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A fila dos aspirantes a CEO

 por Fernando do Valle Os olhos do barbeiro brilhavam enquanto narrava a proximidade com tal CEO. Eu ali sentado ouvindo ao fundo o barulho da tesoura e o olhar alternando entre as mechas de cabelos no chão encerado e a minha facha no espelho. O tal CEO tinha dado veredito sobre a crise brasileira: todos NÓS somos canalhas e é por isso que esse país não tem jeito mesmo. O barbeiro se empertigava quando enchia a boca para elogiar o CEO que “empregava centenas de pessoas na fábrica de autopeças”. Comecei a imaginar o CEO como um aristocrata, um rei, um ser com poderes além da compreensão humana em mundo paralelo de iates, mansões, viagens na primeira classe a Europa e mulheres inalcançáveis para simples mortais. Eu murmurava um “não é bem assim”, outro “tem gente boa em tudo quanto é canto”. O barbeiro não me dava a menor pelota, pensei em inventar amigo CEO imaginário que desmentisse o colega, que acreditasse na igualdade entre as pessoas e na honestidade do brasileiro, senti vergonha e preferi calar a boca. Paguei e fui embora. O discurso do CEO de que ninguém presta obviamente o excluía da máxima. Como predestinado homem de sucesso, ele interpretava o papel do único ético do Brasil, ainda mais, sua mulher também prestava, sua família, seus amigos, o que modificaria um pouco o veredito para “ninguém presta (com exceções como eu, minha família e amigos)”. E como diz o velho ditado, como estamos em meio a máximas e vereditos, a exceção só confirma a regra. Ou ainda o papo do CEO era só para passar o tempo no barbeiro, e na padaria, no elevador, afinal ele já carregou malas de dinheiro por quartos de flats e sabe que o ser humano vale nada por experiência própria. No caminho de volta, tive a certeza de que para alcançar o cargo mágico de CEO, o barbeiro seria capaz de vender a mãe e trair o melhor amigo de infância. E me queimaria na fogueira como herege se ousasse questionar se o amigo CEO já conviveu com práticas antiéticas na firma de autopeças. Afinal, esses CEOS possuíam a infalibilidade de caráter, comportavam-se em seus negócios como semideuses munidos de extremo senso ético. Chegam lá porque merecem, dão duro e trabalham sem descanso, a grana preta que circula na alta roda não é para invejosos como eu e você. O menino com uniforme de escola pública que outro dia vi na barbearia, o filho do amigo do CEO, ouve o mesmo discurso do pai no almoço de sábado. Vai atravessar a adolescência com o sonho de se tornar businessman nas entranhas, na faculdade noturna, irá comprar livros que ensinam a ganhar o primeiro milhão antes dos 30 anos. Talvez consiga. O filósofo francês Alan Badiou no ensaio Em busca do real perdido afirma: “se ganhar o máximo de dinheiro possível é a norma, fica difícil dizer que não é verdade que todos os meios são válidos… É bastante curioso que a corrupção cause escândalo, já que poderíamos sustentar que a sociedade está corrompida da cabeça aos pés”. Badiou usa argumentos sem relação aparente como a morte do dramaturgo Moliére em pleno palco interpretando O Doente Imaginário, um poema de Pasolini e a definição de real do psicanalista Lacan para boa divagação sobre o real, a viabilidade do impossível, a corrupção sistêmica do capitalismo, a realidade revolucionária. A desculpa é irmã do crime. Se, como afirma Badiou, ganhar o máximo de dinheiro é a norma e o sistema está corrompido, picaretas encontram a escusa perfeita, afinal com tanto dinheiro dando sopa por aí, ninguém vai notar se eu pegar só um pouquinho já que todo mundo pega. Se a primazia dos interesses privados não prejudicassem o outro mais vulnerável, podia parecer atitude apenas egoísta abrir uma conta na Suíça com propina ou fraudar uma licitação. Difícil crer na prática inócua mesmo do mais puro egoísmo. A política, seara onde deveria ser encontrado o interesse comum e capaz de direcionar as práticas dos homens públicos nesse sentido, foi sequestrada pelos interesses corporativos. Em algumas recentes delações de bilionários empresários, ficou transparente como muitos políticos comportam-se como ardorosos defensores do capital privado. Não caio na armadilha da urgência da moralidade já que ela foi sequestrada por pastores milionários que vendem na televisão e na esquina mais próxima ao homem de bem e temente a Deus o mundo dos carros importados e lojas de luxo. Basta seguir o pastor engravatado para participar do círculo dos escolhidos, onde a grana é panaceia para todos os problemas, sobretudo para os problemas do guia. Então lembro que somos essencialmente seres sociais, o dinheiro desviado para o paraíso fiscal foi o que faltou para o tratamento do viciado em crack que mora sob o viaduto próximo de sua casa, o que causa a precariedade da creche sem vagas para o filho da faxineira que limpa seu prédio ou ainda, para o que se diz homem de bem (ou de bens) e sempre diz que não precisa de serviços públicos e ponto final, do asfalto que não tampou o buraco que quebrou o eixo da SUV. Joesley e Wesley, a cara do capitalismo brasileiro

