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crise jornalismo

O futuro do jornalismo depende da sua sustentabilidade financeira

Jornalismo futuro – O jornalismo precisa escolher entre ser uma atividade sem fins lucrativos ou estar associado a uma prática comercial. É uma escolha nova diante de uma situação, também nova, vivida pela profissão desde o início da era digital. Trata-se de optar entre condicionar o exercício e a sustentabilidade financeira do jornalismo ao interesse social, ou manter a situação atual em que os objetivos econômicos e políticos dos donos de empresas jornalísticas determinam quais as notícias que serão publicadas e com que ênfase. Jornalismo “sem fins lucrativos” não é um jornalismo filantrópico e nem é um sinônimo de atividade voluntária não remunerada. É um termo usado para expressar a prioridade do social sobre o lucro resultante de comercialização da notícia, na hora de definir a agenda jornalística de um jornal, emissora de rádio ou telejornal. O jornalismo sem fins lucrativos depende de faturamento tanto quanto as empresas convencionais só que os lucros eventuais são distribuídos entre quem trabalhou e não apenas entre os acionistas. O surgimento desta modalidade de jornalismo está diretamente associado à revolução tecnológico/digital. Até agora, o exercício do jornalismo estava condicionado pelas circunstâncias econômicas que historicamente vincularam a produção de notícias à necessidade de investimentos financeiros. A herança analógica Como era inevitável, a exigência de lucratividade e as pressões pela sobrevivência num mercado altamente competitivo levaram os empreendedores a se apropriarem da mensagem social e transformadora do jornalismo para atrair leitores, ouvintes e telespectadores. Surgiu assim uma situação contraditória em que a prestação de serviços informativos à população acabou subordinada à prática comercial. A função social passou a ser condicionada pelo cotidiano da lucratividade empresarial. A associação entre jornalismo e negócios foi, portanto, a consequência de uma conjuntura tecnológico-financeira e de um contexto histórico definido. É inadequado fazer um julgamento moral, tipo bom ou mau, certo ou errado. Não se pode julgar o ecossistema informativo dos séculos XVIII e XIX com as ferramentas teóricas e práticas do século XXI, mas o jornalismo precisa perceber que a realidade mudou e muito. Ilustração Wikimedia / Creative Commons Com a chegada da era digital, a nova realidade acabou atingindo o principal alicerce do modelo de negócios que viabilizou a sobrevivência econômica do jornalismo durante quase dois séculos. As tecnologias digitais eliminaram a necessidade de investimentos significativos para a produção noticiosa em texto, áudio e vídeo. Com isto, foram criadas as condições tecnológicas e financeiras para a multiplicação de projetos jornalísticos de todos os tipos, para o surgimento das redes sociais e, principalmente, para a participação de pessoas comuns na produção colaborativa de notícias. A inovação tecnológica na área da informação e comunicação assumiu um ritmo frenético, criando angustiantes dilemas econômicos para a imprensa, principalmente depois que a publicidade migrou para a internet reduzindo em até 70% a receita da maioria absoluta das empresas jornalísticas. Mas a cultura profissional herdada do jornalismo da era pré-internet não se atualizou na mesma velocidade. A geração de profissionais com 40 anos de idade ou mais ainda convive com os hábitos e procedimentos determinados pela condição de assalariados em empresas que buscam a maximização de seus lucros. São valores, normas e rotinas entranhados profundamente no processo de produção de notícias, entrevistas e reportagens. Não é fácil e nem rápido mudar uma situação como esta. O desafio da sustentabilidade Entre todas as mudanças de valores, normas e rotinas já em curso, a mais complicada é a relativa à sustentabilidade financeira da atividade jornalística. A complexidade na abordagem desta questão resulta tanto da necessidade um novo modelo de negócios para a atividade