Zona Curva

CABO ANSELMO

Ditadura Nunca Mais com Urariano Mota

  Colaborou Isabela Gama O CONVERSA AO VIVO ZONACURVA recebeu no último dia 5 de maio o escritor e jornalista Urariano Mota, colaborador há mais de 7 anos do ZonaCurva, e autor, entre outros, do livro “Soledad no Recife”, que conta a trajetória da paraguaia Soledad Barrett, militante nos anos da ditadura militar brasileira.  A conversa contou com a participação do editor Zonacurva Fernando do Valle e tratou, em boa parte do tempo, sobre a tragédia política, econômica e social que a ditadura militar representou para os destinos do país e sua relação com o momento político atual. Urariano relembrou os anos de chumbo, época em que fazia parte da resistência ao governo militar. O escritor relatou os crimes de Cabo Anselmo, agente infiltrado do governo no grupo de resistência Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Anselmo condenou à morte seis opositores à ditadura, incluindo sua companheira Soledad Barrett Viedma, grávida de quatro meses, quando decidiu entregá-los a Sérgio Fleury, conhecido torturador da ditadura, em 1973.  Urariano é autor de diversos textos sobre a luta contra a ditadura militar aqui no ZonaCurva.  Segundo ele, Anselmo sempre mentia sobre os fatos nas entrevistas que deu após a ditadura, e, na sua visão, o agente nunca tinha sido devidamente entrevistado corretamente, visto que os jornalistas dos veículos que conversavam com o cabo não se preparavam adequadamente para entrevista e eram enredados por suas mentiras. Porém, na opinião do escritor, a nova série da HBO+ Em busca de Anselmo traz uma nova perspectiva, onde se questiona a narrativa construída por Anselmo há décadas, trazendo mais veracidade, e contando corretamente as histórias da época. O processo de escrita de seu livro “Soledad no Recife” também foi explicitado por Urariano, que comentou sobre a importância de ser verdadeiro com os seus leitores, e com a história de seus personagens.  Em seu livro, a história de Soledad é narrada em primeira pessoa, e Urariano confessou sua paixão platônica pela militante, visto que o escritor e Soledad não chegaram a se conhecer. Urariano considera a lei de anistia uma insânia ao perdoar torturados e torturadores. “Perdoar pessoas como Fleury e Ustra é equiparar seus crimes com os atos de resistência e luta pela liberdade dos militantes da época”, declarou. História na veia com professor Vitor Soares Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo” Cabo Anselmo no seu obituário

Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo”

Quando Anselmo se refere aos codinomes que usava para se infiltrar e entregar militantes para a morte, ele gargalha. Isso é definitivo como apresentação do cinismo do traidor Para escrever este artigo, assisti hoje à série “Em busca de Anselmo”. No momento, só podem ser vistos na HBO Max os dois primeiros episódios, em um conjunto de cinco, um por semana. Portanto, o que escrevo agora tem um caráter de provisório. Ressalto de imediato que o documentarista Carlos Alberto Jr. é um cineasta. Isso não é assim tão óbvio. Quero dizer: as tomadas que ele faz, os lugares para onde leva Anselmo, as cenas que filma, são de um homem de cinema. No começo do primeiro episódio, quando Anselmo se refere aos codinomes que usava para se infiltrar e entregar militantes para a morte, ele gargalha. Isso é definitivo como apresentação do cinismo do traidor. Magistral. Carlos Alberto é um jornalista (editor do podcast Roteirices) que fez o seu dever de casa, estudou, pesquisou, o que o jornalismo não havia feito até hoje com o Cabo Anselmo. São exemplos disso o livro terrível de mentiroso “Eu, Cabo Anselmo”, de Percival de Souza e todas anteriores entrevistas. Mas para a víbora que Carlos Alberto viu e entrevistou, para a serpente documentada cabem, ainda assim, restrições ao método do cineasta: se os entrevistadores antes de Carlos Alberto Jr. pecavam por desconhecimento do grande mentiroso do agente da repressão, em Carlos Alberto, houve o que eu chamaria de excessivo respeito às mentiras do entrevistado. Quero dizer: Carlos Alberto não o interrompe, salvo raras vezes, pois deixa a mentira andar. Ainda que o documentarista contraponha às falas de Anselmo depoimentos que o desmentem em um corte com outros entrevistados, Carlos Alberto não o interrompe de viva voz, o que seria muito interessante para a mostra viva, na própria fala, das contradições de Anselmo. Isso é claro quando Anselmo visita a sede do antigo Deops em São Paulo, hoje Memorial da Resistência. Ali, num infeliz acaso para o traidor, ele passa diante de uma parede onde se expõem fotos dos 6 assassinados na Granja de São Bento em Pernambuco. Ali, diante de dois planos, com imagens da imprensa que publicava o que a repressão mandava, como aqui. E a reconstituição da história em outro plano, que narra a prisão de Soledad e Pauline numa butique no Recife, o criminoso fala: – Eu não sei qual das duas versões é a verdadeira. E o frio traidor não é cortado, no ato. Depois, num podcast, Carlos Alberto declarou que não era possível inquirir Anselmo o tempo todo, desmentindo-o. Mas que, no final da série, o traidor será levado contra a parede. Aguardemos então, que poderá vir um desmonte do bandido à altura da abertura do primeiro episódio. Anselmo era cínico e ator. Ator como uma difamação da arte. Os modos com que por 2 vezes se levanta de uma cama, com fingimentos e fazer pela primeira vez, são reveladores. Cenas repetidas. Nota-se que a memória dele é ótima, quando fala sobre o que não é sua atividade criminosa. As memórias da capela, da casa da sua adolescência, são reveladoras da sua agilidade mental. Mas o que não se perguntou, por exemplo: por que não atiraram em Anselmo quando ele foi preso em 1964, e estava com uma pistola apontada para a porta (segundo palavras dele). Como ele fugiu da prisão de modo tão fácil? Ele chega a falar que os carcereiros arranjaram prostitutas para ele! Lembro que no programa Roda Viva, Cabo Anselmo esteve muito à vontade ali porque os entrevistadores não pesquisaram a história dos seus crimes, e se fizeram esse indispensável dever, não quiseram levá-lo às cordas, para confrontar as suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife. O momento mais acintoso foi quando ele se referiu à sua mulher, Soledad Barrett, e dela retirou a gravidez, para se isentar de um hediondo crime, que cai como um acréscimo à traição de entregá-la para a morte. Transcrevo: “Cabo Anselmo – A Soledad usava DIU, desde que fez um aborto aqui em São Paulo, antes da ida para o Recife. Entrevistador – O senhor contesta a gravidez da Soledad? Cabo Anselmo – Como? Entrevistador – O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica … Cabo Anselmo – Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim. Entrevistador – Então o feto encontrado lá não era dela? Cabo Anselmo – Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico.” Então voltemos ao documentário. Nele, assistimos ao depoimento do bravo Marx, um pernambucano verdadeiro e sincero. No geral, os documentaristas raro exibem todas as palavras de um entrevistado. Montam e cortam. Assim deve ter sido também com Marx sobre a gravidez de Soledad que ele viu. O que ficou de fora? Aqui eu o recupero fora das imagens do documentário: Na noite em que acabamos de ver uma comovente recriação de Soledad Barrett no teatro Hermilo Borba Filho, quando a atriz Hilda Torres entrou em transe da personagem Soledad levada à cena, transe naquele sentido dos aparelhos, dos médiuns em terreiros, depois da mágica hora em que Soledad ressurgiu, depois disso no café, no pátio do teatro Hermilo, eis que a filha única de Soledad, a sempre menina e jovem Ñasaindy, se aproximou e abraçou o ex-preso político Karl Marx. Naquele instante em que eu conversava com Marx, Ñasaindy veio e lhe deu um súbito abraço. Então Marx parou e com os olhos rasos lhe falou, com a voz embargada: – Parece que estou abraçando a sua mãe. Ela era assim. Se fosse um poema, talvez a frase acima encerrasse um verso. Mas esta é uma narração e o narrador não recebe a misericórdia de ser humano em uma linha apenas. Quero dizer, primeiro do que tudo. Quarenta e dois anos

