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crise política

A América Latina e os Estados Unidos

Estou fazendo o curso da Camila Vidal, no Iela  (Instituto de Estudo Latino-Americanos da UFSC)  sobre as Intervenções dos Estados Unidos na América Latina. E, confesso, ao final de cada aula, saio completamente deprimida. Não pela aula, que é sempre ótima, mas pelas informações. A proposta do curso, que começou no ano passado, é desvelar, com riqueza de detalhes, cada intervenção dos Estados Unidos nos países da Pátria Grande, desde o roubo das terras mexicanas, primeiro conflito gerado pelo famoso Destino Manifesto, até nossos dias. O que causa a profunda tristeza é observar que nesses conflitos de invasão explícita ou de geração de golpes a conversinha é sempre a mesma: levar a democracia e o desenvolvimento aos países bárbaros. É um eterno retorno. Basta que o país se desloque, mesmo que bem pouquinho, da órbita dos Estados Unidos para que comece a sofrer as consequências. As formas de ataque também são sempre as mesmas, embargos, bloqueios econômicos, campanha midiática sobre um suposto perigo de comunismo, financiamento de grupos de “oposição” (armados ou não) e invasão direta. No geral, a situação que gera o ataque dos EUA também é sempre a mesma. Um governo mais à esquerda ou um governo algo progressista que comece a mudar a lógica garantindo educação, saúde, moradia e seguranças ao povo passa a ser visto como perigoso. E, se não se aliar aos EUA nos seus interesses, já vira inimigo. Mas, se for além, buscando garantir soberania nas ações e na exploração de suas riquezas, aí vira o próprio demônio. É hora de o império agir. O começo de tudo vem pela campanha de propaganda contra o país. A mídia mundial embarca na canoa, divulgando as notícias produzidas pelas agências dos EUA, como se ali estivesse a verdade. Principia então o desenho do “monstro”. E não importa que esse monstro tenha sido amigo e formado pelos Estados Unidos, como foi o caso de Noriega, no Panamá, ou Sadam, no Iraque. Saiu um pouco da rota, está na fogueira. No geral, o problema principal detectado é uma “tendência ao comunismo”. Começou a oferecer educação, serviços públicos de qualidade, usar os recursos nacionais para desenvolver o país, pronto, virou comunista. E o comunismo aí colocado como algo ruim. Sendo que não é! Na verdade, o comunismo é quase uma sociedade perfeita, onde cada um ganha conforme o que necessita e atua na sociedade para o bem de todos. Pois isso é um perigo para os que dominam, então há que demonizar. E assim vamos indo, estudando a história de cada um dos nossos países da América Latina: O México, na parte norte, a América Central com todo o drama da violência, genocídios e da migração presente em cada país, o Caribe e sua pobreza endêmica apesar da exuberante riqueza natural que o faz paraíso dos ricos, e a nossa América do Sul, com sua história de traições, golpes militares, golpes parlamentares e golpes midiáticos. Não escapa um. Cada país abaixo do rio Bravo já sofreu a intervenção do império, seja diretamente ou fomentando traições internas. É batata. Nenhum bem pode vir para a maioria da população. Há que manter a massa no arrocho e garantir a maior taxa de lucro para o 1% que domina. Saiu disso, tá morto. Nesse universo infernal produzido pelos Estados Unidos o único país que se mantém firme é Cuba, a pequena ilha caribenha que enfrenta há mais de 60 anos o ataque ininterrupto do império. É absolutamente fantástico que consigam manter a revolução e as conquistas que vieram depois dela, apesar de tanto ataque. O povo cubano é deveras extraordinário, afinal é submetido a um bombardeio midiático diário e sofre um embargo econômico criminoso. Apesar disso o povo