profissional como, principalmente, da inevitável associação entre este novo modelo e a valorização da função social do jornalismo. Nas últimas décadas, surgiram várias propostas como jornalismo cidadão, jornalismo cívico, jornalismo comunitário e jornalismo social. Quase todas elas procuravam enfatizar a necessidade de a profissão reduzir sua dependência das práticas comerciais para conferir mais espaço às questões sociais na agenda da imprensa. Mas, no fundamental, estas alternativas buscavam corrigir a avassaladora predominância dos interesses corporativos e da luta pelo poder político na agenda da imprensa. Não se trata de uma alteração determinada apenas pela preocupação com questões éticas ou com o que chamamos de ‘politicamente correto’. A ênfase na função social do jornalismo tem razões estruturais determinadas pelo novo ecossistema informativo mundial. O jornalismo não pode depender mais da publicidade para sobreviver tanto financeiramente como na produção de notícias. A avalanche informativa inviabilizou o sistema vigente até agora. O jornalismo passou a depender, cada vez mais, do apoio direto do público através de diferentes modalidades de acesso pago às notícias. Isto cria a necessidade de uma reorientação na agenda informativa da imprensa para temas que envolvam a população. A agenda focada na política e nos negócios transformou o público em observador passivo dos acontecimentos, condição na qual as pessoas têm poucos estímulos para financiar o exercício do jornalismo, especialmente em momentos de crise econômica como o que estamos vivendo. As formas pelas quais o público financiará o jornalismo ainda são uma grande incógnita e um terreno que começa a ser explorado, especialmente no âmbito local e em experiências universitárias, nos Estados Unidos e Europa. Pelos resultados obtidos, já se sabe que não haverá um modelo único e que este será desenvolvido em conjunto entre as pessoas comuns e os profissionais do jornalismo, com o apoio de pesquisadores acadêmicos. Apesar das incertezas ainda existentes, já existe um quase consenso de que o futuro do jornalismo depende do seu engajamento social e que este, por sua vez, só poderá sobreviver e crescer se for sustentável financeiramente, através de sistemas onde a busca do lucro não seja a motivação principal dos empreendedores. Nota do autor O objetivo deste texto é alertar meus colegas de profissão para a necessidade do debate sobre a sustentabilidade financeira do jornalismo, seja ele exercido de forma autônoma ou em empresas. Há uma relação direta entre a produção de noticias e a base econômica que garante a sustentabilidade da profissão. Hoje temos várias opções, daí a urgência do debate. Publicado originalmente na página

O jornalismo diante de um “divórcio” complicado

A relação do jornalismo com as elites políticas e empresariais entrou num período de turbulência em quase todo mundo, sinalizando a possibilidade de ruptura de um modelo vigente há mais de um século na imprensa. A turbulência surgiu a partir da divisão entre liberais democráticos e conservadores autoritários nas várias esferas do poder bem como no mundo corporativo. O caso brasileiro permite visualizar com mais clareza esta ruptura na classe dirigente à qual a imprensa e parte considerável do jornalismo sempre estiveram vinculados. Temos o segmento conservador autoritário aglutinado em torno do presidente Bolsonaro e o setor liberal democrático que reúne lideranças de partidos tradicionais e dirigentes de grandes corporações privadas. No empresariado, há os grupos como o Itaú, liberal na política, mas ortodoxo nos negócios, enquanto o grupo Havan segue o populismo corporativo, no mais estrito senso. O surto de desinformação e notícias falsas que tira o sono dos jornalistas e provoca insegurança em toda a sociedade tem uma de suas origens na divisão surgida dentro das elites. A manipulação de informações não é um fenômeno novo, mas adquiriu uma relevância crítica quando o segmento conservador autoritário do establishment passou a enviesar, descontextualizar e falsificar