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A América Latina e os Estados Unidos

Estou fazendo o curso da Camila Vidal, no Iela  (Instituto de Estudo Latino-Americanos da UFSC)  sobre as Intervenções dos Estados Unidos na América Latina. E, confesso, ao final de cada aula, saio completamente deprimida. Não pela aula, que é sempre ótima, mas pelas informações. A proposta do curso, que começou no ano passado, é desvelar, com riqueza de detalhes, cada intervenção dos Estados Unidos nos países da Pátria Grande, desde o roubo das terras mexicanas, primeiro conflito gerado pelo famoso Destino Manifesto, até nossos dias. O que causa a profunda tristeza é observar que nesses conflitos de invasão explícita ou de geração de golpes a conversinha é sempre a mesma: levar a democracia e o desenvolvimento aos países bárbaros. É um eterno retorno. Basta que o país se desloque, mesmo que bem pouquinho, da órbita dos Estados Unidos para que comece a sofrer as consequências. As formas de ataque também são sempre as mesmas, embargos, bloqueios econômicos, campanha midiática sobre um suposto perigo de comunismo, financiamento de grupos de “oposição” (armados ou não) e invasão direta. No geral, a situação que gera o ataque dos EUA também é sempre a mesma. Um governo mais à esquerda ou um governo algo progressista que comece a mudar a lógica garantindo educação, saúde, moradia e seguranças ao povo passa a ser visto como perigoso. E, se não se aliar aos EUA nos seus interesses, já vira inimigo. Mas, se for além, buscando garantir soberania nas ações e na exploração de suas riquezas, aí vira o próprio demônio. É hora de o império agir. O começo de tudo vem pela campanha de propaganda contra o país. A mídia mundial embarca na canoa, divulgando as notícias produzidas pelas agências dos EUA, como se ali estivesse a verdade. Principia então o desenho do “monstro”. E não importa que esse monstro tenha sido amigo e formado pelos Estados Unidos, como foi o caso de Noriega, no Panamá, ou Sadam, no Iraque. Saiu um pouco da rota, está na fogueira. No geral, o problema principal detectado é uma “tendência ao comunismo”. Começou a oferecer educação, serviços públicos de qualidade, usar os recursos nacionais para desenvolver o país, pronto, virou comunista. E o comunismo aí colocado como algo ruim. Sendo que não é! Na verdade, o comunismo é quase uma sociedade perfeita, onde cada um ganha conforme o que necessita e atua na sociedade para o bem de todos. Pois isso é um perigo para os que dominam, então há que demonizar. E assim vamos indo, estudando a história de cada um dos nossos países da América Latina: O México, na parte norte, a América Central com todo o drama da violência, genocídios e da migração presente em cada país, o Caribe e sua pobreza endêmica apesar da exuberante riqueza natural que o faz paraíso dos ricos, e a nossa América do Sul, com sua história de traições, golpes militares, golpes parlamentares e golpes midiáticos. Não escapa um. Cada país abaixo do rio Bravo já sofreu a intervenção do império, seja diretamente ou fomentando traições internas. É batata. Nenhum bem pode vir para a maioria da população. Há que manter a massa no arrocho e garantir a maior taxa de lucro para o 1% que domina. Saiu disso, tá morto. Nesse universo infernal produzido pelos Estados Unidos o único país que se mantém firme é Cuba, a pequena ilha caribenha que enfrenta há mais de 60 anos o ataque ininterrupto do império. É absolutamente fantástico que consigam manter a revolução e as conquistas que vieram depois dela, apesar de tanto ataque. O povo cubano é deveras extraordinário, afinal é submetido a um bombardeio midiático diário e sofre um embargo econômico criminoso. Apesar disso o povo da ilha se reinventa e resiste, valentemente. Mas, no que diz respeito aos demais países o eterno retorno é lei. Passam anos de ditadura, de governos autoritários ou neoliberais e quando a população finalmente se propõe a mudar e elege alguém menos alinhado aos interesses estadunidenses, lá vem a máquina imperialista, a Estrela da Morte, com todo o seu arsenal ideológico e militar. Só na história contemporânea podemos citar a Venezuela e o golpe armado em 2002 contra Chávez, a deposição de Bertrand Aristide no Haiti em 2004, criando esse caos que não tem fim no país, o golpe em Honduras em 2009 que deixou um rastro de sangue, a queda do presidente Lugo no Paraguai para o retorno da velha oligarquia, a queda da Dilma em 2016 no Brasil que levou à tragédia Bolsonaro, o golpe contra Evo Morales em 2019, a queda de Pedro Castillo em 2022, as tramas na América Central para impedir que ideias mais arejadas pudessem assomar, com o sistemático assassinato de lideranças de lutas populares e ambientais, e por aí vai. É claro que numa análise mais acurada a gente vai perceber que internamente nos países há erros e equívocos praticados pelos governantes, o que torna a ação imperial ainda mais fácil de ser efetivada. Mas, o que não se pode deixar de perceber é que os EUA estão sempre ali, como uma águia assassina a esperar a hora de comer os olhos dos governantes – e da população – que ousarem sair da linha. Volto a lembrar de Cuba, cujo presidente, Fidel, chegou a sofrer mais de 600 tentativas de assassinato. Sobreviveu a todas e para azar do império, morreu velhinho, no aconchego do lar, do jeito que quis, amado pelo povo. De novo, um exemplo solitário nesse mar de podridão criado pelos Estados Unidos em toda a nossa Pátria Grande. O fato é que no capitalismo, cuja locomotiva ainda é os EUA (China e Rússia disputam o cargo), resistir a esse modelo que garante riqueza e vida boa a apenas 1% da população é uma tarefa gigantesca. As populações lutam com o que podem, que são apenas os seus corpos nus. Como enfrentar a máquina gigantesca da guerra? Lembro-me da invasão ao Panamá em 1989, quando uma força de milhares de soldados estadunidenses bombardeou a