da ilha se reinventa e resiste, valentemente. Mas, no que diz respeito aos demais países o eterno retorno é lei. Passam anos de ditadura, de governos autoritários ou neoliberais e quando a população finalmente se propõe a mudar e elege alguém menos alinhado aos interesses estadunidenses, lá vem a máquina imperialista, a Estrela da Morte, com todo o seu arsenal ideológico e militar. Só na história contemporânea podemos citar a Venezuela e o golpe armado em 2002 contra Chávez, a deposição de Bertrand Aristide no Haiti em 2004, criando esse caos que não tem fim no país, o golpe em Honduras em 2009 que deixou um rastro de sangue, a queda do presidente Lugo no Paraguai para o retorno da velha oligarquia, a queda da Dilma em 2016 no Brasil que levou à tragédia Bolsonaro, o golpe contra Evo Morales em 2019, a queda de Pedro Castillo em 2022, as tramas na América Central para impedir que ideias mais arejadas pudessem assomar, com o sistemático assassinato de lideranças de lutas populares e ambientais, e por aí vai. É claro que numa análise mais acurada a gente vai perceber que internamente nos países há erros e equívocos praticados pelos governantes, o que torna a ação imperial ainda mais fácil de ser efetivada. Mas, o que não se pode deixar de perceber é que os EUA estão sempre ali, como uma águia assassina a esperar a hora de comer os olhos dos governantes – e da população – que ousarem sair da linha. Volto a lembrar de Cuba, cujo presidente, Fidel, chegou a sofrer mais de 600 tentativas de assassinato. Sobreviveu a todas e para azar do império, morreu velhinho, no aconchego do lar, do jeito que quis, amado pelo povo. De novo, um exemplo solitário nesse mar de podridão criado pelos Estados Unidos em toda a nossa Pátria Grande. O fato é que no capitalismo, cuja locomotiva ainda é os EUA (China e Rússia disputam o cargo), resistir a esse modelo que garante riqueza e vida boa a apenas 1% da população é uma tarefa gigantesca. As populações lutam com o que podem, que são apenas os seus corpos nus. Como enfrentar a máquina gigantesca da guerra? Lembro-me da invasão ao Panamá em 1989, quando uma força de milhares de soldados estadunidenses bombardeou a

A democracia em risco

Democracia – Não nos iludamos de novo: nossa frágil democracia continua em risco. Recordo do governo João Goulart e suas propostas de reformas de base, ao início da década de 1960. As Ligas Camponeses levantavam os nordestinos. Os sindicatos defendiam com ardor os direitos adquiridos no período Vargas. A UNE era temida por seu poder de mobilização da juventude. Era óbvia a inquietação da elite brasileira. Passou a conspirar articulada no IBAD, no IPES e outras organizações, até eclodir nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Contudo, o Partido Comunista Brasileiro tranquilizava os que sentiam cheiro de quartelada – acreditava-se que Jango se apoiava num esquema militar nacionalista. E, no entanto, em março de 1964 veio o golpe militar. Jango foi derrubado, a Constituição, rasgada; as instituições democráticas, silenciadas; e Castelo Branco empossado sem que os golpistas disparassem um único tiro. Onde andavam “as massas” comprometidas com a defesa da democracia? Conheço bem o estamento militar. Sou de família castrense pelo lado paterno. Bisavô almirante, avô coronel, dois tios generais e pai juiz do tribunal militar (felizmente se aposentou à raiz do golpe). Essa gente vive em um mundo à parte. Sai de casa, mas não da caserna. Frequenta os mesmos clubes (militares), os mesmos restaurantes, as mesmas igrejas. Muitos se julgam superiores aos civis, embora nada produzam. Têm por paradigma as Forças Armadas nos EUA e, por ideologia, um ferrenho anticomunismo. Por isso, não respeitam o limite da