Zona Curva

Política

Uma luz para você entender um pouco sobre o imbróglio político em que o país está metido.

As mil mortes de Marielle

Marielle – No dia em que foi divulgado o nome dos matadores de Marielle, o que mais se viu nos perfis dos bolsonaristas foram calúnias e mentiras sobre ela. Um verdadeiro horror. Cada um e cada uma, a seu modo, tentando desqualificar essa mulher que vinha lutando bravamente, inclusive pelos policiais militares, que também são vítimas da violência no Rio de Janeiro. São muitos os relatos de familiares de policiais assassinados que tiveram o apoio de Marielle nos mais de 10 anos em que ela trabalhou com a ajuda jurídica e psicológica às vítimas da violência. É, Marielle não começou sua luta contra a violência quando se elegeu vereadora, antes disso já travava pesadas batalhas. Como parlamentar pode ir mais fundo nessa luta e estava dedicada a esfacelar as milícias (grupos paramilitares que extorquem comerciantes e populares) que tomaram conta do Rio. Assassinada por dois policias (um aposentado e outro ex) ligados às milícias, ao longo desse ano ela ainda foi sendo assassinada em cada calúnia, em cada maledicência dita contra ela. Seu corpo segue quente e recebendo balaços. Agora, encerrada a fase de saber quem foi que atirou, deveria ter sequência para se chegar ao mandante. Mas, mais uma vez Marielle é assassinada. O delegado que estava à frente das investigações foi afastado do caso. Segundo o governador do Rio, Wilson Witzel, o delegado não foi exonerado, apenas está saindo porque “está esgotado, absorveu informação demais” e vai passar alguns meses na Itália para espairecer, talvez. Sabe-se que os assassinos foram avisados que haveria a prisão e já tratavam de fugir. Mas, o delegado antecipou o ato e conseguiu pegá-los, um deles já em fuga. Isso diz muito. Muito mesmo. Agora, sabe deus quem vai assumir o caso e com que vontade de chegar à verdade. Marielle seguirá morrendo… Mas, se Marielle segue sendo assassinada todos os dias, seja pelas autoridades ou pelas gentes bolsonaristas, isso significa que ela segue viva. E segue. Nas ruas, nas praças, nas casas, nos corações dos que amam a paz e a justiça. E para cada novo balaço que ela receba, uma nova ressurreição. Mil vezes alvejarão seu corpo. Mil vezes se levantará. Até que caia aquele que mandou apagar seu sorriso. Só aí poderemos chorar e fazê-las descansar! A morte de Marielle e outras mortes Por que o ódio a Jesus? Governo Bolsonaro agrava a violência contra ativistas    

Escolas militares x escolas civis

Talvez fosse melhor pôr o título “Escolas Militares x Escolas públicas”. Ou mesmo o Ensino da falsa história nas escolas militares. Quero dizer: penso nos jovens dos Colégios Militares, nos rapazes e mocinhas ardorosos obrigados a decorar algo como uma História vazia e violentadora, a que chamam História do Brasil – Império e República, de uma Coleção Marechal Trompowsky. Da Biblioteca do Exército. Mas não sejamos preconceituosos, ilustremos com o que os estudantes nas militares são obrigados a aprender, como aqui, por exemplo: “Nos governos militares, em particular na gestão do presidente Médici, houve a censura dos meios de comunicação e o combate e eliminação das guerrilhas, urbana e rural, porque a preservação da ordem pública era condição necessária ao progresso do país.” As militares doutrinam, fazem uma verdadeira Escola com Partido à direita, enquanto escondem a história trágica e o papel destruidor de vidas pela Ordem da ditadura militar. O que antes os democratas reclamavam, a saber, que os colégios militares não poderiam mais continuar independentes do Brasil, como se fossem ilhas inexpugnáveis à civilização, agora volta em nova carga contra a civilização. O poder do governo Bolsonaro hoje deseja a generalização de modelos de escolas militares na educação brasileira. O que se falava antes em emails ameaçadores de 2010, como “graças ao bom Deus que ainda existe o ensino nos Colégios Militares, pois é por meio do mesmo que são formados os alunos que ainda pensam nas Universidades do Brasil. Os livros adotados nos Colégios Militares são os editados pela Biblioteca do Exército, pois os que circulam por aí, nas livrarias nacionais, tem um padrão abaixo do aceitável e estão completamente distorcidos quanto ao seu conteúdo”, agora é doutrina do atual ministro da educação. Mas penso que é hora de retornar à discussão da volta das trevas com uma nova crítica: há um ponto em que as escolas civis, públicas, bem podiam olhar com interesse nas escolas militares. Isto é: as nossas civis bem que poderiam traduzir à sua maneira as militares. Quero dizer, com uma tradução para a liberdade em uma discussão permanente em sala de aula. Penso que nos falta nas escolas públicas, civis, uma educação para humanidades, para o melhor humanismo. Entendam, isso não é incluir a humanidade em puro currículo ou grade curricular. É criar uma formação para a vida em todas as disciplinas, nada militares. Não devemos dar meios de ascender socialmente e formar novos consumidores entre os pobres, reproduzindo a ideia de exclusão do sistema capitalista. Devíamos formar pessoas com visão de humanidade. Essa é a escola ideológica que nos falta, e que os militares bem o fazem à sua maneira: formando soldados do tempo da guerra fria, anticomunistas. Lembro da minha experiência. Como seria bom se nas escola civis houvesse educadores como o professor Arlindo Albuquerque, que foi um exemplo isolado no Colégio Professor Alfredo Freyre, em Água Fria, o maravilhoso bairro periférico do Recife. Arlindo Albuquerque era um mestre insuperável, um formador de consciências. E falava do que conhecia com o rigor da carne e do espírito. Ele fora espancado e preso pelos militares no primeiro de abril de 1964. Mas o que fazia o mestre desses limões? Ah, que coisa bela era o mestre a declamar “Sur la liberté de la conscience”, do livro de francês. O texto no livro de Marcel Debrot vinha sempre a calhar, pois em estado de êxtase que o mestre nos fazia ler “Sobre a liberdade da consciência”. — Vejam a beleza. Repitam esta frase. O título é uma coisa extraordinária — e silabava em ritmo lento “sur la liberté de la conscience”. O professor Arlindo não entra aqui por acaso. Ele faz parte da história que é oculta, filtrada e corrigida dos alunos das escolas militares. Ele vem ainda porque nos ensinou que a nossa pátria não é a maior nem a melhor nem a mais perfeita. A nossa pátria é apenas o lugar onde nascemos e sentimos o gosto de feijão e do primeiro beijo. Porque a nossa pátria, assim, é a própria humanidade, aquela que passa por Rousseau, o escritor que o mestre Arlindo nos lia em voz alta e flamejante a nos ensinar que todos os homens são iguais na terra. Essa é a educação que tanto nos falta. Urgente. Hoje. #Ocupaescola: A lição da juventude paulista Título a ser revogado  

