
O fato não existe
Em A Chinesa (1967), filme engajado de Godard, a aluna pergunta ao professor em fictícia universidade revolucionária: “o que é um fato exatamente?”, o mestre responde que “fatos são coisas que existem objetivamente e a verdade é o laço que une tudo”. Matuto e matuto mais um pouco sobre a relação da frase com a mídia e percebo que esse tal laço redentor não existe e nunca existirá.
Podemos nos perder em elucubrações filosóficas e morais e chegaremos ao consenso de que a verdade sempre será parcial. Deixemos as verdades peremptórias para a religião e a ciência.
No jornalismo, a discussão sobre verdades e mentiras ferve quando a mídia mostra suas vísceras e relações umbilicais com o poder/grana em praça pública como temos presenciado. O ditado mais lugar-comum nunca foi tão providencial: “duvide de tudo o que você lê”, cara-pálida.
Qualquer acontecimento, evento ou diálogo será interpretado por testemunhas, editores, fontes e outros. Pior, o jornalista, além de interpretá-los conforme seu julgamento pessoal ainda deve (ou, pelo menos, tenta) seguir caminhos ideológicos, interesses e manuais do veículo de comunicação em que trabalha.
Na faculdade, aprendi que basta ouvirmos os dois lados de qualquer história para ela se tornar imparcial e “factual”, pura balela, funciona se o jornalista fosse robô que deixa seus gostos, preferências e ideologias em casa ao adentrar qualquer redação.
O jornalista norte-americano H. L. Mencken, apesar de ter escrito algumas bobagens preconceituosas no início do século passado, fez um diagnóstico certeiro e infelizmente atual das redações: “o máximo que uma faculdade de jornalismo pode conseguir – mesmo supondo que ela injete em seus alunos um civilizado código de ética – é gerar jovens repórteres que fugirão do jornalismo tapando o nariz, assim que se familiarizarem com o que se passa dentre de um típica redação de jornal. Aqueles que perseverarem na profissão devem ser uns rapazes estúpidos que não notam o mau cheiro ou sujeitos sem espinha que se habituaram a respirá-lo, e alguns bem ordinários, que gostam do fedor”.
O jornalista ao escolher uma palavra em detrimento de outra, o editor de imagem ao cortar tal imagem, torna tudo subjetivo. Para uns, Gilmar Mentes, ops!, fala a verdade, para outros, não passa de um mitômano. Se você acreditar nos editoriais semanais de Mino Carta, sua verdade é diametralmente oposta à verdade (suspeito que isso não exista, talvez no hospício) de um Reinaldo Azevedo.
A tábua de salvação reside no fato, ops! de novo, de que devemos lutar pelas nossas opiniões e princípios sem torná-los a volúvel afirmação do próprio ego. Se você acredita em determinada verdade, é louvável que grite e esperneie por ela. Somente desse sentimento pujante que nascem belos textos e matérias e, ainda mais longe, poéticas revoluções.
Sou blogueiro, jornalista e criador de conteúdo. Pai de Lorena, santista e obcecado por literatura, cinema, música e política.
Comments (6)
Fernando, cheguei ao seu “zonacurva” lendo seu comentário no blog do José Geraldo Couto no IMS por conta do filme “Um Método Perigoso”. Também tenho um blog, o Empório ( http://www.oemporiodocesar.blogspot.com.br ), e percebi que temos temas comuns de interesse. Tratei recentemente de jornalismo por conta da fantasiosa história do convênio Mendes&Veja.
De fato o “fato” não existe, por vezes, existe em outras e existe mais ou menos, às vezes mais para mais e às vezes para menos em outras.., ainda.
O caso da nossa grande imprensa (e grande aqui, siginifica, a que tem poder econômico e, portanto, maior possibilidade de extensão de tentáculos) é estar, toda ela, atrelada a uma específica estrutura de pensamento e para defendê-la, rasga qualquer manual de norma ética, e olha que eu nem estou falando de jornalismo, ou propriamente de “ética jornalística”. É ética mesmo, ou a falta dela.
A nossa verdade pode estar diretamente relacionada a uma crença, e há que se respeitá-la, mas podemos também ser atropelados por verdades conscientemente fabricadas. Neste caso, o “belo texto” e as “poéticas revoluções”, ainda que raros, também podem ser frutos dos fabricantes de verdades.
Gostei do seu blog, mas vi, que o único ponto fora da curva, pro meu gosto, é o link do Noblat.
Abraço,
Gê César.
Oi, Gê César, grande comentário! Visitei o seu blog e gostei bastante. O blog do Noblat (concordo que ele dá várias escorregadas) está entre os blogs recomendados por ter sido um dos primeiros a acreditar em jornalismo ‘de verdade’ na web. Abraço, Fernando.
Publicado originalmente no CMI (Centro de Mídia Independente)
Sim Sílvio
GG 11/06/2012 14:24
Por torrent. Procure por “La chinoise”.
Publicado originalmente no CMI (Centro de Mídia Independente)
De onde você baixou GG?
Silvio 11/06/2012 08:12
Você baixou o filme pelo torrent?
Publicado originalmente no CMI (Centro de Mídia Independente)
Muito bom!
Gerhard Grube 11/06/2012 03:02
Um bom argumento por si mesmo nada vale. Uma boa idéia, que não precisa ser apenas um pensamento, mas coisas concretas, sólidas, mesmo soluções técnicas, precisam ser defendidas com unhas e dentes. Para que possam ter alguma perspectiva de êxito.
Por melhor que seja, nada se impõe por si mesmo. Tem que ser defendido.
Gostei do artigo.
Aproveitei a dica e baixei o filme. Inclusive legenda em português.
Bem diferente da eterna mesmice estadunidense.
uma opiniao eh baseada em fatos ou os fatos sao o q baseiam uma opiniao?