Constituição, que lhes atribui a responsabilidade de defender a pátria de inimigos externos. Preocupam-se mais com os “inimigos internos”, os comunistas. Embora a União Soviética tenha se desintegrado; o Muro de Berlim, desabado; a China, capitalizada; tudo que soa como pensamento crítico é suspeito de comunismo. Isso porque nas fileiras militares reina a mais despótica disciplina, não se admite senso crítico, e a autoridade encarna a verdade. O Brasil cometeu o erro de não apurar os crimes da ditadura militar e punir com rigor os culpados de torturas, sequestros, desaparecimentos, assassinatos e atentados terroristas, ao contrário do que fizeram nossos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile. Assistam ao filme “Argentina,1985”, estrelado por Ricardo Darín e dirigido por Santiago Mitre. Ali está o que deveríamos ter feito. O resultado dessa grave omissão, carimbada de “anistia recíproca”, é essa impunidade e imunidade que desaguou no deletério governo Bolsonaro. Não concordo com a opinião de que só nos últimos anos a direita brasileira “saiu do armário”. Sem regredir ao período colonial, com mais de três séculos de escravatura e a dizimação de indígenas e da população paraguaia numa guerra injusta, há que recordar a ditadura de Vargas, o Estado Novo, o Integralismo, a TFP e o golpe de 1964. O altissonante silêncio dos militares perante os atos terroristas perpetrados por golpistas a 8 de janeiro deve nos fazer refletir. Cumplicidade não se consuma apenas pela ação; também por omissão. Mas não faltaram ações, como os acampamentos acobertados pelos comandos militares em torno dos quartéis e a atitude do coronel da guarda presidencial que abriu as portas do Planalto aos vândalos e ainda recriminou os policiais militares que pretendiam contê-los. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, reza o aforismo que escuto desde a infância. Nós, defensores da democracia, não podemos baixar a guarda. O bolsonarismo disseminou uma cultura necrófila inflada de ódio que não dará trégua à democracia e ao governo Lula. Nossa reação não deve ser responder com as mesmas moedas ou resguardar-nos no medo. Cabe-nos a tarefa de fortalecer a democracia, em especial os movimentos populares e sindicais, as pautas identitárias, a defesa da Constituição e das instituições, impedindo que as viúvas da ditadura tentem ressuscitá-la. O passado ainda não passou. A memória jamais haverá de sepultá-lo. Só quem pode fazê-lo é a Justiça. Ditadura Nunca Mais com Urariano Mota Breve crítica da democracia louvada Sobre a democracia e o voto Não há meia democracia Frei Betto: “É uma ilusão e um engano achar que a ditadura foi melhor”

A TV pode ter sido decisiva no fracasso do golpe bolsonarista dia 8

O golpe de estado de extrema direita previsto para o domingo dia 8 de janeiro pode ter sido abortado por algo que não estava nos cálculos dos conspiradores: o papel das redes de televisão com a transmissão ao vivo a invasão da Praça dos Três Poderes e a posterior depredação da sede do Supremo Tribunal Federal, do Congresso e do Palácio do Planalto. Tudo indica que o ataque aos três prédios públicos mais importantes do país visava criar o caos político e com isto justificar uma intervenção militar a pretexto de restabelecer a ordem. Mas o objetivo acabou frustrado quando milhões de brasileiros testemunharam ao vivo, pela TV, a irracionalidade da ação dos bolsonaristas de extrema direita, que rapidamente perderam eventuais simpatias de quem assistia tudo à distância. A participação da televisão no desfecho dos acontecimentos ainda é um tema que merece maior detalhamento para identificar se foi algo pensado politicamente ou foi fruto do entusiasmo jornalístico em testemunhar cenas que a maioria