Governo Bolsonaro e Sínodo Pan-Amazônico

Sínodo Pan-Amazônico – O noticiário informa que os cardeais brasileiros estão sendo espionados pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que relata ao governo recentes encontros deles com o papa Francisco, no Vaticano, para prepararem o Sínodo (do grego, ‘caminhar juntos’) sobre a Amazônia, a se reunir em outubro, em Roma. “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”, declarou o general Augusto Heleno. Isso faz recordar a famosa pergunta de Stálin na Segunda Grande Guerra: “Quantas divisões possui o Vaticano?” Segundo o Documento Preparatório do Sínodo, predomina na Amazônia a “cultura do descarte”, somada à mentalidade extrativista, que convertem o planeta em lixão. “A Amazônia, região com rica biodiversidade, é multiétnica, pluricultural e plurirreligiosa, um espelho de toda a humanidade que, em defesa da vida, exige mudanças estruturais e pessoais de todos os seres humanos, dos Estados e da Igreja”. (…) “É de vital importância escutar os povos indígenas e todas as comunidades que vivem na Amazônia, como os primeiros interlocutores deste Sínodo”. A Igreja denuncia situações de injustiça na região, como o neocolonialismo das indústrias extrativistas, projetos de infraestrutura que destroem a biodiversidade e imposição de modelos culturais e econômicos estranhos à vida dos povos. Nos nove países que compõem a Pan-Amazônia (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela, incluindo Guiana Francesa como território ultramarino), registra-se presença de três milhões de indígenas, no total de 390 povos. Vivem nesse território também entre 110 a 130 “Povos Indígenas em Situação de Isolamento Voluntário”. A bacia amazônica representa uma das maiores reservas de biodiversidade (30 a 50% da flora e fauna do mundo); de água doce (20% da água doce não congelada de todo o planeta); e possui mais de 1/3 das florestas primárias. Segundo os bispos, “o crescimento desmedido das atividades agropecuárias, extrativistas e madeireiras da Amazônia não só danificou a riqueza ecológica da região, de suas florestas e de suas águas, mas também empobreceu sua riqueza social e cultural, forçando um desenvolvimento urbano não integral nem inclusivo da bacia amazônica”. Lamentavelmente, “ainda hoje existem restos do projeto colonizador que criou manifestações de inferiorização e demonização das culturas indígenas. Tais resquícios debilitam as estruturas sociais indígenas e permitem o desprezo de seus saberes intelectuais e de seus meios de expressão”. O papa Francisco afirmou em Puerto Maldonado, Peru, em janeiro de 2018: “provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios com o estão agora”. O pontífice denunciou esse modelo de desenvolvimento asfixiante, com sua obsessão pelo consumo e seus ídolos de dinheiro e poder. Impõem-se novos colonialismos ideológicos disfarçados pelo mito do progresso que destroem as identidades culturais próprias. Francisco apela à defesa das culturas e à apropriação de sua herança, que é portadora de sabedoria ancestral. Essa herança propõe uma relação harmoniosa entre a natureza e o Criador, e expressa com clareza que “a defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida”. Hoje, o grito da Amazônia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex3,7). É um grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade e escuta de Deus. Grito que pede a presença de Deus, especialmente quando os povos amazônicos, ao defenderem suas terras, têm seu protesto criminalizado, tanto por parte das autoridades como da opinião pública. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Papa Francisco defende preservação do meio ambiente em nova encíclica