O que nos diz a lista da Odebrecht

por Elaine Tavares A guerra de torcidas entre os partidários de Moro e de Lula tem escondido algo muito mais precioso do que os nomes dos que receberam propina da grande empreiteira global, Odebrecht. É nada mais nada menos do que a prova concreta daquilo que podemos chamar de “ditadura do capital”. Um pouco o que o candidato estadunidense Bernie Sanders vem tentando dizer na sua inusitada campanha bem no centro nervoso do sistema. É também a comprovação de algo que até então estava apenas no discurso dos “comunistas” (para o senso comum, qualquer um que critique o sistema), como mais uma de suas loucuras.  Ou seja, a dita democracia burguesa não é democracia. Ela é o espaço no qual reina a bem camuflada ditadura econômica. Sim, eu disse ditadura. Esse “fantasma” que, na boca dos “democratas” só existe nos espaços de seus inimigos. Pois essa bem azeitada ditadura do capital usa os deputados, senadores, prefeitos, governadores, vereadores, em sua maioria quase absoluta, para representar os interesses de grandes grupos econômicos e não os da população que o elege. Nós somos os otários A tão incensada democracia liberal – que o presidente Obama fez questão de dizer em Cuba que é “melhor do que a ditadura de um homem só” – é um grande engodo. Nela, o império é o do dinheiro. Quem tem a “plata” investe em pessoas que vão defender seus interesses como se estivessem defendendo os destinos de toda a nação. Por isso, uma boa estudada na conformação das bancadas legislativas das cidades, dos estados e dos países, e vamos ver que o que ali está em jogo são as necessidades do grande capital, seja ele produtivo ou financeiro. Muito pouco está em pauta o desejo da maioria da população. Não é sem razão que numa cidade como Florianópolis, por exemplo, enquanto milhares de pessoas se manifestam em frente à Câmara de Vereadores contra a proposta de um Plano Diretor que destrói a cidade , a maioria dos legisladores vota às pressas e sem discussão um plano que só será bom para as grande empreiteiras, os bancos e os empresários do turismo. Essa é a lógica. A lista da Odebrecht em suas centenas de nomes não deve ser diferente de outras tantas listas que poderíamos descobrir em outras empreiteiras, ou bancos, ou federações de empresários. Essa gente é quem tem o controle do país, e paga generosamente por isso. Assim, bancadas como a da bala, do boi ou da bíblia, no Congresso Nacional, para além de seus interesses particularistas  – que também existem – escondem também a manipulação da política para favorecer a manutenção do sistema capitalista, concretizado pelas grandes empresas e bancos. Tudo está ligado. Nesse universo perverso salvam-se alguns legisladores que, por suas lutas e por suas ligações viscerais com as comunidades onde vivem, apenas se configuram em exceções à regra. A lista da Odebrecht é só a ponta de um escândalo maior, que é o da farsa da democracia. Ela não existe. É apenas uma palavra, que os governantes usam como arma contra os que decidem organizar a vida de outra forma, e que sejam seus inimigos. Porque pensem bem: que diferença há entre a organização da vida de Israel para o Irã. Ambos os países são teocráticos, governam em nome de uma verdade revelada desde cima, um deus. Mas, Israel é amiga dos EUA, então pode. E Cuba? Como pode um arrogante como Obama ir arrotar na cara dos cubanos que a democracia dele é melhor? Ou que Cuba não tem democracia? Os legisladores cubanos são eleitos em eleições onde a propaganda eleitoral não existe. O candidato tem de ser alguém que atua de verdade na comunidade e, por isso, é conhecido pelas gentes. Ali a ditadura é outra. É a da maioria dos trabalhadores, dos que vivem a vida cotidiana e decidem nela. Já na democracia liberal, do Obama e a nossa, a ditadura é a do capital. São ditaduras diferentes, com objetivos diferentes. Uma visa o bem de todos e outra visa o enriquecimento de alguns. Nós estamos aí no meio desse rolo e cabe a nós decidirmos em qual delas é melhor viver. Há os que ingenuamente acreditam que na ditadura do capital há chances para todos, e que se trabalharem muito, “chegarão lá”. Sim, pode ser que sim. Mas serão poucos, muito poucos. Nesse tipo de sistema – a democracia liberal ou a ditadura do capital – o jogo é entre os “cachorros grandes”, não tenha ilusão. Assim que ao fim e ao cabo, a lista da Odebrecht, que contempla políticos de quase todas as cores – lembrem-se das honrosas exceções – é uma boa oportunidade para que as pessoas saiam do âmbito da consciência ingênua e se deparem com a verdade nua. A de que os que fazem as leis, os que julgam, os que comandam, nada mais são do que mandaletes dos graúdos. E contra eles só tem um jeito: povo crítico, unido e em luta. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes.