
Dois toques sobre a eleição no Brasil
Eleições 2022 – Antes da eleição eu estava sentada lá no Elias, comendo um pastel. Sentou ao meu lado um homem e logo puxou conversa perguntando em quem eu iria votar. Não era um homem sem cultura formal, era um brasileiro médio, pequeno empresário e bem articulado. Respondi que não sabia ainda, para dar corda. Ele então começou a falar sobre as propostas da “esquerda”. Uma delas era que o Lula, se eleito, iria transformar os banheiros das escolas em banheiros conjuntos, meninos e meninas junto. E que aquilo era um absurdo. Também que nas escolas iriam ensinar como ser gay e puta, estragando a família brasileira. Disse ainda que as vacinas que as pessoas tinham tomado eram feitas de placenta humana e que causavam câncer em massa. Que o Bolsonaro estava certo em não querer que a população se vacinasse, que ele salvou vidas. Falou da ministra Damares e no quanto ela estava trabalhando para proteger as meninas de tanto pecado.
Sobrou até para o Papa Francisco, que, segundo o cara, era um pedófilo convicto e que, unido com a esquerda, iria perverter todas as crianças. Disse ainda que o comunismo era a coisa mais horrível do mundo, embora não conseguisse me explicar em que exatamente consistia. O que ele sabia era que destruía a família. Por isso a necessidade de escolas militares. Além disso, falou do quanto o Lula era ladrão e do tanto que tinha roubado o país. Por isso era fundamental que a população estivesse armada, para se proteger da violência e dos ladrões. Também afirmou convicto que as queimadas na Amazônia e no Pantanal tinham sido provocadas por esquerdistas aliados ao Leonardo DiCaprio, para manchar o nome de Bolsonaro. Por fim, para salvar a família, só mesmo o Bolsonaro.
Estas são algumas das verdades que estão firmes na cabeça de um número expressivo de brasileiros. São ideias que cruzam o éter nos grupos de família, de amigos, na igreja, nas conversas de bar. O comunismo é do diabo, torna as pessoas marginais e por isso é preciso acabar com essa ideologia satânica. Se precisar, para dar fim no comunismo é preciso acabar fisicamente com os comunistas. Eles são a maçã podre que está enfraquecendo a nação e a família. Eles são monstros que realizam sacrifícios humanos para se manter no poder no mundo. Tudo o que dá errado no país é culpa deles. Eles causam os problemas para incriminar Bolsonaro. Por isso a cruzada do presidente e de sua religiosa esposa. Eliminar os comunistas é salvar a nação. E as pessoas falam isso sem qualquer pejo. Porque para elas matar um comunista não é crime, é ajudar na missão de deus para criar um país seguro para seus filhos. Por isso acreditam na ideia de que os militares, quando deram o golpe em 1964, estavam corretíssimos em perseguir, torturar e matar os comunistas. Porque eles são a causa de todo o mal.
Esse tipo de discursos não está apenas no âmbito das pessoas mais simples e religiosas. Ele circula velozmente mesmo entre os letrados. Tem se transformado numa espécie de monstro que carrega todo mal do mundo. E não adianta querer argumentar, trazer elementos da história. Não. É crença. Não está no campo da razão. Qualquer tentativa de debate é rechaçada com um olhar estranho de reconhecimento: ela é o diabo. Já ouvi isso até mesmo de pessoas da família, pessoas muito próximas. E esse reconhecimento implica em uma ação imediata de rechaço e de necessidade de eliminação. Assim que não adianta trazer números sobre o quanto a ditadura matou e torturou. Para essa gente, os milicos fizeram o que tinham de fazer e, se precisar, eles mesmos o fazem agora. Tudo para salvar a família. Não há argumento que penetre esse muro criado pela fé cega.

É nesse mundo que estamos agora. E, de certa forma, perdidos. Porque o que se vê no campo da esquerda é uma incapacidade teórica e prática de atuar nesse universo. Primeiro que há uma negação sobre esse discurso e uma desqualificação das pessoas que o disseminam. Não sei se é o caminho. A política está atravessada pela moral, sempre esteve de algum modo quando definimos o que é bom ou o que é ruim. Mas, agora, nesses tempos, a moral se sobrepõe porque a política – tal como aparece – tem se mostrado incapaz de dar respostas aos problemas cotidianos. Geralmente quem tem feito isso – dar respostas e caminhos – é a igreja. As neopentecostais estão em cada esquina, como as farmácias. E elas são espaços onde as pessoas se sentem seguras para sonhar com a resolução dos problemas. Então, entregar a vida nas mãos de deus parece ser o mais seguro. E quem é o homem de deus? Bolsonaro. Então, quem está com ele, está com deus. Por isso, um completo desconhecido, com uma arma na mão, pode virar o senador eleito de um estado, como aconteceu em Santa Catarina, porque ele é um soldado de deus para acabar com os bandidos e defender a família. Esse é o mantra. “Deus no controle”, e não um deus qualquer, mas um deus vingador, sedento de sangue. E os comunistas é que são os satânicos. Ah, mas claro. Eles estão a serviço do diabo. Por isso devem ser eliminados. Simples assim.