Povos indígenas reagem aos ataques do novo governo

Os ataques do novo governo aos povos indígenas e a mudança administrativa que joga para a pasta da Agricultura a responsabilidade sobre a demarcação das terras originárias já estão provocando reação imediata das comunidades organizadas e autônomas que sobrevivem e lutam no território nacional. Passados mais de 500 anos da invasão e uma sistemática política de extermínio ainda resistem 305 etnias que ocupam pouco mais de 12% do território brasileiro. A maior parte, quase 90%, fica na Amazônia, um espaço de exuberante floresta no qual as comunidades ainda podem viver segundo sua cultura e, de quebra, garantir a preservação de um bioma que é fundamental não apenas para o Brasil, mas para todo o planeta.  Basta uma olhada nos aplicativos “Google Maps e Google Earth” e imediatamente pode-se perceber que onde tem comunidade indígena tem proteção e a floresta vibra. Onde tem usina ou fazenda, a vida míngua. A Amazônia, por suas características climáticas e ambientais, sempre foi um espaço de difícil ocupação, tanto que até hoje é a região com menor densidade demográfica. Mas, a riqueza de sua diversidade, os minerais e a voracidade da busca por energia (com a construção das usinas hidrelétricas) tem feito com que os olhos se movam cobiçosos para lá. E assim, o latifúndio, que já ocupa com o agronegócio mais de 60% do território, quer abocanhar esses 12% que estão sob a posse dos povos originários.  A intenção do governo, atendendo ao desejo dos fazendeiros, é tirar os indígenas das terras “tornando-os cidadãos”, o que, na prática significa eliminar não apenas seu modo de ser no mundo, como a sua desintegração como ser humano que tem uma cultura própria, visceralmente diferenciada da cultura ocidental judaico/cristã. Seguindo os desejos do capital ultraliberal, os indígenas precisam ser incorporados como força de trabalho nas cidades e nos campos, sem direito a sua própria terra. Mais um episódio de acumulação primitiva que só servirá para destruir o modo de vida dos povos originários. Nessa semana, depois de uma declaração do presidente de que os indígenas que vivem nas terras originárias são como animais em zoológicos, uma carta aberta dos povos Aruak Baniwa e Apurinã deixa bem claro sua posição com relação a essa proposta de torna-los “cidadãos”: Não estamos nos zoológicos, senhor Presidente, estamos nas nossas terras, nossas casas, como senhor e como quaisquer sociedades humanas que estão nas suas casas, cidades, bairros. Somos pessoas, seres humanos, temos sangue como você, nascemos, crescemos, procriamos e depois morremos na nossa terra sagrada, como qualquer ser humano vivente sobre esta terra. Nossas terras, já comprovado técnica e cientificamente, são garantias de proteção ambiental, sendo preservadas e manejadas pelos povos indígenas, promovendo constantes chuvas com as quais as plantações e agronegócios da região do sul e sudeste são beneficiados e sabemos disso. Eles também rechaçam firmemente a ideia de “integração” alardeada pelo presidente: “Já fomos dizimados, tutelados e vítimas de política integracionista de governos e Estado Nacional Brasileiro, por isso, vimos em público afirmar que não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas ações de governo e do Estado Nacional Brasileiro. Esse país chamado Brasil nos deve valor impagável, senhor presidente, por tudo aquilo que já foi feito contra e com os nossos povos. As terras indígenas têm um papel muito importante para manutenção da riqueza da biodiversidade, purificação do ar, do equilíbrio ambiental e da própria sobrevivência da população brasileira e do mundo”. Também nessa semana a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB – entrou com uma representação na Procuradoria Geral da República solicitando o controle judicial da Medida Provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro que passa para a pasta da Agricultura as atribuições sobre identificação, delimitação e registro de terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas. Segundo a proposição da APIB, essa medida afronta o Artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho bem como uma série de outras leis nacionais. A representação também solicita a instauração de um Inquérito Civil com o objetivo de investigar  e monitorar os atos e processos administrativos de demarcação de terras indígenas que irão tramitar no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como apurar eventual responsabilidade administrativa atentatória a moralidade administrativa, a democracia e ofensa de direitos culturais dos povos indígenas, baseada no Artigo.129, inciso V, da Constituição Federal de 1988. Exigem ainda que sejam tomadas medidas urgentes a fim de evitar risco de danos irreparáveis aos povos indígenas pela suspensão e/ou interferência política nos procedimentos demarcatórios, atingidos pelo eventual comportamento da Ministra e seus subordinados. Não bastassem as ações no campo da comunicação e do judiciário, as entidades autônomas de organização indígena já estão preparando ações públicas contra o ataque a sua cultura e as suas terras. Segundo as comunidades, os importantes passos dados após a Constituição de 1988 não podem retroceder. E o Brasil não pode voltar a ter uma prática colonial, tal como a que marcou o etnocídio e o memoricídio pós invasão. Haverá luta. Ministério da Agricultura regulará demarcação de terras indígenas Pelos direitos dos povos originários Mulheres indígenas lutam pelo futuro em Brasília   Terras indígenas são estratégicas contra mudanças climáticas, defende deputada Joenia Wapichana Ministério da Agricultura regulará demarcação de terras indígenas Mineração ameaça terras indígenas Indígenas no Brasil

Ministério da Agricultura regulará demarcação de terras indígenas

Uma das primeiras medidas provisórias do novo governo (MP 870) foi passar a competência de regularização das terras Indígenas e Quilombolas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento. A ministra da pasta é Tereza Cristina,  engenheira agrônoma que era deputada federal pelo DEM/MS e líder da Bancada Ruralista no Congresso. Também foi defensora da lei que flexibiliza o uso de agrotóxicos, o que significa mais venenos na mesa dos brasileiros. Em tese, essa MP significa um duro golpe para as comunidades tradicionais, pois desde há tempos que o agronegócio quer se apropriar das terras que estão nas mãos dos povos originários e dos remanescentes dos quilombos. São terras ricas em fertilidade, em fármacos e em minerais. Agora, na mão de uma representante dos fazendeiros e agroexportadores é certo que o ataque será brutal. Para os indígenas e quilombolas nada mais resta do que seguir a velha luta, travada desde os tempos da conquista. Afinal, em nenhum governo, as coisas foram muito diferentes. Nos anos de governo do PT, por exemplo, houve pouca demarcação e muita omissão nos casos dos assassinatos sistemáticos. E, ainda que não houvesse ataques às terras já demarcadas, faltou ousadia ao antigo governo para uma ação mais afirmativa junto aos indígenas. Durante vários anos, a bancada ruralista tentou tirar a decisão sobre demarcação da mão do presidente da República, buscando passar para o Congresso, onde tinha maioria, mas não obteve sucesso. Agora, com a MP que dá ao Ministério da Agricultura esse poder, a velha proposta dos ruralistas fica mais viável, já que quem comanda o ministério é uma representante desses interesses. Os povos originários brasileiros, em torno de 305 etnias, falando 274 línguas, com uma população de quase um milhão de pessoas, ocupam apenas 12% do território. Mesmo assim não conseguem viver suas vidas em paz. Os ruralistas querem rever várias demarcações e estão dispostos a “incluir” os povos que ainda têm suas próprias terras no sistema de produção capitalista transformando-os em “trabalhadores livres”, o que na prática significa a extinção das comunidades e a transformação dos indígenas em indigentes nas cidades. Na linguagem ideológica eles usam a expressão “progresso da nação”, mas na verdade a apropriação das terras indígenas servirá apenas para engordar poucas contas bancárias. A luta seguirá sendo dura. Mas, como diz Ailton Krenak, os povos estão aí, resistindo, há mais de 500 anos. E não vão esmorecer. Povo Anacé luta pela proteção da água no Ceará