Dez anos sem Chávez

Hugo Chávez – Foi em 1815 que Simón Bolívar escreveu sua famosa Carta da Jamaica, na qual estava plasmado o seu sonho de uma Pátria Grande, com a união de todos os espaços que estavam sob o jugo da Espanha. Um sonho que ele tratou de concretizar com sua saga libertadora voltando para a Venezuela e recomeçando o processo de independência. E foi na ponta da espada que ele e os demais que o seguiam foram liberando país por país. Depois, em 1826, Simón chamou um Congresso Anfictiônico no Panamá, no qual pretendia então tornar real a proposta da união deste imenso espaço geográfico que vai desde o México até a Patagônia. Obviamente que não queria os Estados Unidos nesse bloco, porque já sabia que a vocação deste país era imperial. Mas a ambição e a traição de muitos que haviam caminhado com ele acabaram por fazer ruir essa proposta e, em 1830, Bolívar morre sem ver a Pátria Grande. Desde aí os países das Américas Central e do Sul, mais o México seguiram suas histórias individuais, imediatamente abocanhados pelo império inglês e, mais tarde, pelos Estados Unidos. Dependência e subdesenvolvimento, isso foi o que nos restou. Bolívar estava esquecido, bem como sua generosa e visionária proposta. O tempo passou e em 1992, a Europa, já bastante golpeada pela ação imperialista dos Estados Unidos, decidiu criar a União Europeia, unificando os países para melhor enfrentar o titã. Já na América Latina, unidade era palavra que não se escutava. O máximo que se chegou foi a uma tentativa de integração comercial, mas apenas com os países do sul. Tudo isso mudou em 1999 quando, na Venezuela de Bolívar, surge um líder político absolutamente fora da curva: Hugo Chávez. Ele vence as eleições e começa o que vai chamar de uma “revolução bolivariana”. Assim, 184 anos depois da libertária Carta da Jamaica, finalmente outro político venezuelano ousa falar de soberania e unidade para os países abaixo do rio Grande, tendo como horizonte o socialismo. Bolívar ressurgia em todo o seu esplendor. Com Chávez começa então outro  momento único para a América Latina. Até então, apenas a pequena ilha de Cuba sobrevivia, heroicamente, acossada e bloqueada pelos Estados Unidos. O grito de unidade da Pátria Grande vinha agora de um país petroleiro, riquíssimo, mas no qual sua população agonizava massacrada pelos velhos partidos políticos que se alternavam no poder, legando apenas à classe dominante os ganhos astronômicos do petróleo. Com Chávez, tudo muda. Os ganhos do petróleo passam a ser usados para o benefício de toda gente venezuelana e o presidente ousa enfrentar o império estadunidense acercando-se de Cuba e anunciando que o país iria avançar para o socialismo. Sacrilégio, heresia. Imediatamente toda a máquina ideológica do capital e do império passou a atacá-lo usando a velha tática de alcunhar ditador, antidemocrático e autoritário tudo aquilo que não está aos seus pés, ajoelhado e a serviço. Chávez estava a serviço dos trabalhadores da Venezuela. Um crime! HUGO CHÁVEZ MORREU EM 5 DE MARÇO DE 2013 Ainda assim, atacado e difamado, de 1999 a 2013, tempo em que esteve à frente do governo, Chávez palmilhou o caminho prometido de soberania, unidade e socialismo. Deu início a uma série de ações no sentido de unificar os países, integrou pela primeira vez a América Central e o Caribe em um plano de Pátria Grande, realizou acordos, garantiu petróleo para os países menores, buscou o desenvolvimento endógeno, virou o jogo. Nunca, depois de Bolívar, havia existido um líder assim, capaz de pensar a América baixa na sua totalidade e capaz de atuar em consequência. Veio a Telesur, proposta de mídia integradora, Unasur, união dos países, Banco do Sur, um banco nosso, Petrocaribe, Celac e uma série de outras iniciativas que apontava para a unidade dos países na busca de um bloco que pudesse sair da dependência imposta desde há séculos. Chávez foi um furacão. Passou a ser, depois de Fidel, a figura mais odiada pelos poderosos do mundo. Por outro lado, sua voz poderosa, seu riso maroto, suas tiradas alegres, seu conhecimento sobre a realidade latino-americana foram amealhando o amor dos trabalhadores, das classes empobrecidas, que viam nele uma liderança verdadeiramente disposta a colocar “patas arriba” a velha forma de governar, invertendo as prioridades. Chávez andava pelo seu país, cada domingo num lugar, onde falava com a população, cara-a-cara, em um inédito programa de televisão, que chegava a durar oito ou nove horas. E desde os problemas estruturais até a falta de calçamento de uma rua podiam ser discutidos ali. Absurdamente popular. Ele prometia e cumpria. Chávez mudou a Venezuela e mudou a América Latina. Trouxe de volta Bolívar, Martí, Che, Sandino e todos os demais que haviam lutado para ver um continente unificado, um povo irmanado e soberano. E, mais do que esperança, trouxe ação concreta. Foi um furacão, uma locomotiva reluzente e alegre, disposto a mudar a vida de todos nós. Em 2013 o venceu um câncer, que alguns acreditam ter sido inoculado. Ele era considerado pior do que o demônio pelo império. A história talvez um dia nos dê estas respostas. Mas, o fato é que ele se foi. E depois disso, a grande máquina do sonho da Pátria Grande ficou mais lenta. Neste março completam dez anos de sua partida. E a América Latina que vemos hoje não se aproxima sequer palidamente daquela que ele ousou iniciar a construção. Mas, assim como Bolívar, ele vive no coração e nas mentes daqueles que continuam carregando esse sonho de soberania. Eu tive o privilégio de viver esses 14 anos do tempo de Chávez no comando dos desejos mais profundos dos trabalhadores latino-americanos. Pude vê-lo e ouvi-lo, sua cara mesclada de negro e índio, sua voz de trovão. Pude caminhar pela Venezuela bolivariana, vendo a luta de classes acontecer nas ruas, o povo – antes esquecido – assomando no controle de suas comunidades. E, hoje, quando se completa uma década de sua semeadura, ainda me descem gordas lágrimas de profunda saudade. Quanta falta nos faz.