Elementos da realidade do governo de Bolsonaro tais como a compra de imóveis de luxo com dinheiro vivo, corte de 92% da verba para Ciência e Tecnologia, aumento dos salários do presidente, do vice e dos generais em 69%, mais de trinta bilhões de orçamento secreto, cinco bilhões para o Fundão eleitoral, cinco milhões para os desfiles de moto, pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desvio de verbas de combate à Covid, retirada de recursos das Universidades, fim de direitos trabalhistas, invasão das terras indígenas, e outros tantos, não são considerados. Isso não é considerado problema pela maioria da população.
E é nesse ritmo que a realidade perde força diante da fé. Se os preços dos alimentos estão nas alturas, não têm nada a ver com o governo. É coisa do demo e dos comunistas. Se a gasolina foi a sete reais, culpa dos esquerdistas. Se não há emprego, é porque os comunistas exigem direitos, ora só. Direitos! Se não há segurança é porque os esquerdistas estão mancomunados com os bandidos. Essa é a oração repetida e repetida. “Tudo está começando a melhorar”, insistia o candidato Bolsonaro nos seus comícios. “Agora vai”, porque já limpamos bastante o país de comunistas. Mas ainda há que limpar mais. E a fé cega acompanha e acredita. Nas suas falas, ele toca no que interessa: a comida vai chegar à mesa, a família estará protegida. Quem não quer isso?
Bolsonaro cometeu todos os crimes eleitorais possíveis durante a campanha. Fez até do sete de setembro um ato eleitoral. E a justiça quieta, no miudinho. Porque os que a operam estão igualmente montados nesse cavalo moral. A classe dominante apoia porque o Bolsonaro é útil ao sistema, tem garantido todas as suas demandas. E a massa, hipnotizada pela fé, não questiona. Esse é o pântano onde estamos metidos. A realidade material é de arrocho, miséria – a fome já toca mais de 33 milhões de pessoas – insegurança, medo. Só que isso não mobiliza para a mudança, porque o presidente já prometeu melhorar. A ideologia vencedora é de que com armas na mão será possível defender a família e que, com deus no comando, a vitória virá. Quem não quer defender a família?
A história nos conta de momentos assim, de prevalência da moral, tais como a inquisição, o nazismo, o fascismo. São tempos duros para os quais as respostas não são fáceis ou simples. A esquerda brasileira não conseguiu ainda se mover nesse campo. Ainda não têm respostas. Mas, como também nos mostra a história, fatalmente acabará encontrando. Por enquanto, está tateando. As propostas bolsonaristas são concretas e dizem respeito às demandas concretas da população. “Vamos melhorar a vida, vamos limpar o país dos ladrões, vamos defender a família”. As propostas da esquerda não são claras e não tocam a realidade, prefere defender pautas particularistas que só tocam na classe média. Eis aí o nó.
E para nosso desespero ainda há quem faça discurso de vitória por terem conseguido colocar algumas figuras representativas dos movimentos sociais no parlamento. Ora, a política não se decide ali. Haveria que se retomar um discurso classista, repleto de propostas claras para a classe trabalhadora. Propostas concretas, que dizem respeito aos dramas reais dos trabalhadores. Os trabalhadores querem emprego bom, defender os seus filhos das drogas, da violência, e querem viver em paz. O candidato da direita fala com eles, promete isso, ainda que não cumpra. Esse é o ponto. Em quatro anos, a vida piorou, mas “agora vai melhorar”, aponta o messias. E o povo, desesperado por mudanças, acredita.
Jornalista. Humana, demasiado humana. Filha de Abya Yala, domadora de palavras, construtora de mundos, irmã do vento, da lua, do sol, das flores. Educadora, aprendiz, maga. Esperando o dia em que o condor e a águia voarão juntos, inaugurando o esperado pachakuti.