Indígenas no Brasil

Um mundo em pedaços, mas que caminha! por Elaine Tavares  Darcy Ribeiro já mostrou, através de seus inúmeros livros, que é a fazenda que dá início à sociedade brasileira. E a fazenda é coisa que se fez e se consolidou única e exclusivamente por conta da escravidão. Primeiro com a escravidão dos indígenas e, depois, a dos negros. Os brancos, invasores, não queriam saber de trabalho. Matavam os índios, ocupavam as terras, cultivavam com as técnicas mais rudimentares, esgotavam o solo e partiam para outra fazenda. A imensidão do “mundo novo” parecia não ter fim. A lógica da fazenda criada nas américas era o nascedouro do sistema capitalista, pois tinha uma organização empresarial que integrava a mão-de-obra numa única unidade operativa destinada a produção para o grande mercado, sob o comando de um patrão, que visava lucros. “O novo mundo não era uma nação, era uma feitoria”.  Conhecer esse processo de destruição das culturas que viviam nas terras invadidas em 1500 deveria ser fundamental para entender o presente. Mas, essa é uma história bem escondida, porque trazê-la à luz significa encontrar milhões de cadáveres sob o tapete e se deparar  no espelho com uma imagem feia demais. Melhor acreditar que foi um “encontro de culturas” e que venceu a “civilização”. Domesticados, evangelizados, os povos pagãos que aqui viviam poderiam encontrar a salvação no céu. Assim pensava o padre José de Anchieta, que se “emocionava” em saber que as crianças indígenas que eram mortas em profusão, iriam para o céu, porque tinham sido batizadas.  Passaram-se 500 anos e a empresa fazendeira criada pelos que invadiram essas terras ainda continua. O tempo passou, as lutas foram travadas, mas a vitória segue na mão daquele 1% que historicamente se apossou de tudo. Hoje, como antes, não temos um país, mas uma empresa. E, numa empresa só vale o que dá lucro. O que é “inútil” ao capital precisa ser eliminado.  Por isso não é novidade alguma a dança das cadeiras que o novo governo vem fazendo com a Funai, entidade que deveria cuidar dos interesses dos povos indígenas que, a duras penas, vêm mantendo suas existência na grande fazenda Brasil. Num momento diz que vai acabar com a Funai, noutro que ela vai para esse ou aquele ministério. E os povos indígenas ficam com os olhos arregalados vendo os “fazendeiros” traçarem planos.  Na verdade, pouco importa se a Funai fica ou vai nesse redemoinho de pastas e espaços que servem muito mais de acomodação para os “amigos do rei”. O que tem de ser visto aí nesse cirandeio é a relação que o novo governo terá com os indígenas. O presidente eleito já disse claramente, ele que parece ser um conhecedor profundo da alma autóctone: “os índios querem ser como nós”. Ao pronunciar essa frase lapidar aponta o caminho da já conhecida fórmula da integração. O índio precisa virar branco, porque ele precisa se transformar num trabalhador. Ou seja, ele tem de vender sua força de trabalho, gerar mais-valia para algum patrão e consumir tudo que ganhar para enriquecer outro patrão. Simples assim.  Com essa política de “inclusão” do índio na vida “branca” tudo estará resolvido. As terras reivindicadas serão tomadas pelo estado e poderão ser doadas ou vendidas a preços módicos aos velhos amigos. A fazenda Brasil ficará ainda maior. Francisco Fernández-Bullón, num texto brilhante sobre o papel das corporações na América Latina, mostra como o Brasil vem se transformando cada dia mais no que ele chama de uma “ditadura da soja”, na qual quem dá a linha sobre a vida são as grandes empresas transnacionais que dominam a tríade: sementes transgênicas X agrotóxicos X remédios. Esses fazendeiros modernos querem alargar as fronteiras da soja no Brasil e para isso precisam avançar sobre todas as terras. E esses 12% que hoje estão nas mãos indígenas são quase como as joias da coroa: férteis, ricas em minerais e com plantas passíveis de se transformarem em produtos farmacêuticos.  Assim que a proposta de Bolsonaro que visa transformar o índio em “um de nós” não tem nada de humanista nem de generosidade. O que está em curso é justamente mais uma etapa da acumulação primitiva do capital e significa o sacrifício de mais vítimas ao deus dinheiro.  O “um de nós” que ele quer transformar é fazer do indígena um trabalhador espoliado e explorado. Um a mais na moenda, para ser sangrado até a última gota. Mas, como diz Ailton Krenak, os indígenas têm resistido por mais de 500 anos e não vai ser agora que eles vão sucumbir a uma mentira tão sem fundamento. Assim, com Funai ou sem Funai, as comunidades organizadas em entidades autônomas, livres da tutelagem de igrejas ou ongs, vão encontrar caminhos de luta.  Nas páginas dos jornais, os  “paladinos da Justiça” e os “bons cristãos” seguem gerando cortinas de fumaça falando em acabar de vez com a corrupção no Brasil. O que eles não dizem é que a corrupção é constituinte do capital e que nessa cruzada moralista – que logo mostrará sua ineficácia  – as vítimas serão as mesmas de sempre. Ou seja, nós, trabalhadores, quilombolas, indígenas, ribeirinhos. Tal como em 1492 os invasores chegaram com a cruz querendo levar os pagãos ao céu, os novos cristãos empunham seus símbolos para matar, ofender, triturar e explorar em nome da fé no capital. E assim como Anchieta se deleitava em ver os indiozinhos morrerem cristãos, esses novos fazendeiros (que na verdade são vassalos) querem se deleitar em ver os índios de hoje entrarem para a “civilização” que os engolirá. O que eles não sabem é que aqueles indiozinhos mortos à facão pelos invasores foram semente, como todos os outros que tombaram, seguem brotando. Os povos originários seguirão em luta porque esse é um campo que conhecem bem demais. A mentira da integração é forte, sabemos, mas toda mentira tem perna curta. E os povos sabem onde lhes aperta o calo. Avante, parentes. Mesmo sem pernas, como diz Residente, a gente vai caminhar.  