das pessoas achavam improváveis de acontecer. O fato é que a TV Globo, por exemplo, ao interromper sua programação normal no canal aberto tomou uma decisão que além de política tinha também desdobramentos comerciais, porque os espaços publicitários foram adiados por várias horas. Outra decisão crucial foi a de formar uma rede entre o canal aberto e o fechado (Globo News) para aumentar a audiência. A emissora também convocou quase todos os seus jornalistas especializados em política para incorporar-se à cobertura, contactando fontes nos diversos níveis do aparato governamental, para explicar e complementar o que estava sendo mostrado ao vivo. Simbolismos políticos A TV Globo também tomou uma decisão carregada de simbolismo político de instruir repórteres, apresentadores e comentaristas para que eles tratassem como terroristas, golpistas e vândalos os participantes da invasão da Praça dos Três Poderes em Brasília. Este é o tipo de classificação que só pode ter sido decidida nos mais altos escalões da empresa pois as redações nunca tiveram a autonomia suficiente para acrescentar adjetivos à protagonistas de eventos políticos. Outras emissoras também adotaram o mesmo enfoque dos participantes da tentativa de golpe de estado com gradações e adjetivos diferentes, como foi o caso da CNN e da Bandeirantes. As exceções foram a SBT, Record e Jovem Pan que mantiveram sua orientação bolsonarista e rotularam a depredação como um protesto e seus autores como manifestantes, seguidores do ex-presidente, derrotado nas eleições presidenciais de outubro do ano passado. Caso estudos mais aprofundados venham a comprovar esta hipótese sobre a influência da transmissão ao vivo pela TV e do posicionamento das emissoras no tratamento dos participantes do ataque a prédios públicos em Brasília, no dia 8, estaremos diante de um caso inédito em que a comunicação e o jornalismo podem ter evitado um golpe de estado usando a informação visual como arma principal. O possível papel estratégico do audiovisual sinaliza uma mudança nos comportamentos políticos uma vez que a imagem, em tempo real, apela mais às emoções do que à reflexão. Até agora a imprensa escrita tinha um papel predominante porque os principais atores políticos priorizavam a racionalidade e a lógica nas ações de grande envergadura. Já se sabia que uma imagem apela mais para o emocional do que para o racional, mais para os impactos informativos do que para a reflexão analítica. Mas o que a cobertura televisiva dos eventos de domingo, 8 de janeiro, pode estar nos mostrando é a importância de entender como imagens impactantes sobre questões complexas podem acabar gerando mudanças de percepções individuais e coletivas em tempo curtíssima, sem o recurso a reflexão analítica. As armadilhas políticas das fake news O ecossistema informativo nacional no governo Lula Resumo da ópera golpista no Brasil

Resumo da ópera golpista no Brasil

Golpe Brasil – Nunca uma ação terrorista foi tão anunciada como a que aconteceu neste domingo em Brasília. Desde há semanas, as redes bolsonaristas mostravam a organização da marcha até a capital federal com o intuito de tomar o Congresso, o STF e o Planalto. Vídeos, material de propaganda, lives, tudo circulando sem qualquer pejo. Os acampamentos em frente aos quartéis serviram como incubadoras de todo o furdúncio. Foi uma grande ingenuidade pensar que ali estavam apenas os velhos e as tias do uatizapi. Quem acompanha as redes sabe que desde o resultado das eleições, a extrema direita está organizando esse povo e preparando a estrada do golpe. Não é um movimento espontâneo. Tudo muito bem articulado e financiado. Mais de 100 ônibus chegaram à Brasília em tempo recorde. Milhares de pessoas uniformizadas com a