O ecossistema informativo nacional no governo Lula

O governo brasileiro que assumiu há poucos dias terá pela frente um desafio inédito na política nacional, porque seu sucesso dependerá mais da forma pela qual vai se comunicar com a população do que pela realização de projetos e obras. Parece um absurdo, uma incongruência, mas é uma realidade nova que reflete as mudanças em curso no modo como a informação e a comunicação passaram a ser preponderantes na política brasileira e mundial. A principal mudança na gestão do país parece ser a de que os chefes de poderes executivos nacionais, estaduais e municipais terão que se comunicar mais com a população do que assinar papéis e negociar com políticos e empresários. É que na era digital, a sustentabilidade política de um governo passou a depender, fundamentalmente, da forma como um presidente é percebido por milhões de pessoas que frequentam as redes sociais. A percepção política integra o que os especialistas em comunicação chamam de ecossistema informativo, ou seja, o conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e tecnológicos que condicionam a maneira como as pessoas desenvolvem o seu conhecimento do mundo em que vivem. Até agora as percepções envolviam dois tipos de conhecimento sobre fatos, dados e eventos noticiados pela imprensa: o conhecimento de alguma coisa e o conhecimento sobre algo. No primeiro caso, temos o puro registro de uma novidade, como por exemplo, quando lemos uma manchete de jornal. Sabemos o que aconteceu, mas ignoramos porque, como, os antecedentes e as consequências de uma notícia. A opinião pública na era digital não é mais formada a partir da lógica, causalidade e reflexão. O volume, diversidade e a velocidade com que as informações são jogadas no meio social impedem as pessoas de raciocinar como antes. Estamos na era do impacto informativo, onde as percepções são formadas a partir do acúmulo de notícias, dados, fatos e eventos, ou seja, através do bombardeio informativo nas redes sociais e em veículos convencionais como os canais noticiosos em redes fechadas de TV. A estratégia informativa do impacto é a responsável pelo fato de tantas pessoas acabarem ignorando a lógica e o chamado bom senso. Bolsonaro usou esta técnica para criar percepções distorcidas em suas lives das quintas-feiras, cujo conteúdo era depois reforçado pela reprodução em massa da mesma mensagem, numa operação coordenada pelo chamado gabinete do ódio, instalado no Palacio do Planalto. Ferramenta obrigatória O uso, durante a última campanha eleitoral, da técnica de acumulação de postagens impactantes através das redes sociais, conseguiu inclusive compensar as resistências da grande imprensa nacional à campanha de reeleição do presidente Bolsonaro. No passado, o apoio de grandes jornais e redes de televisão era um elemento decisivo para a viabilidade eleitoral de candidatos e para a sustentabilidade política de presidentes, governadores e prefeitos. Agora, a grande imprensa dedica boa parte de sua agenda noticiosa a repercutir postagens impactantes, boa parte delas fake news, produzidas nas redes sociais. A comunicação com a massa de usuários de redes sociais transformou-se numa ferramenta obrigatória para quem está no poder ou aspira a ele. O presidente eleito terá que adotar uma comunicação permanente com a população para buscar apoio para seus projetos, especialmente na primeira fase do seu governo, por conta da trágica herança financeira e administrativa deixada pelo seu antecessor. Lula não terá dinheiro suficiente para cumprir várias promessas eleitorais e precisará convencer seus seguidores a serem pacientes até que os problemas mais graves sejam resolvidos. O apoio da opinião pública é a única opção disponível para o novo chefe de governo, já que ele não conta com maioria efetiva no congresso nacional, dispõe apenas de uma temporária simpatia da grande imprensa, enfrenta resistências nas Forças Armadas e no setor empresarial privado. Esta conjuntura política e as novas condições criadas pelos impactos informativos na formação da opinião pública nacional aumentaram a importância que as estratégias de comunicação passam a ter nas prioridades governamentais. As armadilhas políticas das fake news Nós, jornalistas, temos uma dívida com Bruno e Dom Jornalismo e imprensa não são sinônimos

O drama dos peruanos e de toda América Latina

Pedro Castillo – Para quem acompanha a realidade latino-americana desde há décadas, uma lição tem sido dada, recorrentemente: tentativas de mudança via eleições e conciliações não conseguem avançar de maneira significativa em nenhum lugar. Ou a própria classe dominante local/regional trata de estrangular as experiências ou o império estadunidense estende suas garras armadas para defender os seus interesses geopolíticos. É um eterno retorno, ano após ano, década após década, que só encontrou barreira até agora num único lugar: Cuba, a ilha do Caribe que decidiu fazer uma revolução radical e que, a altos custos, continua mantendo os ganhos estruturais desse processo. Nos demais países, sempre que alguma proposta mais popular avança (e nem precisa ser de esquerda), a receita é infalível: derrocada. Na história contemporânea, o continente latino-americano viveu algumas experiências alvissareiras que se seguiram ao aparecimento do furacão Hugo Chávez no final dos anos 1990. Veio a chamada revolução bolivariana na Venezuela, a revolução cultural na Bolívia e a revolução cidadã no Equador. Importante aclarar que nenhuma destas três foram de fato revoluções: Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales foram eleitos, dentro dos marcos da chamada democracia burguesa, ainda que com forte adesão popular. E ainda teve Aristide no Haiti, Nestor Kirchner na Argentina, Fernando Lugo no Paraguai, Mujica no Uruguai, Mel Zelaya em Honduras e Lula no Brasil, para citar apena os mais comentados. Esse momento que irrompeu no alvorecer do século XXI foi chamado de “onda vermelha”, embora o vermelhusco de cada um fosse bastante matizado. Pelo que se viu, apenas Chávez tentou ir mais fundo nos processo de mudança e, mesmo tendo sofrido um golpe, dado pela elite local com a assessoria dos EUA, conseguiu mobilizar a população e voltar ao poder com toda a força. Acabou morto em 2012 vítima de câncer genuíno ou provocado, isso ainda está nebuloso. A Venezuela, agora com Maduro, segue sob ataque do império e se mantém paralisada. Aristide foi retirado da presidência do Haiti e o país foi ocupado militarmente, tendo sido sistematicamente destruído até os dias de hoje. Rafael Correa teve mais um mandato e descambou para o liberalismo, deixando o Equador nas mãos de Lenin Moreno, que acabou de colocar todas as conquistas do primeiro mandato de Correa no lixo. Os Kirchners foram violentamente atacados pela mídia argentina, de mãos dadas com a classe dominante local, assessorada pelos EUA. O que levou a vitória de Maurício Macri e ao saque das riquezas. Fernando Lugo sofreu um golpe parlamentar, Lula passou o bastão a Dilma que também sofreu um golpe parlamentar, Zelaya foi arrancado da presidência de Honduras pelo serviço secreto estadunidense, Lula depois acabou preso. Mujica sobreviveu, mas ao fim o Uruguai acabou voltando para a direita. Ou seja, a onda vermelha desbotou totalmente. Para quem acompanha a história da América Latina isso não se configura novidade. Desde as guerras de independência tem sido assim. Bolívar, que sonhava com o continente unificado e forte foi traído e morreu esquecido enquanto os seus antigos generais brigavam para tomar para si fragmentos da Pátria Grande esquartejada. E por aí vai, os exemplos são intermináveis, ainda que em conjunturas diferentes. Dentro do sistema capitalista de produção que se tornou vitorioso no mundo os países centrais, hoje com os Estados Unidos na cabeça, tudo fazem para manter a periferia destroçada e dependente, sem chance de erguer a cabeça. O Peru não escapa do destino manifesto desenhado pelo império. Teve seus ditadores e gangsteres comandando os destinos do povo, sem nunca conseguir mudar as coisas. Alan Garcia, da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), foi uma exceção, eleito em 1985, no auge dos seus 35 anos, com uma proposta de esquerda. Encerrou seu mandato e foi seguido por Fujimori, que logo deu um golpe instaurando a ditadura. Voltou à presidência em 2004, mas já não era tão vermelho, e acabou suicidando-se quando o judiciário peruano o condenou à prisão. É por isso que o presidente do IELA, Nildo Ouriques, insiste em dizer que no Peru não aconteceu nada, além do mais do mesmo. Pedro Castillo elegeu-se num momento em que o sistema político local estava completamente esfacelado, diante dos desmandos de corrupção de presidentes que se sucediam e caiam. Foi considerado um azarão. Professor, sindicalista, levou com ele algumas bandeiras da esquerda, mas não era, de forma alguma, um homem da esquerda. Ainda assim, a classe dominante local não poderia aceitar alguém completamente fora de seu comando na presidência. E foi por isso mesmo que o Congresso, tomado pela oposição, não permitiu que Castillo governasse, imputando derrota trás derrota. Castillo não convocou o povo, foi aceitando as imposições que vinham do Congresso sobre sua equipe de governo e a derrocada foi uma consequência natural. Um elemento importante pontuado pelo professor Ouriques e que tem escapado da análise tradicional – geralmente superficial – foi a reforma do judiciário comandada pelo Banco Mundial em praticamente todos os países da América Latina no começo dos anos 1990, quando também teve início a onda chamada de neoliberal. Essa reforma garantiu um caráter de classe ultraliberal ao sistema judiciário, colocou no centro do poder e deu protagonismo aos togados. “Por isso que esse ativismo judicial não é um acidente brasileiro. Ele perpassa a América Latina inteira”. E foi esse ativismo judicial que criminalizou Zelaya, Lugo, Dilma, Cristina… “Basta ver os dados. O judiciário permite avanços nos direitos civis, mulheres, LGBT, negros etc… mas, não permite que se avance um centímetro nos direitos trabalhistas”. Pelo contrário, faz é garantir a retirada de direitos. A batalha dada no Peru contra Castillo estava nesse campo. Ele era acusado de incapacidade moral, ou seja, uma invenção política que estava adquirindo potência jurídica. O Congresso ia para a terceira tentativa de derrubada. Castillo já havia se defendido de todas as formas no campo jurídico e não havia provas concretas contra ele sobre corrupção ou coisa assim. Era incapacidade moral. A direita não queria deixá-lo governar. Então, Castillo se precipitou e tentou frear o golpe que viria no Congresso. Mas, não foi