A onda Bolsonaro é só a espuma da insatisfação social contra a elite política do país

Onda Bolsonaro – São cada vez maiores os indícios de que a onda Bolsonaro é mais uma erupção do mesmo descontentamento político visto em 2002 e em 2013. Os pretextos variaram, o cenário também, mas o que voltou a manifestar-se é a insatisfação difusa de boa parte da população brasileira, especialmente a urbanizada, com relação ao divórcio crescente entre a elite política que governa o país e a sua base social. Este descontentamento ultrapassa as fronteiras ideológicas, partidárias e até mesmo as estruturas sociais convencionais. É uma revolta contra um sistema de apartheid político formado por uma elite que se alterna no poder há décadas e a grande massa de cidadãos que são mantidos à margem das grandes decisões econômicas e sociais, sendo forçados a pagar o preço dos erros da classe dirigente. Trata-se de uma revolta que confunde os analistas de plantão, especialmente a imprensa, porque o fenômeno não segue processos já conhecidos como a insurreição popular, quartelada militar, golpe parlamentar ou terrorismo. O tsunami da insatisfação não é marxista e nem nazista, não é petista e nem neofascista, porque já não é mais possível identificar as suas raízes através da limitada dicotomia entre comunismo e capitalismo. Tem a ver com uma complexa conjugação de fatores onde há elementos de diversas ideologias, interesses econômicos, corporativismos partidários, mudanças em classes sociais e fenômenos conjunturais como a quebra generalizada de paradigmas, provocada pelas inovações tecnológicas. O grande desafio é destrinchar esta teia de complexidades, o que só é possível quando se consegue observar o que está acontecendo sem usar óculos com lente vermelha ou com lente verde amarela. A diversidade e complexidade do descontentamento crescente na massa da população brasileira puderam ser observadas em 2002, quando o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores encarnaram o sentimento de renovação e de esperança alimentado por mais da metade do eleitorado brasileiro. É paradoxal, mas Lula e o PT foram os depositários, nas eleições de 2002 e 2006, das mesmas expectativas que hoje movem os eleitores a apostar num imprevisível Bolsonaro e no desconhecido Partido Social Liberal (PSL). O PT e o nosso apartheid político Os protestos de 2013 marcaram o primeiro grande sintoma da frustração popular em relação às esperanças depositadas no PT. O partido, que encarnou a expectativa pela mudança do apartheid político, acabou se envolvendo no jogo partidário e ficou igual a todos os demais. Isto decepcionou a classe media e forneceu o pretexto para que grupos conservadores canalizassem o descontentamento em seu proveito, usando como instrumento o combate à corrupção. Em 2002, Lula e o PT vincularam a expectativa de mudanças no sistema político à campanha contra o conservadorismo, simbolizado no PSDB e seus aliados. Dezesseis anos mais tarde, ocorre o mesmo processo, só que com sinal invertido. É o ultraconservador Bolsonaro que se beneficia da esperança de novos tempos, ao culpar o esquerdismo por toda insatisfação popular gerada pela frustração do sonho petista. Lula e Bolsonaro, cada um no seu tempo, foram outsiders no sistema político brasileiro, por isto encarnaram as expectativas de renovação. Ambos enfrentaram a desconfiança generalizada da elite empresarial. Em 2002, falou-se numa fuga em massa de empresários assustados com o possível socialismo petista. Em 2018, são os profissionais liberais pensando em emigrar para Portugal, Uruguai e até mesmo para o nordeste brasileiro, temendo o recrudescimento da xenofobia, machismo e racismo, bem como a violência social gerada pelo sectarismo político. Aliás, diga-se de passagem, o descontentamento com o sistema político é um fenômeno internacional que está deixando perplexa a elite multinacional porque ela não consegue perceber que a maré conservadora em eleições é apenas um sintoma, um alerta, da inconformidade das pessoas com a forma pela qual estão sendo governadas. Os novos líderes, em países como França, Itália, Hungria, Polônia, Filipinas e vários outros, têm pela frente a opção entre enveredar pelo autoritarismo para cumprir promessas eleitorais ou aderir ao sistema para sobreviver politicamente. Ambas as escolhas levam a um mesmo destino: mais uma frustração causada pela negação de que haja uma maior participação das pessoas na gestão pública. O ódio e a intolerância como complicadores Este exercício de contextualização histórica nos ajuda a ver que a onda Bolsonaro não é o fim dos tempos e nem o advento de um nirvana político/econômico. É apenas a manifestação de um fenômeno mais profundo que é a desilusão de boa parcela dos brasileiros com um sistema de representação popular que perdeu o significado democrático por conta do nosso apartheid político. Isto nos ajuda também a perceber que alimentar o ódio ideológico e a intolerância social só complica o entendimento de que o grande desafio é mudar os nossos sistemas partidário e de governo para torna-los realmente representativos e participativos. Os xingamentos, agressões e mortes só aumentam a complexidade de um processo que já é, por natureza, extremamente complicado. As divergências continuarão a existir porque ninguém consegue ser dono da verdade e capaz de dar, sozinho, a solução para a insatisfação popular. Mas os conflitos são inevitáveis e a violência é um dado de situação. A nossa preocupação é impedir que os antagonismos acabem ofuscando a necessidade de resolver o problema principal. Publicado originalmente no Medium. Políticos continuam a se eleger com financiamento da elite      