camisa da seleção foram organizadas e conduzidas pela Polícia Militar de Brasília para a Esplanada dos Ministérios no que eles chamaram de “Greve Geral”. Apesar do pedido de reforço da segurança do Congresso e do STF, que pressentiu o perigo, o governo do Distrito Federal não mobilizou as tropas para a proteção do patrimônio público e, apesar dos bolsonaristas não serem muito numerosos, em pouco tempo, eles tomaram os três principais pontos da capital numa ação rápida e sem qualquer bloqueio. Havia pouquíssimos policiais acompanhando a caminhada e as seguranças locais não tiveram como segurar a turba que quebrou as vidraças, entrou nos locais e promoveu uma destruição insana. Gente defecou sobre as mesas, obras de arte foram danificadas e até portas foram arrancadas. A invasão durou horas, sem que o governador do DF tomasse qualquer atitude, portanto, ficou absolutamente claro que a ação foi permitida. Basta lembrar que, em outros momentos da história, com muito mais gente na Esplanada, o contingente de segurança sempre foi grande e a repressão duríssima. Desta vez, não. Os bolsonaristas chegaram a atacar policiais e jogaram dentro do espelho de água os carros da segurança do Congresso. Uma festa. Bolsonaro e o Secretário de Segurança do DF acompanharam tudo de Orlando, juntos. É importante ressaltar que não houve incompetência. Foi uma inação deliberada, preparada, planejada. Por outro lado, o governo federal também foi incompetente em não definir um plano de defesa para esse dia. Deixar na mão do inimigo foi um erro. Havia quer tido um plano B. Depois de toda a destruição feita, a polícia chegou e foi dispersando os bolsonaristas. Até agora 300 pessoas foram presas. Há informes de que os financiadores do ônibus já foram identificados, mas nenhum foi preso. Há focos de atos terroristas em frente a algumas refinarias no Paraná e em outros lugares do país há trancamento de vias, inclusive a Marginal Tietê, uma das principais vias de São Paulo, sem que a polícia tome qualquer atitude. Há também um chamamento para os caminhoneiros pararem o país. A organização segue firme e sistemática, sem que os incitadores do golpe sejam cerceados. Divulgadores de mentiras e incitadores do caos seguem transmitindo sem problemas. O ministro Alexandre de Moraes ordenou o desmonte dos acampamentos bolsonaristas em todo o país. Em Brasília, os acampados estão saindo tranquilamente com suas malas e travesseiros, dando risada e sem qualquer intimidação. Os mesmos que ontem destruíram o Congresso, o STF e o Planalto. A Polícia apenas acompanha, quando não interage de maneira simpática. Algo impensável numa manifestação de trabalhadores, por exemplo. Também o Exército, em Brasília, protege os acampados com carros blindados. Agora, no rescaldo da ação terrorista é que vai ser possível ver de que material é feito o governo eleito. Vai atuar com energia contra os terroristas? Vai atacar os peixes graúdos? Sim, porque essa turba está sendo financiada e organizada por gente grande. A mão da justiça chegará neles? O que fará com relação as Forças Armadas? Continuará deixando o caso nas mãos do STF? O que aconteceu neste domingo é um entre tantos eventos que vem se repetindo desde o golpe contra a Dilma em 2016. Como Lula vai enfrentar o núcleo desta trama que são as Forças Armadas? Este é o ponto central, como alerta o professor Nildo Ouriques. Segundo ele, há que colocar na reserva todos os generais que conspiram, à luz do dia, contra o país. Movimentos sociais e partidos de esquerda foram às ruas ontem (segunda-feira) em todo o país em defesa da democracia.   O universo paralelo do fanatismo bolsonarista   A TV pode ter sido decisiva no fracasso do golpe bolsonarista dia 8   Vamos falar de golpe?    