O Ministério dos Povos Originários

A proposta do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva de criar um ministério para os assuntos indígenas pode cumprir um importante papel na politização do tema indígena no Brasil, trazendo as demandas para o centro da luta de classes, articuladas também com as exigências dos trabalhadores. O governo de Jair Bolsonaro, já nos primeiros dias de mandato em 2019, tomou para si a defesa de que era chegada a hora de “incluir” os povos originários na vida brasileira. Mas, a inclusão de que falava era a de que os indígenas deveriam deixar suas aldeias e se transformar em trabalhadores nas cidades, deixando para trás suas terras que poderiam então ser incorporadas ao agronegócio ou à mineração. Um discurso torto, como todos no seu mandato, mas que chegou a agregar algumas lideranças indígenas já cooptadas pela ideia de usar seu território para ganhar dinheiro. Por outro lado, a maioria das comunidades decidiu se posicionar contra isso e foi o movimento de luta indígena o primeiro a se levantar em luta contra o novo governo que começava. A batalha teve início já no primeiro dia quando Bolsonaro iniciou o desmonte da Funai e se seguiu pelos quatro anos afora com marchas, acampamentos e atos públicos. Ao longo desse tempo, o governo foi totalmente conivente com as invasões de terra indígena levadas a cabo por fazendeiros e mineradores e também lento nas ações envolvendo os incêndios na Amazônia e no Pantanal. Além disso, Bolsonaro foi omisso nos casos de assassinatos e violências contra os indígenas e completamente relapso durante à pandemia no que tocou aos povos originários. Todas essas não-ações estavam completamente dentro de sua proposta de extinguir as comunidades para o bem do capital. Ainda assim, mesmo com toda essa campanha contra os indígenas, o movimento articulado e organizado se manteve firme na luta e decidiu inclusive entrar de cabeça no jogo das eleições, buscando colocar representantes indígenas em todas as instâncias, tais como prefeituras, assembleias legislativas e Congresso Nacional. Obviamente, o processo foi eivado de contradições, com um grande número de indígenas disputando as eleições por partidos marcadamente de direita, portanto, completamente vinculados ao projeto de Bolsonaro. Isso coloca uma questão que deveria sulear o debate agora no próximo governo: as questões indígenas ficarão no gueto – restritas aos originários – ou vão realmente ser vistas como uma parte significativa da realidade brasileira? Ainda que os povos originários brasileiros ocupem apenas 13% do território com uma população de quase um milhão de almas, eles conformam 305 etnias diferentes falando mais de 274 línguas e com 724 áreas definidas como terras indígenas. Um universo diverso nos quais ainda se travam muitas batalhas por demarcação legal. O inédito protagonismo da luta indígena no governo Um ministério voltado às questões indígenas deverá se preocupar com as mais diversas demandas que ainda perduram na pauta de luta do movimento, desde o território até questões como saúde, educação, segurança. Mas, também precisará mergulhar na política geral, entendendo que os povos originários que aqui vivem fazem parte do chamado povo brasileiro e, como tal, precisam também estar vinculados às lutas da maioria dos trabalhadores não-indígenas pela construção de um modo de produção no qual todos possam ter vida em abundância. Afinal, no capitalismo, por mais que as comunidades indígenas conquistem autonomia, elas sempre estarão na mira da exploração, pois é da natureza do capital se expandir e isso significa se apropriar de tudo o que há, seja do território ou do modo de vida indígena como mercadoria exótica para “inglês ver”. A sociedade organizada brasileira como sindicatos, centrais, movimentos do mais diversos, costuma se aliar às causas indígenas em lutas pontuais, mas não se percebe no interior de cada um deles um acompanhamento sistemático desses temas. Do mesmo modo, o movimento indígena muito raramente se integra nas lutas mais gerais dos trabalhadores ou na defesa de outra forma de organizar a vida tal como o socialismo. Ainda assim, as demandas dos povos originários têm muitas coincidências com os da maioria dos trabalhadores. A existência de um ministério que cuide das questões indígenas pode ser um grande passo para que essa aliança entre as comunidades originárias e os trabalhadores não-indígenas se faça e se fortaleça. Vai depender muito de como o governo vai encaminhar o processo. É fato que as comunidades indígenas têm suas especificidades, mas também é fato que se estiverem junto com os demais trabalhadores na luta por outra forma de organizar a vida, pode ficar bom para toda a gente. O modo capitalista de produção é um grande sanguessuga da força dos trabalhadores e cobiça sistematicamente as terras originárias, bem como abomina o modo de vida dos indígenas que não vivem para a produção de mercadorias. Logo, essa aliança é necessária e urgente. Só fora do capitalismo, indígenas e trabalhadores podem constituir uma sociedade justa. Oportunidade de reparação É bom lembrar que os povos originários já travaram uma grande batalha contra o governo de Lula durante seus dois mandatos, quando ele decidiu construir Belo Monte no meio da Amazônia para gerar energia que seria vendida aos Estados Unidos e o tempo mostrou que os indígenas estavam certos. Foi causado um grande estrago no território, com remoção de famílias, sem real necessidade. A questão que se põe é: estará o Lula de agora realmente disposto a ouvir as comunidades? Esta é a primeira vez no Brasil que a questão indígena será tratada com esse destaque dentro de um governo, tendo inclusive um ministério. Que seja uma estrada segura para a construção de um país capaz de articular, com sabedoria e participação direta, a política geral, a luta dos trabalhadores e as especificidades indígenas. Um desafio. Os Yanomami Os trabalhadores e os indígenas   Segue o massacre aos povos indígenas Indigenista Ricardo Rao conta como escrachou Marcelo Xavier