Comunicação: o uatizapi, sozinho, não muda o mundo

Teórico da comunicação, o canadense Marshall MacLuhan tem vindo à baila de novo, com seu determinismo tecnológico, pois em função das novas tecnologias que estão transformando o mundo muitos estudiosos da comunicação têm revisitado suas teses. Ele escreveu um livro em 1964 que trazia para o debate a questão dos meios de comunicação, sendo esses meios apresentados como a própria mensagem. Segundo ele o meio no qual a comunicação é propagada acaba sendo ele mesmo um instrumento importante de mudança das relações sociais. Um exemplo usado foi o da estrada de ferro. Sua disseminação, ligando os lugares, diminuindo o tempo para a chegada de uma carta, por exemplo, acabou extrapolando seu sentido de comunicação e alterando a vida das gentes em todas as esferas da existência. As tecnologias, então, para McLuhan, mudavam a escala, o ritmo e o padrão da vida humana. Assim foi o jornal, o rádio e a televisão. Ele acreditava que se devia estudar mais o meio e não apenas a mensagem que ele dissemina, como faziam os teóricos da época. Bom, McLuhan estava certo na ideia de que se deveria estudar também o meio, mas errava em pensar que só olhando para o meio se poderia chegar a uma análise correta da realidade que envolve todo o processo comunicativo. Não seria assim tão simplista. A realidade é complexa. Mas, como é comum aos funcionalistas, a tendência sempre foi separar as partes, rejeitando a universalidade da análise. Hoje, 2018, estamos no meio de um furacão tecnológico. Os meios de comunicação foram alterados significativamente, provocando, desde a popularização da internet, uma mudança concreta na temperatura social e política do planeta. Uma pessoa com um celular esperto na mão está conectada no mundo e não apenas recebe informações, mas também produz e compartilha. Tudo isso numa velocidade alucinante.  Se fôssemos seguir a proposta de McLuhan – analisando apenas o meio – iríamos verificar parte das importantes mudanças que aconteceram na sociedade com a chegada dessas tecnologias. A vida ficou mais rápida, o tempo de tudo acelerou, as respostas são instantâneas, não há mais separação entre o público e o privado, o individualismo exacerbou, a alienação cresceu e a fronteira entre a realidade e a ficção vai desaparecendo. A internet tem se transformado na via principal da comunicação e o celular esperto é o meio onipresente na vida de um número gigante de seres humanos.  Mas, para além do meio, há uma série de variáveis que também precisam atenção.  Como, por exemplo, a possibilidade do conhecimento concreto da realidade e a educação. Lembro que nos velhos tempos de discussão sobre a influência da televisão, ainda no século passado, Umberto Eco insistia no fato de que se deveriam criar espaços para o que ele chamava de “alfabetização para a televisão”. Entendia o pensador italiano que se as pessoas conhecessem as artimanhas da televisão teriam muito mais condições de se imunizar contra a manipulação, afinal, notícias falsas sempre foram constantes nos meios comerciais, sob o controle da classe dominante.  Atualmente, a chance de uma pessoa ser manipulada pela informação falsa cresceu de maneira assustadora. E isso se deve justamente a revolução tecnológica que colocou em cena os novos equipamentos. Mas, é claro que a culpa da manipulação não é do celular esperto. De novo, questões como educação, conhecimento e poder econômico precisam ser agregadas à análise. Uma pessoa que compreenda como se dá o processo de dominação no mundo, educada para o uso das tecnologias, terá mais chance de navegar nesse mar de informação que jorra a uma velocidade estonteante. O pensamento crítico não brota como mágica. Precisa de muita leitura, muita reflexão, muito debate. Sem isso, a pessoa segue o fio da confiança. “Se foi fulano ou beltrano, em quem confio, que disse, tá dito”.  A confiança é um ato de fé. Não é um processo de conhecimento. Mas, ao que parece, é o que dirige a vida internética nos dias atuais. As eleições brasileiras estão mostrando de maneira bem clara como isso acontece. Existe o meio, que fatalmente muda a vida de toda a gente, mas também existe a mensagem fabricada e existe o poder econômico garantindo que essa mensagem feita de mentira, chegue aos celulares espertos das pessoas, pela via da confiança: os grupos de amigos e de família.  Com isso, aderimos mais um elemento de análise que é a do poder econômico e como ele pode ser decisivo num processo e numa situação em que as pessoas estejam completamente despojadas da ferramenta do pensamento crítico. A guerrilha comunicacional implementada no Brasil não diz respeito apenas a milhões de pessoas que estão enojadas com a política e a corrupção e que, portanto, ficam sensíveis aos discursos moralistas.  Estas pessoas são, de fato, importantes reprodutoras das mentiras criadas, mas sem a fabricação dessas mentiras, no texto e na imagem, elas certamente compartilhariam em seus grupos de confiança outras mensagens. O fato é que existem empresas especializadas em fabricar mentiras, existem empresas que roubam os dados disponibilizados nas redes sociais e existem empresas cujo trabalho é disparar mensagens para todos esses dados roubados e/ou comprados. Todas são empresas, logo, precisam ser pagas para fazer o serviço. E são pagas por quem? Pelos empresários que serão beneficiados com a situação que as mentiras criarão. É o círculo vicioso da dominação. Não se trata de fabricação de pós-verdades, como dizem alguns. É a mentira mesmo, a boa e velha mentira que sempre venceu as “guerras” de todo o tipo. E os meios de comunicação são os veículos perfeitos para a disseminação dessas mentiras.  Quem insiste em dizer que os meios não têm todo esse poder, basta olhar para a história. Guerras são produzidas a partir da semeadura da mentira nos meios de comunicação de massa. Orson Welles colocou os Estados Unidos em estado de histeria com a “Guerra dos Mundos”, uma história de ficção de George Wells  transmitida pelo rádio como se fosse uma cobertura jornalística da chegada de extraterrestres, e chegou a levar pessoas ao suicídio. Naqueles dias, em 1938, o

