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as veias abertas da américa latina Eduardo galeano

El Salvador e o autoritarismo em curso

El Salvador é um pequeno país da América Central que tem hoje cerca de sete milhões de habitantes, sendo que quase 9% vivem abaixo da linha da pobreza. Os ditos pobres, que vivem com um dólar ao dia, chegam a quase 40%, conforme dados da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe). A situação só não é mais grave porque os 2,5 milhões de salvadorenhos que vivem fora do país acabam enviando recursos para os familiares. E é justamente esse estado de pobreza extrema que leva a dois fenômenos: as maras (grupos de jovens ligados ao crime) e a emigração. Não há muita saída para o jovem de El Salvador. Sem condições de estudar ou de trabalhar, as escolhas se esgotam nestas duas opções. Integrar as famosas pandilhas, que são espaços de violência e de morte, ou arriscar tudo na tentativa de chegar aos Estados Unidos para, de lá, tentar dar algum conforto aos pais e avós que ficam no país. O novo presidente do país, que vem fechando o regime desde há tempos, inclusive tentando fechar a Assembleia Nacional, Nayibe Bukele, agora decidiu acabar com as famosas “maras”. Mas, em vez de atacar a causa da formação das gangues está aplicando a velha receita ineficaz que é de capturar e encarcerar os jovens ligados às pandilhas. Decretou estado de exceção no país e começou uma caçada espetaculosa. Há poucos dias anunciou que, entre março e abril, pelo menos 20 mil pessoas já foram presas, acusadas de pertencimento às maras. Destas 20 mil almas, 1.620 são menores de idade entre 12 e 17 anos. Entidades ligadas aos direitos humanos no país apontam que cerca de 65 jovens estão sendo presos a cada dia. Como nem a polícia nem os órgãos do governo permitem acesso aos dados, ninguém sabe a real situação dos presos. Nem se eles realmente pertencem às gangues, nem o paradeiro, se estão em prisões normais ou especiais para crianças e adolescentes. A atual lei em vigor no país estabelece pena de 10 anos para crianças de 12 a 16 anos, e 20 anos para os de 17 em diante, caso provado que sejam parte das maras. Obviamente todos os presos são das camadas empobrecidas. Ninguém também consegue saber também se os jovens estão separados por grau de periculosidade, mas é muito provável que não haja esse cuidado. A intenção do presidente é “mostrar serviço” para parte da população que não suporta mais conviver com as gangues. E, é claro, acaba tendo aprovação tanto dos ricos quanto da classe média, que simplesmente querem ver o problema desaparecer. Ocorre que a decisão de caçar/encarcerar é apenas uma maneira de colocar o problema embaixo do tapete. Serve para a propaganda do presidente, mas não resolve a vida das famílias empobrecidas. Pelo contrário. Com a prisão dos jovens sofrem mais os adultos mais velhos, que ficam ainda mais vulneráveis, sem o aporte dos filhos ou netos. E, não bastasse todo o terror agora desencadeado junto a faixa etária mais desesperada, o governo impediu que a população se mobilize e proteste no dia primeiro de maio, tradicional data de manifestações de trabalhadores. Disse Bukele que os “verdadeiros sindicalistas” deverão estar reunidos com o governo num evento comemorativo no qual ele deve anunciar algumas melhorias. Os que estiverem nas ruas serão tratados como delinquentes. Por conta disso alguns movimentos decidiram suspender as manifestações. Já o Movimiento de Trabajadores de la Policía (MTP), a Alianza Nacional El Salvador en Paz e o Bloque de Resistencia y Rebeldía Popular (BPR) anunciaram que as atividades de rua serão mantidas. O fato é que o regime de exceção nada mais é do que o endurecimento de um governo que não tem qualquer proposta séria para enfrentar o drama da maioria da população que vive desde há décadas no binômio miséria/violência. A proposta de “mão dura” para o crime não acaba com o crime, pelo contrário, o recrudesce. A solução para o problema das maras passa por uma transformação radical do país que garanta educação e oportunidades reais de trabalho e renda. Mudanças estruturais que só podem acontecer com uma revolução. Mantendo a submissão aos organismos internacionais como FMI e Banco Mundial só faz engordar as classes dominantes. Vai daí que essa ação espetaculosa de prisões em massa da juventude fatalmente cobrará seu preço em mais violência e miséria para os salvadorenhos. Gabriel Boric e a questão mapuche Colômbia e a silenciada guerra contra o povo A aposta latino-americana pela conciliação Geopolítica da América Latina: entre a esperança e a restauração do desencanto   O muro da República Dominicana