El Salvador e o autoritarismo em curso

El Salvador é um pequeno país da América Central que tem hoje cerca de sete milhões de habitantes, sendo que quase 9% vivem abaixo da linha da pobreza. Os ditos pobres, que vivem com um dólar ao dia, chegam a quase 40%, conforme dados da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe). A situação só não é mais grave porque os 2,5 milhões de salvadorenhos que vivem fora do país acabam enviando recursos para os familiares. E é justamente esse estado de pobreza extrema que leva a dois fenômenos: as maras (grupos de jovens ligados ao crime) e a emigração. Não há muita saída para o jovem de El Salvador. Sem condições de estudar ou de trabalhar, as escolhas se esgotam nestas duas opções. Integrar as famosas pandilhas, que são espaços de violência e de morte, ou arriscar tudo na tentativa de chegar aos Estados Unidos para, de lá, tentar dar algum conforto aos pais e avós que ficam no país. O novo presidente do país, que vem fechando o regime desde há tempos, inclusive tentando fechar a Assembleia Nacional, Nayibe Bukele, agora decidiu acabar com as famosas “maras”. Mas, em vez de atacar a causa da formação das gangues está aplicando a velha receita ineficaz que é de capturar e encarcerar os jovens ligados às pandilhas. Decretou estado de exceção no país e começou uma caçada espetaculosa. Há poucos dias anunciou que, entre março e abril, pelo menos 20 mil pessoas já foram presas, acusadas de pertencimento às maras. Destas 20 mil almas, 1.620 são menores de idade entre 12 e 17 anos. Entidades ligadas aos direitos humanos no país apontam que cerca de 65 jovens estão sendo presos a cada dia. Como nem a polícia nem os órgãos do governo permitem acesso aos dados, ninguém sabe a real situação dos presos. Nem se eles realmente pertencem às gangues, nem o paradeiro, se estão em prisões normais ou especiais para crianças e adolescentes. A atual lei em vigor no país estabelece pena de 10 anos para crianças de 12 a 16 anos, e 20 anos para os de 17 em diante, caso provado que sejam parte das maras. Obviamente todos os presos são das camadas empobrecidas. Ninguém também consegue saber também se os jovens estão separados por grau de periculosidade, mas é muito provável que não haja esse cuidado. A intenção do presidente é “mostrar serviço” para parte da população que não suporta mais conviver com as gangues. E, é claro, acaba tendo aprovação tanto dos ricos quanto da classe média, que simplesmente querem ver o problema desaparecer. Ocorre que a decisão de caçar/encarcerar é apenas uma maneira de colocar o problema embaixo do tapete. Serve para a propaganda do presidente, mas não resolve a vida das famílias empobrecidas. Pelo contrário. Com a prisão dos jovens sofrem mais os adultos mais velhos, que ficam ainda mais vulneráveis, sem o aporte dos filhos ou netos. E, não bastasse todo o terror agora desencadeado junto a faixa etária mais desesperada, o governo impediu que a população se mobilize e proteste no dia primeiro de maio, tradicional data de manifestações de trabalhadores. Disse Bukele que os “verdadeiros sindicalistas” deverão estar reunidos com o governo num evento comemorativo no qual ele deve anunciar algumas melhorias. Os que estiverem nas ruas serão tratados como delinquentes. Por conta disso alguns movimentos decidiram suspender as manifestações. Já o Movimiento de Trabajadores de la Policía (MTP), a Alianza Nacional El Salvador en Paz e o Bloque de Resistencia y Rebeldía Popular (BPR) anunciaram que as atividades de rua serão mantidas. O fato é que o regime de exceção nada mais é do que o endurecimento de um governo que não tem qualquer proposta séria para enfrentar o drama da maioria da população que vive desde há décadas no binômio miséria/violência. A proposta de “mão dura” para o crime não acaba com o crime, pelo contrário, o recrudesce. A solução para o problema das maras passa por uma transformação radical do país que garanta educação e oportunidades reais de trabalho e renda. Mudanças estruturais que só podem acontecer com uma revolução. Mantendo a submissão aos organismos internacionais como FMI e Banco Mundial só faz engordar as classes dominantes. Vai daí que essa ação espetaculosa de prisões em massa da juventude fatalmente cobrará seu preço em mais violência e miséria para os salvadorenhos. Gabriel Boric e a questão mapuche Colômbia e a silenciada guerra contra o povo A aposta latino-americana pela conciliação Geopolítica da América Latina: entre a esperança e a restauração do desencanto   O muro da República Dominicana