Ainda falta o terceiro turno

A campanha bolsonarista foi abertamente criminosa. Perdeu, mas ficou impune. E seguiu naturalizando esse privilégio, nos posteriores deboches à norma constitucional. Como previsto, a sucessão de golpes que pariu o governo Bolsonaro tornou-o tão ilegítimo que o deslocou para fora do regime da legalidade. Assim termina o mandato. Talvez (ainda) não haja muito a fazer na seara governamental, pois o Congresso aliou-se ao banditismo. Individualmente, porém, a história é bem outra. O caminhoneiro que expõe crianças, o policial prevaricador, o líder dos piquetes, o jurista mentiroso, a deputada pistoleira, todos podem e devem ter punição imediata. Não há controvérsias, brechas legais ou direitos a preservar. São criminosos notórios, em atividades documentadas, de ampla repercussão pública. Assim como os hábitos ilícitos durante a Campanha de Bolsonaro e todo seu governo, o vandalismo fascista aproveita a cumplicidade e a omissão das cúpulas judiciárias. A anistia é um projeto institucional. Ou acreditamos realmente que nossos heróis togados não conseguem identificar os organizadores dos ataques? Que não têm prerrogativa para meter nazistas na cadeia? Um ano atrás alertei que as autoridades atiçavam o golpismo fingindo combatê-lo. Agora fingem surpresa diante dos ataques mais previsíveis do universo. Não basta liberar estradas, recolher pistolas, abrir sindicâncias, bloquear contas digitais. Não estamos lidando com ameaças ou tentativas, e sim com delitos flagrantes. Perdoar delinquentes é o exato oposto da pacificação. É um desatino incendiário que alimenta a instabilidade social e convida o golpismo a alargar seus limites. Enquanto nos contentamos em tirar bodes da sala, os facínoras ganham adeptos e melhoram sua organização. Hoje voltam para casa. Amanhã saem armados. E depois? Sem uma ação imediata e rigorosa do Judiciário, a posse de Lula ocorrerá no meio de batalhas campais. E ele presidirá um país à beira da guerra civil. A esquerda otimista ri dos patetas, mas continua com medo de sair à rua usando roupa vermelha. Sonha com a Bolívia de Arce e periga despertar no Chile de Allende. O que falta é pressão de democratas corajosos. Menos chororô perplexo e mais atitude efetiva. As instituições precisam responder para quem, afinal, estão funcionando. Vai ter golpe? Pós-democracia La vai o Brasil descendo a ladeira

Aceite ser manipulado: tenha ódio de política

Ódio de política – Há uma tradicional maneira de caçar ratos: basta colocar um pedaço de queijo dentro de uma armadilha. O roedor sente o cheiro da iguaria e, ágil, corre para devorá-la. Ao se aproximar, comete um erro involuntário que lhe custa a vida: pisa no mecanismo que fecha, automaticamente, a ratoeira, aprisionando-o. É o que faz o populismo de direita para neutralizar potenciais adeptos das teses progressistas. Apregoa o ódio à política. Alardeia que todos os políticos são corruptos! (Inclusive seus adeptos…). Substitui as pautas sociais pela de costumes. Reforça o moralismo farisaico. Assim, convence muitas pessoas a ter aversão à política. Quem tem ódio da política é governado por quem não tem. E tudo que os maus políticos querem é que tenhamos bastante nojo da política para, então, dar a eles carta branca para fazerem o que bem entenderem. O que mais temem é que participemos da política para impedir que seja manipulada por eles. Não existe neutralidade política. Existe a doce ilusão de que podemos ignorar a política, abdicar do voto e ficar recolhido ao nosso comodismo. Ao agir desta forma, nos tornamos o rato que come tranquilamente o saboroso queijo, sem ainda se dar conta de que perdeu a liberdade e, provavelmente, a vida. Ninguém escapa dos dois únicos modos de fazer política: por omissão ou participação. Ao ficar alheio à conjuntura política, ignorar o noticiário, evitar conversas sobre o tema e nos abster nas eleições, assinamos um cheque em branco à política vigente. A omissão é uma forma de adesão à política e aos políticos que, no momento, dirigem a política do país no qual vivemos. O outro modo é a participação, que tem duas faces: a dos que apoiam a política vigente e a dos atuam para mudá-la e implantar um novo projeto político. As forças políticas de direita, que naturalizam a desigualdade social, acusam muitos políticos de corruptos (às