A ditadura teocrático-miliciana: o sonho do evangelismo monetário no Brasil
A história do século XVI, por ter sido um dos momentos mais importantes da formação da civilização ocidental, nos propicia uma série de ensinamentos para os tempos pós-modernos que vivemos. Talvez o mais importante exemplo seja aquele da primeira ditadura teocrática-miliciana, que por vinte e cinco anos sufocou e destruiu a cidade mais democrática de toda a Europa: Genebra. Até mesmo o surto de peste que a assolou durante o império de Calvino nos traz ao século XXI. A Reforma Protestante teve início, no século XVI, como um movimento liberal psíquico e religioso, uma proposta para colocar livremente nas mãos dos homens o Evangelho. De tal modo que a convicção de cada indivíduo deveria formar para si seu próprio cristianismo, em vez de o fazerem em Roma o Papa e seus Concílios. Esse movimento reformista cristão foi liderado por Martinho Lutero, com a publicação de suas teses em 1517. Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus provocando uma revolução político-religiosa que, iniciada na Alemanha, estendeu-se pela Suíça, França, Países Baixos, Inglaterra, Escandinávia e, mesmo, partes do leste europeu. João Calvino era inicialmente um dos seguidores de Lutero; dele se distancia ao estabelecer o Estado Evangélico. Ao contrário de Lutero, ele retirará dos homens aquela liberdade espiritual de cristãos libertados da Igreja Católica, bem como as demais liberdades cívicas. Ao criar as bases do “puritanismo evangelista”, Calvino estabeleceu uma ditadura teocrática. E durante um quarto de século, Calvino, em termos de assassinatos, perseguições e torturas, conseguiu na pequena cidade, que dominava, ir além da própria Inquisição Católica! Foi em maio de 1536 que os cidadãos de Genebra reunidos em praça pública referendam democraticamente, e por imensa maioria, que, a partir de então, viveriam exclusivamente guiados pelos Evangelhos e pela palavra de Deus. O êxito radical da Reforma em Genebra foi possível graças a um homem fanaticamente radical, terrorista, mentiroso como todo grande manipulador, de nome Farel. O humanista Erasmo de Roterdã a ele se refere como “a criatura mais arrogante e desavergonhada que encontrara na vida”. Nos dias do Brasil do século XXI, a máscara de Farel pode ser vestida por diversos auto-intitulados apóstolos de Cristo como o arquimilionário Edir Macedo, o fanático Malafaia, o corrupto encantador de feijões anti-Covid, pastor Santiago. São todos da mesma estirpe da intolerância e da monetarização religiosa e, tal qual o Presbítero Farel, exercem um enorme poder de sugestão e manipulação de massas. De voz tonitruante e com o furor descomedido de uma natureza violenta, arrebanha dentre os amargurados e desagregados da vida um bando que toma de assalto às igrejas católicas, impedem a fala dos padres aos quais denominam de auxiliares do Anticristo. Ele se considerava um Messias redivivo, tal e qual o Presidente “Mito” brasileiro. E o bando de milicianos de Farel cresce com o roubo das caixas de misericórdia, passa a invadir os mosteiros, espancar os padres, destruir conventos e a promoverem em praça públicas a queima de imagens e de centenas de livros que não fossem a Bíblia! Poucos anos haviam bastado não só para reprimir como para exterminar em Genebra, tanto a democracia quanto a velha crença católica. Os católicos atacados, por medo, se recolhem a suas casas sem oferecer resistência. O Conselho Municipal se acovarda perante as turbas ensandecidas. Quando o bispo foge da cidade, o Conselho, que era civil, convoca o referendo público. E Farel vê suas teses, de que o Estado deva ser dirigido pelos Evangelhos e que estará “Deus acima de todos”, aprovadas, naquele mês de maio de 1536! Mas Farel, o autointitulado arauto do Messias, não possui espírito criativo, era apenas um fanático líder de massas, conhece de cor capítulos inteiros da Bíblia, mas mal sabe escrever e fica perplexo ante a própria vitória. E ele busca ajuda desesperadamente. Coincidentemente, está de passagem pela Basileia o jovem de vinte e seis anos, Jehan Chovin, sem um vintém de seu, fugido da França católica. Calvino como foi rebatizado, fora primeiro sacerdote e depois jurista, envolvido com os questionamentos reformadores que tinham Lutero como principal inspirador. Seu ideal era aproximar-se do poder político pela via do direito. Um ano antes, percebendo que a Reforma se fragmentava em diversas seitas, escrevera seu “Institutio Religionis Christianae”, um primeiro plano da doutrina evangélica e que se tornaria a obra canônica do Protestantismo. Por sua lógica inflexível e firmeza construtiva, a “Bíblia” de Calvino será base de todo o dogmatismo evangélico. Farel o procura e, já nas primeiras conversas, submete-se totalmente a sua autoridade. Será seu servo espiritual. Nos trinta anos que se seguirão, jamais Farel questionará qualquer ordem de Calvino. A partir deste momento, Calvino, o ex-sacerdote, ex-magistrado, adentrará na política e desde logo declara que está pronto a criar a nova organização social de Genebra. E, em 5 de setembro de 1536, o Conselho de Genebra, por proposta de Farel, fará de Calvino o “Leitor da Santa Escritura”. Claro está que nenhum dos membros do Conselho havia parado para ler o “Institutio Religionis Christianae”. Eles acreditavam estar nomeando “o gaulês” para um mero cargo de assessor religioso, num emprego remunerado para o “morto de fome”. Se qualquer deles houvesse lido o “Institutio” veria que o poder do Conselho em breve estaria acabado. Aliás, deseja Bolsonaro alguma outra coisa mais que destruição de outro conselho, o nosso STF? “Os Predicadores da Igreja, visto que são incumbidos de ministrar e anunciar a palavra divina, têm de empreender tudo e obrigar todos deste mundo a se curvarem diante da majestade de Deus e de servi-lo. Os Predicadores têm de governar a todos, desde o maior ao menor, organizar a lei de Deus, destruir o reino de Satanás, proteger as ovelhas, exterminar os lobos, acusar e aniquilar os recalcitrantes. Podem unir e desunir, arremessar o raio e o trovão, de acordo com a palavra de Deus.” Completava Calvino em praça pública: “Genebra acima de tudo, Deus acima de todos! ” Não nos parece familiar??? E Calvino, com sua energia inflexível e inesgotável, estava desde já decidido a dominar a Cidade