” “tanto amor e não poder nada contra a morte”! Mas, o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Rodearam-no milhões de indivíduos Com um pedido comum: “Fica aqui, irmão!” Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Então, todos os homens da terra o rodearam, Os viu o cadáver triste, emocionado; Incorporou-se lentamente Abraçou o primeiro homem, pôs-se a andar. https://www.zonacurva.com.br/esquerda-o-resgate-do-sonho/