Querida democracia

por Frei Betto A senhora, todos sabem, nunca foi como a Amélia, que, na opinião do saudoso Mário Lago, era mulher de verdade. Desde que surgiu no cenário das instituições políticas, sua presença sempre foi cercada daquelas suspeitas que envolvem mulheres que se casam com um e flertam com outros. Lembra-se de seus tempos na Grécia, quando ainda menina? Na verdade, nem todos os habitantes de Atenas tinham entrada livre em seus jardins. Segundo alguns pesquisadores, apenas 20 mil atenienses desfrutavam da liberdade que a senhora veio a introduzir nas decisões políticas. Os 400 mil escravos, os metecos (estrangeiros que viviam em Atenas) e as mulheres ficavam de fora, excluídos da cidadania e, portanto, do direito de participar da vida pública. Na Idade Moderna, Rousseau, Tocqueville e Montesquieu colaboraram muito para a sua maturidade. Com o seu charme, aos poucos a senhora fez a vetusta nobreza, toda enrugada, recolher-se a seus aposentos privados à espera de morte condigna, embora algumas famílias reais insistam em prolongar-lhe a agonia. Mas, em geral, o fazem de braços dados com o parlamentarismo, como meras figuras decorativas, permitindo que a senhora ocupe o espaço das decisões que resultam do confronto plural de partidos e opiniões diferentes. Seu melhor atributo, a liberdade, exaltada na tela de Delacroix, aparece com os seios à mostra, guiando o povo. Pena que as suas duas outras filhas, a igualdade e a fraternidade, ainda não tenham saído da pré-escola, repudiadas por quem se farta com as desigualdades e se impõe pela discriminação. Um fenômeno curioso é como a senhora é mais falada que amada, exaltada que praticada, evocada que realizada. Veja o Brasil. Desde a queda do Império, a senhora foi sequestrada por nossas elites e, embora o nosso povo continue a pagar, como resgate, cotas de sofrimento e miséria, a senhora ainda enfrenta dificuldades para ganhar praças e ruas. Quando tentou fugir do cativeiro, seus áulicos a puniram com rigor, fazendo-a desaparecer de nosso cenário político, como ocorreu no Estado Novo, na década de 1930, e na ditadura militar, entre 1964 e 1985. Com o fim do regime dos generais, a senhora voltou à cena, timidamente, ainda refém dos mesmos políticos que se locupletaram com a ditadura. Tancredo Neves morreu à porta de sua casa e, nos braços de Sarney, a senhora experimentou a vertigem inflacionária, favorecendo a sua queda na Casa da Dinda. Para salvá-la, foi preciso que o povo ocupasse as ruas, resgatando-a de quem pretendia, em seu nome, transformar a coisa pública em negócio privado. Veio o governo Itamar Franco e criou o real, moeda que, no bolso da maioria, continua virtual. E fez a cama para FHC, Lula e Dilma, apoiados pelos mesmos partidos tolerados pela ditadura militar, embora acobertados em siglas diferentes. Assim, os interesses das elites ficaram assegurados, salvos das turbulências conjunturais, enquanto o Brasil se tornou campeão mundial de desigualdade social. Hoje, ocupa o vergonhoso 73º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano. O Brasil conta com 13,4 milhões de desempregados e 15 milhões de analfabetos funcionais. Agora, em pleno ano eleitoral, querem de novo conspurcá-la, pois os donos do poder, tão bem estudados por Raymundo Faoro, não admitem que a senhora tenha plena vigência em nosso país. Todos podem vencer as eleições, exceto quem não está de acordo com o atual modelo econômico, financeiramente concentrador e socialmente excludente. Daí o terrorismo conservador, as pressões dos especuladores, e a arrogância da Casa Branca, disposta a desestabilizar o país caso seja eleito um candidato que não agrade ao deus Mercado. Ora, querida democracia, por que a tratam tão mal? Sua presença entre nós é mero jogo de cena, a ponto de não suportar a sua vigência em nossa vida política, como o comprova o golpe parlamentar de 2016? Dos que se gabam de estarem comprometidos com a senhora, quem, de fato, admite a alternância de poder no Brasil? Os que fazem terrorismo eleitoral em seu nome confessam que a temem, pois se acostumaram a governar o povo, jamais com o povo e em benefício do povo. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Pós-democracia  