notícias para favorecer seus interesses. Se antes a desinformação era minimizada, o racha nas elites escancarou divergências na luta pelo poder e colocou o jornalismo numa situação muito difícil porque compromete a confiabilidade nas notícias publicadas pela imprensa. Divergências na elite sempre existiram, mas o que se nota agora é que o pacto de cavalheiros, vigente há décadas, começa a ser rompido a partir dos Estados Unidos, com a extrema direita de Donald Trump e grupos também extremistas na Alemanha, Espanha, Itália, França, Hungria, Polonia e Ucrânia, só para citar os exemplos mais em evidência. Na esmagadora maioria destes países, a divisão no establishment acontece entre um setor tradicional, de tendência liberal, intimamente conectado aos grandes interesses empresariais, e uma fração ultraconservadora reunindo políticos que se aproveitam do descontentamento de setores da população e tem o apoio de empresários preocupados em ascender financeira e socialmente. Historicamente, a maioria da imprensa mundial manteve uma relação preferencial com as elites políticas e empresariais porque ambas forneciam as condições institucionais e financeiras que chegaram a gerar lucros anuais de até 30% aos donos de jornais, editoras, emissoras de rádio e TV. Esta relação criou uma dependência dos poderosos que acabou condicionando um discurso, rotinas, regras e valores bastante diferentes daqueles que Bill Kovac e Tom Rosenstiel consagraram em seu livro Elementos do Jornalismo: “O objetivo primário do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações que eles precisam para serem livres e autogovernados” (*). A sobrevivência da imprensa A relação preferencial com as elites tornou-se inevitável pela necessidade de investimentos vultuosos para criar um jornal, uma revista ou telejornal. Além disso, a publicidade paga que viabilizava a sustentabilidade da imprensa era baseada em anúncios voltados para consumidores das classes média e alta, o que acabou levando o jornalismo a se preocupar, majoritariamente, com o segmento social com maior poder aquisitivo. Quando surgiram a internet e as redes sociais, o jornalismo foi apanhado no contrapé, porque as pessoas se tornaram protagonistas na produção de notícias e a imprensa começou a perder relevância para a grande massa da população. As redes sociais, em particular, abriram espaço para iniciativas populistas no terreno informativo, que se aproveitaram da ausência de regras para enveredar pelo terreno da desinformação e do sensacionalismo. Isto acabou contribuindo para semear a insegurança informativa no público dos veículos jornalísticos tradicionais. O dilema da imprensa se tornou ainda mais crucial quando a divisão na elite agravou a vulnerabilidade financeira e institucional dos conglomerados midiáticos, já que a maioria das empresas tradicionais migrou sua publicidade para a internet. A queda no faturamento provocou demissões em massa de repórteres, editores, técnicos e pessoal administrativo, colocando o jornalismo diante do desafio de romper, ou pelo menos, revisar a aliança preferencial com as elites governantes, aqui no Brasil, e em boa parte do mundo. Esta é uma escolha que muitos rotularam de ideológica ao tentar situá-la dentro do contexto da polarização entre o setor liberal democrático e o conservador autoritário. Mas, por sua natureza, é uma decisão essencialmente profissional, pois a internet deu ao jornalismo a possibilidade de produzir e disseminar notícias sem a dependência obrigatória de grandes empresas. Além disso, a profissão de jornalista tornou-se essencial para a orientação do público num contexto informativo marcado pela desinformação e pelas notícias falsas. Nestas condições, o “divórcio” entre jornalismo e elites poderia marcar uma nova inserção da profissão na sociedade da era digital. A manutenção do modelo atual de aliança estratégica com o establishment agrava a tendência à irrelevância do jornalismo no conjunto da sociedade, porque o afasta gradativamente dos segmentos da população que estão ganhando protagonismo político, econômico e social, através da ocupação gradual de mais espaços no ambiente digital. (*) https://www.amazon.com.br/Elementos-Jornalismo-Kovach-Bill-Rosenstiel/dp/8575090739 pag 12 O futuro do jornalismo depende da sua sustentabilidade financeira O que é ser jornalista hoje? O apoio da grande mídia ao golpe de 64 Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo? O jornalismo atual usa rótulos velhos para uma nova realidade