Colômbia e a silenciada guerra contra o povo

Farcs Colômbia – Não passa um dia sem que se leia nos jornais colombianos sobre o assassinato de algum ex-integrante das FARCs ou alguma liderança social. Agora foi mais um, Gustavo Antônio Torres, na zona rural de Tibú. O ataque contra os sindicatos e movimentos sociais que lutam por direitos ou contra as políticas do governo é feito assim, cirurgicamente, com as mortes sendo muitas vezes computadas como crimes comuns ou apagadas como não resolvidas. O fato é que não pode ser coincidência que, um a um, os ex-combatentes das FARCs, que depuseram as armas depois dos acordos de paz em 2016, venham sendo “vítimas” de vinganças, assaltos, massacres e outros crimes aparentemente descolados de suas condições de ex-guerrilheiros. Quanto aos demais líderes sociais o caso é o mesmo. As mortes cirúrgicas já ocorriam antes dos acordos de paz e continuam agora da mesma forma, sem que os colombianos tenham a opção de “subir a montanha”, como antes acontecia, quando muitos dos perseguidos se aliavam às forças revolucionárias. Os acordos de paz foram firmados na esperança de que o país pudesse seguir seu caminho por outra via que não a das armas. Mas, o que de fato aconteceu é que apenas a guerrilha largou as armas. O estado seguiu militarizado, as milícias paramilitares seguiram semeando o terror. Só neste ano de 2022, cujo segundo mês acaba de terminar, já foram 33 lideranças assassinadas, somando quase 1.500 pessoas de 2016 até agora. O governo acusa a guerrilha de matar os que decidiram seguir o caminho da paz, mas não há provas materiais de que isso seja verdade. Além disso, o número de assassinatos de líderes populares, sindicais e sociais, desvinculados das FARCs, é bem maior. Logo, o argumento não se sustenta. A verdade é que basta que alguém se destaque reivindicando direitos ou organizando comunidades e trabalhadores para que vire alvo. A Colômbia é um país que tem dentro de suas fronteiras sete bases militares estadunidenses com o discurso de atuar no combate ao narcotráfico. Se assim fosse, seria de admirar a incompetência e a ineficácia desses batalhões, visto que ali estão há décadas sem conseguir dar fim à produção da droga, que é cada vez maior e eficiente. O governo de Ivan Duque tem propagandeado que conseguiu reduzir o plantio da coca no país, mas ao mesmo tempo se sabe que apesar disso a produção de cocaína cresceu. Um relatório da Organização das Nações Unidas sobre Drogas e Crime deu conta de que em 2020 foram produzidas 1.010 toneladas de cocaína, aumento de 8% frente ao ano de 2019. Também aponta que o maior consumidor da droga é o país do Tio Sam: os Estados Unidos. Enquanto isso, os movimento sociais ligados ao campo denunciam as fumigações criminosas do governo nas zonas rurais, exterminando plantações e obrigando comunidades inteiras a se deslocar pelas várias regiões do país. Uma realidade que faz com que muitas famílias acabem aceitando a proteção do narcotráfico e atuando no plantio da coca e na produção da droga, onde paradoxalmente têm menos chance de morrer. Essa é uma realidade brutal que se expressa bem aqui na nossa América do Sul, sob nossos olhos e sem a devida atenção por parte da mídia comercial que é bastante pródiga em criminalizar a luta revolucionária das FARCs. Como bem já apontou Noam Chomsky em um de seus clássicos sobre a comunicação, os inimigos dos EUA recebem muita luz por parte da mídia, já os amigos têm seus crimes escondidos, quando muito divulgados em uma nota de rodapé. FARC, um novo partido na Colômbia FARCs entregam armas e seguem no caminho da paz A aposta latino-americana pela conciliação Um muro na República Dominicana

Um muro na República Dominicana

Muro República Dominicana – Os Estados Unidos seguem sendo o maior exemplo para o mundo, principalmente no que diz respeito ao combate à pobreza que é criada pelos seus governos, sucessivamente. A técnica sempre é a de combater o empobrecido e não a pobreza em si. Por isso, desde há décadas fortalecem suas fronteiras com o restante da América Baixa usando soldados fortemente armados e muros. A ideia é não permitir a entrada das hordas de desesperados e famintos que fogem dos seus países acossados pelas políticas impostas por eles, evitando assim que essa gente reivindique seu quinhão. A exceção é com os cubanos que desistem de viver no socialismo. Esses são recebidos com honras e ainda recebem casa e trabalho. A ideia de muro foi reproduzida também em Israel, seu parceiro econômico e político. Lá, os sionistas invadem o território palestino e vão erguendo imensos muros para controlar a entrada e a saída dos verdadeiros donos das terras, impondo humilhação e violência. Quilômetros e quilômetros de concreto que eles julgam ser capaz de deter a fome de liberdade. Não detém! Assim como os muros da fronteira estadunidense não conseguem deter os desesperados que sonham em viver no tal “mundo livre”. Pois agora um pequeno país do Caribe decidiu adotar o mesmo exemplo dos EUA e apostar na construção de muro para impedir a entrada dos desesperados. É a República Dominicana, que faz fronteira com o Haiti. Essa semana o presidente Luis Abinader iniciou – com pompa e circunstância – essa infâmia contra os vizinhos. O muro terá uma primeira etapa de 54 quilômetros e custará um bilhão de pesos. Será um misto de concreto e estrutura metálica, com 19 torres de vigilância e 10 portas de acesso, que contarão com patrulha armada. Esta obra terá sequência num segundo momento quando serão investidos outros tantos milhões em tecnologia inteligente, com sensores de movimentos, câmeras de segurança e drones de alta capacidade. O total do muro será de 173 quilômetros, praticamente a metade da linha de fronteira que soma 391 quilômetros. O presidente diz que a medida é para evitar o tráfico de drogas e armas e controlar o fluxo migratório intenso. Atualmente vivem mais de 500 mil hatianos no país. É sempre importante lembrar que o Haiti é um país devastado desde 2004 quando os Estados Unidos decidiram depor o presidente democraticamente eleito e impuseram uma invasão que eles chamam de “ocupação humanitária”. Com soldados das Nações Unidas, liderados pelo Brasil, teve início mais um ciclo de desgraça para o povo haitiano, tudo para “manter a ordem” da desordem causada pelo imperialismo estadunidense. Ou seja, a mesma velha fórmula: eles desestabilizam para depois anunciarem a estabilização que só gera mais desestabilização e dependência. Pois a ação dos soldados das Nações Unidas no Haiti gerou exatamente o esperado e hoje, depois de anos ocupando o país, a tal da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) deixou o Haiti ainda mais destroçado, sem um governo capaz de conduzir os destinos da nação de maneira soberana e autônoma. O que resta são os títeres, muitos deles mergulhados em corrupção, que vão engordando suas contas bancárias com a ajuda internacional que, apesar de generosa, não se expressa na vida dos haitianos. Por isso, mesmo muitos deles encontram na fuga desesperada a saída para sobreviver. E a República Dominicana, por estar ali, ao alcance dos pés, é a primeira opção.  Mas, em vez de acolher os irmãos que coabitam a mesma ilha, a resposta é o muro. E tem a aprovação de grande parte da população. Conforme anunciou o presidente Abinader, a República Dominicana seguirá tendo relações comerciais com o Haiti, mas “não podemos tomar para nós a responsabilidade sobre a instabilidade política que ali existe e tampouco resolver seus problemas”. Outros políticos locais afirmam que o muro pode mandar uma “boa e poderosa mensagem” ao mundo, fazendo com que os demais países ajudem o Haiti. Que estranha solidariedade. Pelo que se sabe, ao rememorar a história dos muros, não há registros de que eles suscitem ajuda. O muro dos Estados Unidos segue sendo a cova de milhares de latino-americanos todos os anos, o muro de Israel é a prova viva do horror e outros tantos muros nas fronteiras só servem para oprimir e causar sofrimento. Não é surpreendente lembrar que apenas a queda do muro de Berlim tenha sido tão esperada e saudada. Alguém arrisca explicar por quê? https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-caminho-da-america-latina/ Eleição de Gabriel Boric no Chile traz esperança para a esquerda da América Latina