vezes, com razão!). Mas não propõem ignorarmos a política. Propõem substituir os políticos por empresários, dentro da lógica capitalista de privatização do espaço público e do Estado. Foi o caso do governo fracassado de Macri, na Argentina, e de muitos outros exemplos mundo afora. Em tudo há política A política não é tudo, mas em tudo há política. Desde a qualidade do café que tomamos todas as manhãs até as condições humanas (ou desumanas) de nossas moradias. Tudo na vida de cada um de nós depende da política vigente no país: a qualidade de nossa educação escolar, o atendimento à saúde, a possibilidade de emprego, as condições de saneamento, transporte, segurança, cultura e lazer. Não há nenhuma esfera humana alheia à política. Inclusive a natureza depende dela – se as florestas são ou não preservadas, se as águas são ou não contaminadas, se os alimentos são orgânicos ou transgênicos, se os interesses do capital provocam ou não desmatamentos e desequilíbrio ambiental. A qualidade do ar que respiramos depende da política vigente. Um dos recursos que a direita utiliza para dominar a política é a manipulação da religião, em especial no continente americano, onde a cultura está impregnada de religiosidade. A modernidade logrou estabelecer uma saudável distinção entre as esferas política e religiosa. Isso após longos séculos de dominação da política pela religião. Hoje, em princípio, o Estado é laico e, na sociedade, a diversidade religiosa é respeitada e tem seus direitos assegurados, tanto no âmbito privado (crer ou não crer), quanto no público (manifestação de culto). Atualmente, os religiosos fundamentalistas querem confessionalizar a política. Usar e abusar do nome de Deus para enganar os incautos. Ora, nem a política deve ser confessionalizada, pois tem que estar a serviço de crentes e não crentes, nem a religião deve ser partidarizada. A Igreja, por exemplo, deve acolher todos os fieis que comungam a mesma fé e, no entanto, votam em candidatos de diferentes partidos políticos. Isso não significa que a religião é apolítica. Não há nada nem ninguém apolítico. Uma religião que acata a política vigente está, de fato, legitimando-a. Toda religião tem como princípio básico defender o dom maior de Deus – a vida, tanto dos seres humanos quanto da natureza. Se um governo promove devastação ambiental ou privilegia os ricos e exclui os pobres, é dever de toda religião criticar este governo. Sem pretender ocupar o espaço dos partidos políticos, como, por exemplo, apresentar um projeto de preservação ambiental ou de reforma econômica. Em sua missão profética, cabe às confissões religiosas abrir os olhos da população para as implicações éticas da política deletéria do governo. No caso dos cristãos, entre os quais me incluo, é sempre bom frisar que somos discípulos de um prisioneiro político, Jesus de Nazaré. Ele não morreu de acidente nas escadarias do Templo de Jerusalém, nem de doença na cama. Foi perseguido, preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e condenado a morrer assassinado na cruz. Foi considerado subversivo por defender os direitos dos pobres e ousar, dentro do reino de César, propor outro reino, o de Deus, que consiste em um novo projeto civilizatório baseado no amor (nas relações pessoais) e na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano (nas relações sociais). Portanto, não há como alguém escapar da política. Estamos todos imersos nela. Se a política que predomina hoje em nosso país e no mundo não nos agrada, busquemos meios para alterá-la. A realidade atual de nosso país e do mundo resulta da política adotada nas décadas precedentes. Cabe a cada um de nós se decidir: acatar ou transformar? Um dos exemplos mais curiosos de que tudo tem a ver com a política é este: o último mês do ano é dezembro, que equivale ao numeral dez. Antes dele, novembro, nove. Atrás, outubro, oito. Precedido por setembro, sete. E quantos meses tem o ano? Doze! Eis a política: na Roma antiga o ano compreendia 304 dias e tinha 10 meses: martius, aprilis, maius, junius, quintilis, sextilis, september, october, november e december. Mais tarde foram acrescidos os meses de janus e februarius. Para homenagear os

Governo Bolsonaro agrava o fosso da desigualdade

