É possível VER com Dom Juan e Carlos Castañeda

por Fernando do Valle CARLOS CASTANEDA – O índio Dom Juan tenta ensinar ao jovem Carlos Castañeda a VER, o que parece uma das atividades humanas mais básicas não é tão simples como parece. O velho bruxo índio mostra o caminho para enxergar a essência das coisas, para perceber além da aparência, sem julgamentos morais e preconceitos. Se conseguir, Carlos pode se tornar um homem de conhecimento, aquele que derrota seus medos e domina suas vontades. Durante as aulas metafísicas de Dom Juan, Carlos passa por duras provas e o bem-humorado índio tira sarro das tentativas do aprendiz Carlos. Dom Juan ri de mim, de você que lê este texto, ditos homens civilizados que complicam a vida e correm tanto para chegar em lugar algum.  “Para mim, não há vitória, nem derrota, nem vazio. Tudo está cheio até a borda; tudo é igual, e minha luta valeu a pena. A fim de se tornar um homem de conhecimento, a pessoa tem de ser um guerreiro, não uma criança choramingas. É preciso lutar sem desistir, sem reclamar, sem hesitar, até VER, só para compreender então que nada importa” (Dom Juan em trecho de Estranha Realidade, página 86). Castañeda conta que seu primeiro encontro com o índio da tribo Yaqui Juan Matus ocorreu em uma estação rodoviária por indicação de um amigo que sabia da procura do então estudante de antropologia Carlos Castañeda por informações sobre antigos rituais xamânicos para uma tese de doutorado na Universidade da Califórnia (UCLA). Daí para frente, muitos livros foram escritos por ele sobre seu mergulho nos mistérios da sabedoria ancestral indígena. Estima-se que Castañeda tenha alcançado a impressionante marca de 8 milhões de livros vendidos em 17 línguas. Em 1973, seus livros chegaram a vender 16 mil cópias por semana, mostrando como o autor foi um dos preferidos entre a geração da contracultura que buscava caminhos alternativos entre os anos 60 e 70. O primeiro livro de Carlos Castañeda, The teachings of Dom Juan (com o infeliz título em português de A erva do diabo) foi lançado em 1968, o ano que ainda não terminou. Três anos mais tarde, em 1971, o escritor publicou A separate reality (em português: Uma estranha realidade). Os dois primeiros livros mostram o esforçado estudante Carlos no duro aprendizado dos mistérios indígenas turbinado pelo mescalito, assim chama Dom Juan o peiote, usado amplamente em rituais dos povos originários das Américas. Do peiote se retira a mescalina, que o escritor britânico Aldous Huxley  fez uso em suas experiências que resultaram em As Portas da Percepção (1954), livro de cabeceira de Castañeda. No leito de morte, a mulher do escritor Aldous Huxley injetou no marido duas doses de LSD para seu despertar espiritual. Conheça essa história. Carlos Castañeda concedeu raras entrevistas, uma delas ao estudante bolsista da UCLA Luiz André Kossobudzki em 1975 e publicada na revista Veja (na época uma boa revista, não a publicação de quinta categoria encontrada hoje nas bancas). Para Kossobudzki, o escritor explicou assim sua caminhada na trilha dos ensinamentos de Dom Juan: “o guerreiro-pirata age por si mesmo, e assume a responsabilidade por suas ações. No processo de me tornar guerreiro-pirata eu encontrei poder pessoal, isto é, o poder da coragem e disciplina. Don Juan me ensinou a enxergar, ver o mundo ao invés de simplesmente olhar”.  “Só um doido empreenderia a tarefa de se tornar homem de conhecimento por sua própria vontade. Um homem sensato tem de ser levado a isso” (Dom Juan em trecho de Estranha Realidade, página 30).  “Sempre que você olha para as coisas, não as vê. Apenas olha para elas, suponho que para se certificar de que há alguma coisa ali. Como não está preocupado em ver, as coisas parecem as mesmas cada vez que olha para elas. Mas quando aprende a VER, por outro lado, uma coisa nunca é a mesma cada vez que você a vê, e no entanto é a mesma” (Dom Juan em trecho de Estranha Realidade, página 38).   O enigmático Dom Juan Dom Juan Matus, pseudônimo do índio yaqui mexicano que guiou Castañeda, teve seus pais assassinados por soldados mexicanos, viveu em vários lugares e era adepto da linhagem conhecida como nagualismo ou toltequismo, tradição xamânica de centenas de anos do México e América Central. Outros povos além do tolteca praticavam essa modalidade de xamanismo, ou seja, não se pode confundir o povo tolteca com a tradição xamânica tolteca. Alguns leitores suspeitam que Dom Juan sequer existiu, e ele foi um personagem ficcional criado por Castañeda baseado no contato com alguns xamãs e em seus estudos sobre o tema. Até a esposa de Carlos, Margaret Runyan Castañeda, mesmo admirando os livros do marido, afirma que nunca conheceu Dom Juan e dizia que o vinho preferido de Carlos, um português chamado Mateus, pode ter inspirado o nome do bruxo indígena, provocava Margaret. Muitos dos ensinamentos passados por Dom Juan têm origem na cultura indígena de dois, três mil anos atrás. Cinco séculos de perseguições aos cultos dos povos chamados pré-colombianos pelos colonizadores europeus em sua maioria católicos transformaram os ritos toltecas em subcultura desprezada pela elite local. “Talvez algum dia você aprenda a VER, e então saberá se as coisas importam ou não. Para mim nada importa, mas talvez para você tudo importará. Você já devia saber que um homem de conhecimento vive pelos seus atos, não por pensar nos atos, e não por pensar no que vai pensar depois que acabar de agir. Um homem de conhecimento escolhe um caminho de coração e o segue; e depois olha e se regozija e ri; e então ele vê e sabe. Sabe que sua vida terminará muito depressa; sabe que ele, como todos os outros, não vai a parte alguma; sabe, porque vê, que nada é mais importante do que qualquer outra coisa” (trecho de Estranha Realidade, página 83). Os xamãs eram conhecidos como guias espirituais livres de ambição e medo e conhecedores dos caminhos espirituais pelos povos originários das Américas. Eles também possuíam a capacidade de identificar as … Continue lendo É possível VER com Dom Juan e Carlos Castañeda