A aposta latino-americana pela conciliação

A América Latina está passando por novos processos eleitorais, conduzindo à frente dos governos das pátrias chicas políticos que dizem se posicionar mais à esquerda. Mas, ao que parece, não há em qualquer um deles alguém com a proposta de realizar mudanças estruturais capazes de efetivamente conduzir seus países às transformações significativas para os trabalhadores urbanos, camponeses e oprimidos em geral. No Peru, a eleição de Pedro Castillo, um professor de larga militância popular, parecia uma promessa significativa num país tão destroçado pela corrupção e pela dependência. Mas, desde o começo do governo, o novo presidente foi se rendendo aos avanços da direita local que imprimiu um ritmo bastante forte de pressão, fazendo, inclusive, com que o gabinete escolhido por Castillo fosse se desintegrando e abandonando o barco em nome da “governabilidade”. Assim, o governo peruano vai caminhando, tentando agradar a oposição ainda que procure abrir veredas a partir das chamadas “políticas públicas” para diminuir a miséria material dos peruanos. Ao que parece, por enquanto, não há propostas de rupturas significativas. A nova presidente eleita de Honduras, Xiomara Castro, assume o comando do país essa semana e já enfrenta uma traição gigantesca por parte dos aliados que fez para conseguir ganhar as eleições. Na semana passada pelo menos 18 parlamentares que se elegeram por apoiar Xiomara passaram para o lado dos inimigos, deixando a presidente na mão. O partido não tem maioria na Assembleia Nacional e com essa perda sofre um duro golpe, mas nem um pouco surpreendente. Ela assume o governo saudada pelos líderes da esquerda liberal do continente e também saudada pelos Estados Unidos, que espera manter boas e suculentas relações com Xiomara. Tanto que a vice-presidente Kamala Harris será figura de destaque na posse. Os Estados Unidos estão dando uma de cordeiro para impedir que Xiomara enverede para os lados da China. Resta saber como o governo do partido Liberdade e Refundação vai lidar com esse jogo de interesses que envolve os EUA, Taiwan, China e Rússia. A região da América Central é hoje um palco de disputa das grandes potências, o que torna ainda mais difícil uma transformação radical pela via eleitoral. Xiomara pega um país destroçado, com 70% da população (9,5 milhões de habitantes) vivendo na pobreza e com uma taxa de migração gigantesca. Todos os dias partem colunas de gente, fugindo, em busca de vida melhor longe do país. Isso significa que ficar no universo de “mais isso e mais aquilo” das políticas públicas  não resolverá os problemas históricos e estruturais do país, todos eles gerados justamente pela lógica de exploração e dependência imposta pelos Estados Unidos. Também no Chile assume um governo alinhado com a esquerda, mas que foi eleito a partir de um arco de alianças bem estendido. Nas declarações da última semana já se observa em Gabriel Boric um governante disposto a atuar no sentido de acender vela pra deus e para o diabo, tentando conciliar o inconciliável. Não quer assustar o mercado, não quer assustar a elite local, não quer assustar às multinacionais. A impressão que se tem é de que seguirá no rumo da socialdemocracia, ou do liberalismo, e ainda que hajam reações emocionadas com o fato de ele ter escolhido um gabinete com maioria de mulheres, isso só vai significar algo quando essas mulheres começarem a agir. Estarão comprometidas com a maioria da população, os trabalhadores urbanos, camponeses e indígenas, ou atuarão no sentido de amansar o monstro do capital? No Brasil também há os que saúdam a provável vitória de Lula nas eleições gerais. Caso isso se confirme, tal como nos governos passados do PT, provavelmente também não teremos um caminho efetivamente mais à esquerda, capaz de mudanças radicais. É bem possível que Lula atue como Boric, tentando apaziguar os inimigos. Não se nota, nos discursos de todos esses novos governantes, incluindo Ortega e Fernandez, o compromisso com o fim da dependência, com a soberania real, com o anti-capitalismo e o anti-colonialismo. Falar em socialismo ou comunismo, então, nem pensar. Aquela força radical que emanava da figura de Hugo Chávez no final dos anos 90 e que arrastou a luta por toda a América do Sul, Central e Caribe, não aparece em ninguém, sequer palidamente. Tudo parece apontar para a tentativa – sempre derrotada – de conciliação de classe. A traição dos deputados hondurenhos é a prova viva de que os filhotes da direita não abandonam seus hábitos alimentares, mesmo quando mudam o vestuário. Compor com essa gente é apostar no fracasso. Há os que dizem que somos insaciáveis, que não compreendemos a correlação de forças, que estamos carregados de ingenuidade, que não é possível fazer guinadas muito expressivas, que isso, que aquilo. Mas, por aqui ainda pensamos que o caminho para um futuro bom para todos os seres humanos ainda é o socialismo, chegando, por fim, ao comunismo. E, se, como já diziam nossos parentes aztecas, as palavras pronunciadas são as que andam, não é possível que os políticos que se dizem identificados com as bandeiras da esquerda, tirem dos seus léxicos essas nossas palavras andantes. Não sou adivinha, portanto não prevejo derrotas. Mas, estudo. E o estudo sistemático da história mostra que não há chances nessa vereda de tentar humanizar o capitalismo. Por isso, sigo, gritando as palavras, dando uma de Jeremias e acreditando que enquanto elas andarem haverá chances de que “floresçam flores nesse lugar”.   A América Latina e os Estados Unidos Dez anos sem Chávez Peru: mais um ataque da direita contra o governo América Latina e as lutas sociais Eleição de Gabriel Boric no Chile traz esperança para a esquerda da América Latina