#Elenão: As mulheres na frente

por Elaine Tavares Nesse sábado, 29, as mulheres brasileiras mostrarão sua força, manifestando-se em todo o país contra a facistização da vida representada pela figura do Bolsonaro. Uma mobilização única, original e poderosa, que unifica os contrários e coloca as gentes em luta contra a violência e o ódio ao outro. Lembro como se fosse hoje a passeata, em Florianópolis, em 20 de junho de 2013. Era o auge dos protestos contra a corrupção – início da batalha contra o governo petista –  e a capital viu saírem às ruas pessoas que sempre jogaram pedra nos manifestantes tradicionais. O protesto juntou mais de 30 mil almas, coisa nunca vista. A RBS, rede catarinense filiada a Globo, transmitia ao vivo. Estranhamente não chamava ninguém de “baderneiro”. Naqueles dias, a classe dominante dava sua bênção para a ocupação das ruas, a Globo chamava ao civismo e  as pessoas acorreram aos borbotões.   Eu lá estava com os companheiros de sempre. E, aturdida, via as pessoas manifestarem seu ódio contra os militantes de partidos políticos e movimentos sociais. Ou seja, nós. A passeata virou uma batalha, na qual jovens vestindo camiseta – doada por partidos de direita – com inscrições contra a corrupção berravam: “sem partido, sem partido”, e enfrentavam os militantes que se agrupavam com suas bandeiras. Exigiam, de forma violenta, que fossem baixadas as bandeiras partidárias e que a passeata seguisse como uma gosma informe. Uma falsa gosma, pois como disse, os partidos de direita estavam ali, distribuindo camisetas e insuflando a massa contra os partidários da esquerda. Apenas não carregavam bandeiras, porque nunca o fizeram. Eles agem nas sombras. Aproximei-me de umas jovens “encamisetadas”, que gritavam alucinadas, com olhos em brasa, contra as bandeiras de partidos de esquerda. E perguntei: – Por que vocês são contra os partidos? – Hã? É, porque é sem partido, ora! – Sim, mas por quê? – É sem partido e pronto. Não fazemos política. Tu tem partido? – inquiriram e me encararam, agressivamente. Naquele dia, uma massa furiosa nos atacou e obrigou que os grupos embandeirados se descolassem da passeata, seguindo na frente. Escancarava-se a luta de classes e o ovo do fascismo que tomou conta do país estava posto. Lembro que comentei com vários companheiros sobre o que estava começando ali. No dizer de Adorno, o fascismo é um vírus que existe latente, em cada um. Diz ele que dadas as condições, ele brota, forte, e se espalha incontrolavelmente. Eu via aquilo na passeata. Um ódio irracional na massa, mas extremamente racionalizado nas direções políticas da direita. Um processo de construção de um consenso que foi crescendo, se consolidando e acabou no impedimento da presidenta Dilma. Jogada de mestre. As atitudes fascistas também se consolidaram e seguiram a todo vapor. Ações truculentas de membros da justiça, total abandono das leis burguesas, agressões a gays, lésbicas, mulheres, estudantes, professores. Qualquer pessoa identificada como “petista” ou “comunista” passou a ser apontada como um mal. E as ameaças de consolidação de um regime de força foram se fazendo sem freio. Eu que vivi a ditadura militar, como criança e adolescente, lembro muito bem o terror vivido pelas famílias que tinham qualquer posição crítica ao regime. Os vizinhos vigiavam e acusavam anonimamente, muitas vezes se aproveitando da denúncia de “comunista” para vinganças pessoais. Era um tempo de vigilância e de medo. Não se podia pensar. Só dizer sim, sim, sim, ao regime. O crescimento das atitudes fascistas praticadas por pessoas comuns, gente “de bem” me preocuparam e provoquei amigos, partidos, movimentos, sem resposta. Estaríamos caminhando para um tempo de fascismo? O que poderia acontecer caso tudo isso se fortalecesse e crescesse sem parar?  Pensava que havia que botar freio a essa fascistização da vida ou ela se espalharia como rastilho de pólvora, no fundamentalismo do terror. Acreditava que era preciso juntar forças com as mulheres, os negros, índios, trans, trabalhadores formais, informais, homossexuais, enfim, todos os oprimidos pelo capital e pelo patriarcado. Uma luta de todos nós. Mas, naqueles dias era arar no deserto. Agora, às vésperas da eleição, quando essa ameaça iniciada lá em 2013 se concretiza numa candidatura específica, a de Bolsonaro, pronta para assumir o comando do país, fortalecendo ainda mais as práticas fascistas, foram as mulheres que, entendendo a gravidade das coisas, decidiram agir. Uma ação que começou pelas redes sociais, com as brincadeiras de sempre, mas foi crescendo e se fazendo real na vida mesma. A mulherada passou por cima das diferenças partidárias, dos pequenos poderes, de tudo. E, uma a uma, foram dando-se as mãos contra o “coiso” numa demonstração inequívoca de inteligência e numa estratégia perfeita que, sistematicamente, tem conscientizado pessoas e derrubado os índices do candidato. Agora, nesse sábado, dia 29, toda essa intensa mobilização internética se expressará nas ruas, na luta concreta contra a facistização da vida que é o que representa a candidatura Bolsonaro. Em Florianópolis, o encontro será no Largo da Alfândega, às 15 horas. E as mulheres se juntarão para dizer que “ele, não”. Cada uma terá lá no seu coração o seu candidato, de centro, de esquerda, e talvez até de direita, mas cada uma sabe que algumas coisas precisam ser banidas da face da terra. Tais como o racismo, o preconceito e ódio pelo diferente. Nesse sábado, em todo o Brasil as mulheres marcharão. Estarão juntas, e mostrarão sua força. Tenho esperanças que nas eleições essa proposta seja derrotada. E creio que será. Mas, ainda assim será necessário seguir juntas, no mesmo movimento, porque o fim do pleito não colocará fim nessa serpente insidiosa que já vive entre nós. Um grande estrago foi feito e há ainda um longo trabalho por fazer. Trabalho real, para além das eleições. Que a unidade feminina permaneça, porque está sendo uma bela lição.  Viva Pagu Mulheres contra Cunha em Florianópolis