O repórter como porta-voz da polícia

por Urariano Mota Sobre o assassinato de uma criança de 10 anos pela polícia, pude observar a falta de investigação, ora, investigação, nem mesmo um distanciamento, da reportagem da televisão que transmitia as informações mais absurdas, como foi no caso de uma criança que dirigia abrindo e fechando o vidro do carro enquanto atirava, como se fosse um supermenino, afinal executado. Mas pude ver que o fenômeno é maior e mais amplo, ao ver no Bom Dia Brasil esta notícia: “Dinheiro de fraude pagava contas de Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann. O documento a que a TV Globo teve acesso é um relatório da Polícia Federal sobre o material apreendido no escritório do advogado Guilherme Gonçalves, em Curitiba, no ano passado. Serviu de base para a Operação Custo Brasil, que prendeu 11 pessoas na semana passada. Entre elas o próprio advogado e Paulo Bernardo, ex-ministro do Planejamento no governo Lula e das Comunicações no governo Dilma”. Ao ver isso, tive um choque e uma descoberta. É que já deixou de existir a chamada imprensa investigativa. A polícia investiga pela imprensa e faz do repórter o seu porta-voz. Tão simples, e não havia notado antes. Até entendemos que diante de uma notícia-bomba, algo como “O ex-presidente Lula matou mais de cem amantes”, o repórter nem respira, toca a inverossimilhança para a frente. Na pressa e na prensa, ele não vai deixar o furo de reportagem para outro. Mas o que espanta é o depois da bomba, a retaguarda da notícia que não apura nem põe um salutar sinal de interrogação, uma dúvida sequer na fala noticiada. Pelo contrário, a retaguarda da Rede Globo, Band, SBT, rádios, e até mesmo da imprensa escrita, se põe a levantar um autêntico castelo de cartas, uma teoria que justifique a única verdade, a versão policial. Imagino o dia em que a Polícia Federal descobrir, por exemplo, que Deus existe, conforme documentos apreendidos em investigação no Mercado Público de Água Fria . Claro, com provas fotográficas e testemunhas. Numa delas seria visto um senhor barbudo, numa manhã de domingo a comer cuscuz com guisado em uma mesa, num box do mercado. Sim, e daí? Daí é que houve esta revelação: o grisalho homem não pagou a conta com dinheiro vivo ou cartão. Ele sorriu, abençoou a graça da refeição, se levantou e sumiu por uma larga porta. Intrigada, a Polícia Federal, que hoje é o próprio olho de Deus, ao qual nada escapa, perguntou ao dono do boxe por que o cidadão não pagou. E o comerciante assim lhe respondeu: “Esse homem pra mim é Deus. É meu maior amigo”. E os policiais, para não se ajoelharem, registraram a ocorrência descoberta em relatório, ao qual nada escapa. Levada a notícia para a televisão, os apresentadores acrescentariam que essa era mais uma prova da infinita humildade e concretude da existência divina. Quando mesmo se esperava, Deus se revelara a comer cuscuz com um guisadinho no popular bairro de Água Fria. E terminaria a notícia com o ar mais grave: “o local agora é destino de imensa romaria, e de tal sorte, que Denizar, filho de Seu João do Caldíssimo, está agora de plantão ali com uma imagem de São Jorge para que seja abençoada. Fiéis de um terreiro próximo, o mais antigo do Recife, o do Pai Adão, já comparecem e batem os mais lindos toques de tambor todas os dias. O dono da coalhada no bairro, única do Recife, se tornou o mais ardoroso crente diante dos lucros por sua fórmula santa de coalhar o leite. E Carlos, o barbeiro da Rua Japaranduba, afirmou que será capaz de deixar o Santa Cruz e torcer pelo Sport, se Deus assim lhe mandar”. Tudo agora é possível. Publicado originalmente no Diário de Pernambuco.