Geopolítica da América Latina: entre a esperança e a restauração do desencanto

O processo político que levou à mudança de época requer agora respostas às novas perguntas, para evitar o erro de dar velhas explicações.  por Alfredo Serrano Mancilla* (da Agência Carta Maior) Para por um ponto final a qualquer ciclo histórico de transformações sociais é preciso enterrar definitivamente o sentido das mudanças realizadas nesse processo. Não se pode virar a página de uma época se ainda estão vigentes os fatores esperançosos da mesma. Sendo assim, qualquer desejo de novo tempo deve ser construído sobre as ruínas do passado. Isso é o que atualmente se observa no fundo do tabuleiro geopolítico da América latina: a tentativa desesperada de alguns setores de acabar com aquilo que se iniciou em quase toda a região junto com o próprio Século XXI. Alguns chamam essa nova onda de “restauração conservadora”, outros de “fluxo inverso dos processos de mudança” e os mais ousados optam por classificá-lo como “o fim de um ciclo”. Nessa festa, os primeiros que aparecem são aqueles que sonham em acabar definitivamente com a nova época de mudanças, que lhes arrebatou o monopólio do poder e a capacidade de decisão sobre os rumos dos países da região. Com muita vontade, esses setores se empenham em reduzir paulatinamente as esperanças e ilusões geradas durante esta nova época. A estratégia não está em discutir o que já aconteceu. O que passou, passou – por muito que não gostem dos resultados, eles são inquestionavelmente uma vitória em favor da maioria. Mas enfim, o que está em jogo agora é o debate sobre a ideia de que ainda falta muito por conquistar, por melhorar. Sobre esse tema, existe hoje um verdadeiro cabo de guerra na geopolítica latino-americana. A nova direita regional, aquela que já é maior de idade, aprendeu que não se pode ganhar apenas com manchetes de jornais, sempre distanciados da realidade que a maioria das pessoas vive na América Latina, as que ultimamente perceberam uma maior inclusão, mais direitos sociais, níveis de consumo mais democratizados. Isso não significa que os meios de comunicação dominantes, assim como as forças partidárias mais tradicionais, deixaram de insistir e utilizar sua velha destreza em assustar, alarmar e inquietar, afirmando um desastre após o outro. Mas a verdadeira novidade, cada vez mais importante na estratégia opositora contra os processos de mudanças na América Latina, é a tentativa de eliminar o mito de que “ainda podemos avançar muito mais”. O discurso do “fim de um ciclo” se sustenta numa etapa embrionária dessa ideia, em fazer as pessoas acreditarem que já foi feito tudo o que se poderia fazer, isso é, que já não há mais conquistas pelas quais sonhar no horizonte. Essa tese se propaga através de fatores como a atual crise que acossa muitos países latino-americanos, devido à contração econômica mundial. A queda dos preços do petróleo e de outras commodities coloca em problemas alguns dos países que souberam impulsionar uma verdadeira política econômica soberana em favor da recuperação dos recursos naturais. Alguns desses recursos chegaram a perder metade do valor que tinham no mercado há poucos anos atrás. Isso significa que os cofres desses países arrecadam metade do que arrecadavam antes. O que antes os críticos chamaram “vento a favor” agora deveriam considerar como um furacão contra. Mas não o fazem. Agora, eles preferem dizer diretamente que esses são os sintomas do “fim de um ciclo”, um termo de mau agouro dita em tom de profecia que se realiza, para ver se de tanto insistir em afirmá-la ela realmente se consuma como verdade. Junto com os meios de comunicação também estão outros setores (sociais e políticos) que também já demonstravam sua predileção pela crítica precoce e sempre destrutiva, sem quase nada positivo. Nesse espaço, convivem: aqueles que desde o início se opuseram a quase tudo, pensando que a mudança é um caminho de rosas sem obstáculos, e os que começam a fraquejar em suas forças e seu entusiasmo, agora que os tempos são outros e as batalhas cada vez mais difíceis. Se algo é preciso valorizar no inimigo histórico é precisamente sua perseverança e seu otimismo. Na Venezuela, por exemplo, esses setores perderam 18 de 19 eleições em apenas 15 anos, e ainda assim insistem em que sua proposta política é a mais respaldada pela maioria social. Essa virtude é preciso ser considerada. Na hora de lutar contra um oponente que jamais se cansa, que jamais joga a toalha, é preciso saber que ele vai continuar tentando, por qualquer via, seja ela legal ou não. O pessimismo reinante em algumas filas autodenominadas “progressistas ou de esquerdas” abre o caminho para aqueles que realmente desejam a restauração conservadora. Os momentos de vacas magras são levados ainda mais em conta pelos que já queriam descer do ônibus no primeiro solavanco. O desencanto crescente em nossas fileiras ajuda o vento que empurra o retorno das caravelas em versão Século XXI. Significa também conceder vantagens demais ao inimigo em tempos nos quais ainda há disputa. A crítica é sempre bem-vinda, ainda mais quando é acompanhada da busca por soluções, por motores geradores de novas esperanças, sem ceder à chantagem do desencanto. Nesse ponto reside o verdadeiro desafio da disputa geopolítica atual: assumir que talvez é necessário um período de “espera”, mas com um sentido comum cheio de esperanças. Esperar não quer dizer estar de braços cruzados, nem atirando pedras contra tudo o que acontece. Se trata, isso sim, de entender que estamos diante de uma nova etapa da luta política nesta intrigante peleja geoeconômica. Nada de fluxos invertidos, nem de finais de ciclo. No máximo, tentativas de restauração conservadora, que ainda não conseguiram quebrantar essa hegemonia insurgente ainda em construção na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Argentina etc. Nesta nova etapa, cada processo e seu diferente tempo político, sua forma de enfrentar as adversidades, de superar as diferentes tensões e contradições, tanto as internas quanto as derivadas da confrontação com os demais setores. É uma nova etapa caracterizada pela necessidade de novos movimentos, para que as posições alcançadas sejam irreversíveis. O que