Peru: mais um ataque da direita contra o governo

Pedro Castillo – O mandato do presidente Pedro Castillo, no Peru, vem sendo sistematicamente atacado desde o dia da posse. Primeiro foram as acusações de fraude nas eleições, como se isso fosse possível a um candidato que estava totalmente alijado das estruturas do poder, considerado, inclusive, como um azarão. Ainda assim, o tumulto foi grande e atrasou a posse. Depois, vieram as sanções aos nomes dos ministros, que precisam ser aprovados pelo Congresso. Muitos deles acabaram pedindo para sair, como foi o caso do ex-guerrilheiro Héctor Béjar, para evitar maiores confrontos e permitir que o presidente começasse logo a governar. E outros foram trocados por Castillo, também visando garantir governabilidade. Decisões questionáveis, pois, quando mais o governo vai cedendo, mais a direita vai avançando no sentido de pressionar o presidente contra a parede. Foram mais de cem dias para ter o gabinete aprovado. Nesta semana, a oposição no Congresso decidiu mais uma vez tentar inviabilizar o trabalho de Castillo. Foi apresentada uma moção de vacância presidencial – destituição – contra o presidente alegando que ele não tem capacidade moral para dirigir o país. O pedido  apresentado pela deputada Patricia Chirinos (Avanza País) tem 28 assinaturas, mas são necessárias 52 para que o Pleno possa admitir o debate. Na proposta de mais de 200 páginas as acusações são de que a coligação Peru Libre teria usado fundos públicos do governo regional de Junín na campanha eleitoral e que o presidente não poderia ter designado funcionários vinculados ao “terrorismo”. Com mais esse ataque, outra vez o governo terá de trabalhar para apagar o incêndio dentro do Congresso, uma batalha institucional que coloca de novo toda a equipe na defensiva. Nas redes sociais e nos meios de comunicação – cuja maioria está vinculada à direita – a campanha sobre uma possível incapacidade de governar é marcante. Os parlamentares incitam a população a sair às ruas para parar o que chamam de “caos”, embora o tal caos não seja visivel a não ser a partir das turbulências no Congresso. Apesar de toda a campanha da direita peruana e dos ataques pontuais contra o governo, Pedro Castillo segue trabalhando na perspectiva de uma inversão de prioridades, tentando atender a maioria da população historicamente deixada para trás, investindo em programas de educação, saúde, energia, agricultura e moradia. Mas, a pressão dos grandes capitalistas – nacionais e estrangeiros – principalmente no que diz respeito ao setor de mineração tem feito com que Castillo aponte investimentos também nessa área. É uma queda de braço permanente. Peru: difícil começo A mídia, é claro, não dá destaque para o trabalho que vem sendo feito nas comunidades e no interior do país, e diariamente movendo suas baterias contra o governo.  Portanto, essa é uma batalha que precisa ser travada principalmente pela população, com os poucos instrumentos que têm. Se não houver um movimento forte, nas ruas, de apoio ao governo, a direita vai continuar avançando, buscando, esta sim, o caos. Por outro lado, cada vez que o governo cede às chantagens e às provocações da direita igualmente vai perdendo credibilidade junto aos seus aliados. São pouco mais de quatro meses de governo e Castillo precisa tomar uma decisão: ou aponta seu governo para um rumo de participação popular e mudanças estruturais, chamando a população para defender os câmbios, ou vai ser minado pouco a pouco até ser expulso do governo ou virar mais um triste exemplo da tentativa da esquerda liberal em servir a dois senhores, o que resulta sempre em desastre. O enfrentamento a mais esse ataque da direita será decisivo. O drama dos peruanos e de toda América Latina Pedro Castillo e os dramas da política A aposta latino-americana pela conciliação Eleição de Gabriel Boric no Chile traz esperança para a esquerda da América Latina

O caminho da América Latina

Nuestra América está, como sempre, em ebulição, buscando encontrar um caminho para o bem-viver. Mas, não é fácil. E o principal obstáculo é, sem lugar a dúvidas, a incapacidade dos governos ditos progressistas de fazer as mudanças necessárias, esperadas pelos trabalhadores. É um eterno retorno. Vêm as eleições, as promessas, e quando chega a vitória, tudo se esboroa no andar da carruagem. No geral a culpa sempre recai na crise econômica ou na ação desintegradora dos Estados Unidos. De fato, esses são elementos importantes, mas não são os decisivos para que as mudanças não ocorram. O que realmente falta é coragem para fazer os câmbios estruturais e romper com o modo de produção capitalista. A esquerda liberal quando no poder segue defendendo a propriedade privada e acreditando que é possível dar uma cara humana ao capitalismo. Ora, isso é o que leva a retrocessos gigantescos nos quais quem vai de roldão é sempre a maioria da população. Não há promessa que se sustente sem uma viragem radical. Expor a farsa da dívida externa, nacionalizar as riquezas, investir nas gentes, na educação libertadora, na ciência necessária, romper com a ciranda bancária, quem se atreveria? Até agora, ninguém. Excetuando Cuba, não há qualquer país de nossa Abya Yala palmilhando esse caminho. Por isso mesmo Cuba mal consegue sobreviver. Não tem parceria. Ainda assim, ancorada em sua soberania tem garantido sua sobrevivência há seis décadas. É sempre importante lembrar que Cuba é uma ilha, pequena e com poucos recursos capazes de sustentar sua gente. A base material da existência cubana vem quase toda de fora. Não há geração de energia suficiente, não há produção de comida suficiente. Ou seja, não pode viver sozinha. O incrível é que ainda assim, vai caminhando, soberana. Quase um milagre. Agora imaginem os países que têm mais recursos, o que poderiam fazer? E se atuassem juntos, em parceria e comunhão, um auxiliando o outro naquilo que lhes falta? Trocando produtos, cooperando na ciência e na tecnologia? Certamente não produziriam figuras nefastas e bizarras como um Jeff Bezos ou um Elon Musk, capazes de amealhar, sozinhos, quase toda a riqueza do mundo. A nossa Pátria Grande sonhada por Bolívar, e que deu alguns passos, tímidos, quando Hugo Chávez ainda vivia, ainda está longe de ser uma realidade. É certo que os Estados Unidos fizeram muito para destroçar a possibilidade de uma união da Nossa América, eles sempre o fazem, defendendo o império que conseguiram inventar. Mas muito dessa impossibilidade veio da incapacidade dos governos chamados de progressistas em promoverem as mudanças desejadas pela população. Há que olhar para eles com criticidade. Há que apontar os erros, há que seguir sinalizando o caminho. A Argentina passou por eleições legislativas, o governo perdeu. E não poderia ser outro o resultado. As promessas não vingaram. A Venezuela passou por eleições agora no domingo também. A direita avança, porque a esquerda se liberaliza. O Peru elegeu um professor, um cara de luta, mas que se afoga nas tramas da direita acreditando ser possível governar sem quebrar os ovos. O Chile vai viver eleições presidenciais. Há chances para a esquerda, mas será, de novo, uma esquerda liberal? E se for, como poderá avançar se vai tropeçar nos seus limites cheios de bom-mocismo. No Brasil vemos a nossa esquerda liberal vibrar com o fato e o candidato do PT ser recebido com honras pelos capitalistas da Europa. Acreditam também na cara humana do capital. É um eterno retorno, uma espécie de efeito borboleta político, que parece não ter fim. A nós cabe a tarefa histórica de sempre. Seguir revelando que o rei está nu. Seguir desvelando a sangria do capital. E anunciando o mundo novo. Peru: mais um ataque da direita contra o governo América Latina e as lutas sociais Nossas veias ainda não cicatrizaram

Nossas veias ainda não cicatrizaram

Perdemos o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Ele morreu hoje pela manhã em hospital de Montevidéu aos 74 anos. Galeano é, junto com o brasileiro Darcy Ribeiro, daqueles poucos intelectuais que nos clareiam o caminho no entendimento de nossas mazelas, latinos do hemisfério sul. Cabe a nós buscarmos as saídas com a ajuda deles. Nesse momento, mais do que nunca. Inevitável dizer que seu livro mais conhecido, As Veias Abertas da América Latina, escrito por Galeano com apenas 30 anos e publicado em 1971, marcou toda uma geração que lutou contra o arbítrio nos países da América do Sul. O livro foi proibido no país natal do escritor, no Brasil, Argentina e Chile durante os governos ditatoriais. “Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz consigo ao povo latino-americano que, com seu sacrifício, o cria”. (Trecho de “As Veias Abertas da América Latina”) O setentão Galeano não perdoava a audácia do ainda jovem Galeano de explicar em apenas 300 páginas de As Veias da América Latina a história de séculos de exploração econômica sofrida por nosotros e nuestros hermanos, principalmente pela Inglaterra e Estados Unidos. Em visita ao Brasil no ano passado, o escritor declarou: “eu não seria capaz de ler o livro de novo. Cairia desmaiado. Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é chatíssima” (declaração retirada do site Opera Mundi). O livro foi traduzido para mais de uma dezena de idiomas e vendeu cerca de um milhão de exemplares.  “A pobreza não está escrita no astros; o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. As classes dominantes põem as barbas de molho, e ao mesmo tempo anunciam o inferno para todos. De certo modo, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e a ordem; é a ordem, de fato, da cotidiana humilhação das maiorias”. (Trecho da introdução de “As Veias Abertas da América Latina”) A obra de mais de 30 livros de Galeano é diversa e prolixa. Entre eles, O livro dos Abraços (1991), que pode ser definido como histórias curtas e/ou pequenos relatos poéticos; Trilogia Memória do Fogo (publicada entre 1982 e 1986), em que Galeano utiliza a poesia e o conto para narrar a história latino-americana desde o Descobrimento; Dias de Noites de Amor e Guerra, memórias sobre as agruras do período ditatorial no Uruguai e Argentina; e muitos outros. Eduardo Galeano atuou também como jornalista. Começou jovem nos anos 60 como editor do semanário “Marcha”. Após o golpe uruguaio em junho de 1973, Galeano foi para Argentina e fundou a revista Crise e a dirigiu durante seus primeiros 40 exemplares. A repressão da ditadura argentina o levou ao exílio na Espanha em 1976, só retornando ao Uruguai em 1985. Em primeiro de março último, a visita do presidente boliviano Evo Morales lhe deu uma injeção de ânimo em sua luta contra um redivivo câncer de pulmão, que já o tinha hospitalizado em 2007. O escritor admirava Morales, como pode ser visto na entrevista abaixo que deu ao professor Emir Sader: Poema de Eduardo Galeano abre o disco Multiviral (2014) da banda porto-riquenha Calle 13: Disneylândia para intelectuais na Flip 2013