Cabo Anselmo no seu obituário

Na morte do Cabo Anselmo, enfim, Soledad Barrett foi e continua a ser o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para os crimes dele   Faleceu o Cabo Anselmo. Pelo telefone, o escritor e jornalista André Cintra me comunicou a notícia há 5 minutos. Eu estava fazendo a sesta, mas dei um salto da cama. E estou até agora sem saber por onde começo o obituário de José Anselmo dos Santos. As notícias, com a sua natural objetividade, que nesse caso querem dizer, com todo natural desconhecimento da história, falam que José Anselmo dos Santos morreu na noite de 15 de março aos 80 anos em Jundiaí (SP). E que ele foi “agente duplo durante o regime militar”. Viram? Chamam de “regime militar” a ditadura e o terror de Estado no Brasil. Mas vamos ver se Deus nos ajuda a tentar alguma justiça para esse criminoso. Se retirarmos a infâmia da sua pele, tarefa difícil ou impossível, a primeira característica do Cabo Anselmo é que era um bom mentiroso. Primeiro, mentia sobre o seu nome: ele era Daniel, como se apresentava no Recife, ou Jadiel ou Jônata? Isso era o mínimo. Onde ele se excedia com artes de representação não só em palavras, era na frieza e cinismo com que se referia a seu maior crime: a entrega da companheira grávida, Soledad Barrett, à repressão. Em mais de uma entrevista, diante de repórteres comprometidos com a direita ou pela ignorância histórica, ele se referia à grande guerreira  com a finura de uma serpente. Na sua entrevista à Band, anotei que Fernando Mitre, ao mencionar Soledad, o Cabo Anselmo respondeu, com as duas mãos levantadas, como quem se defende, como quem faz lembrar um trato, que ameaçou ser rompido: “Opa!”. E Mitre, de volta: “Depois o senhor fala sobre ela”. E ele, “ah, claro”. E o que se viu depois foi  nada, ou quase nada. No Roda Viva, em um dos momentos de calculado cinismo, Anselmo se refere a Soledad Barrett. Falou o entrevistador: ” O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica …?” Cabo Anselmo: ” Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim”. E o entrevistador levantou a bola para Anselmo : “Então o feto encontrado lá não era dela?” Cabo Anselmo respondeu: “Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico”. Infâmia fria sem contestação. Mas conheçam a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife, junto a Soledad. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento: “A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado”. E definitivas são as palavras na denúncia da advogada Mércia Albuquerque: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”. Na morte do Cabo Anselmo, enfim, Soledad Barrett foi e continua a ser o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para os crimes dele. Ela aponta para José Anselmo dos Santos e lhe sentencia, aonde ele for: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha”. Que o inferno lhe seja pesado, enfim. Por toda a eternidade. Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo” A morte de Vladimir Herzog e o Brasil que não queremos Canto de liberdade para José Amaro Correia A ditadura brasileira e os dois demônios