Desigualdade social – O compromisso do governo federal com o 1% dos brasileiros mais ricos e o desprezo pela vida intensificaram nosso crônico problema da desigualdade social. Levantamento publicado no ano passado pelo banco suíço UBS mostra que o aumento da riqueza acumulada por bilionários foi de 99%, em comparação com 2009. A desigualdade se reflete no prato vazio do brasileiro. Segundo o estudo “Efeitos da Pandemia na Alimentação e na Situação da Segurança Alimentar no Brasil”, coordenado por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim e colaboração da Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de Brasília, cerca de 59% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar. Esse termo abrange desde casos de fome extrema até insuficiência nutricional, causadas pelo baixo poder de compra. A extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) e do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ambos em 2019, demonstra a falta de compromisso do governo Bolsonaro com os mais pobres. Com o aumento dos preços de itens básicos do dia a dia, a população mais carente enfrenta, todos os dias, dificuldade para manter o padrão de vida conquistado no governo Lula. Os gastos com os combustíveis estão pesando ainda mais no bolso do brasileiro durante a pandemia. De acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), só em 2021, houve nove aumentos no preço da gasolina, com acúmulo de 27% no preço de janeiro a julho. Em algumas regiões do país, o litro já ultrapassou R$7,00. Em recente live, o presidente Jair Bolsonaro relacionou os aumentos ao ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), mas, segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo), o valor administrado pelos estados se manteve na média dos últimos anos, não contribuindo significativamente para alteração do valor dos combustíveis. Além do preço da comida e da gasolina, outra conta aumentou e tem preocupado grande parte dos brasileiros: a da energia elétrica. A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) definiu o novo valor da tarifa extra que será cobrada. A bandeira vermelha, que definia R$9,49 a cada 100KWh, chegará a R$14,20 a partir desse mês. Esse aumento, segundo a Agência, está relacionado à crise hídrica que acomete o país. O vice-presidente Hamilton Mourão declarou que medidas de racionamento estão sendo cogitadas. Um estudo feito pela organização Oxfam Brasil mostrou que, em 2018, a distribuição de renda estacionou pela primeira vez no país desde 2000. A grave crise econômica que estamos mergulhados desde 2015 atinge os brasileiros de diferentes formas, conforme o gênero, a cor e a classe social. Segundo o estudo, entre 2016 e 2017, os brancos mais ricos tiveram ganhos de rendimentos de 17,35%, enquanto os negros obtiveram menos que a metade, apenas 8,1%. De acordo com o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Pedro Herculano de Souza, a concentração de renda no topo da pirâmide é quase constante, e as pioras mais profundas no grau de desigualdade econômica acontecem em momentos de graves crises. A crise sanitária e a inação do governo federal estão proporcionando o aumento da inflação que não foi acompanhado por um proporcional reajuste no valor do salário-mínimo. Só em julho, por exemplo, o IPCA mostrou que a inflação teve seu maior avanço no mês desde 2002, chegando a 0,96%. Desde o ano passado, mais 67,7 milhões de brasileiros buscam se manter com o auxílio emergencial, enquanto isso, cerca de 42 pessoas lucraram mais que todo o valor destinado à população em maior situação de vulnerabilidade econômica no país durante a pandemia de Covid-19, segundo o relatório “Quem Paga a Conta? – Taxar a Riqueza para Enfrentar a Crise da Covid na América Latina e Caribe”, da Oxfam. Souza identifica três períodos de agravamento da desigualdade do país: o fim da República Velha e o Estado Novo (em primeiro), entre 1926 e 1945, o início da ditadura de 1964, e a crise econômica e política dos anos 1980, período marcado pela hiperinflação. Conforme a análise de Souza, entre 1942 e 1943, o 1% mais rico da população pulou de 20% para 30% da arrecadação de toda a renda nacional. Isso ocorreu principalmente porque a elite pouco se opôs ao governo autoritário de Getúlio Vargas, ampliando seus privilégios durante o regime vigente. Dessa forma, houve maior enriquecimento dos que se encontravam no topo da pirâmide, enquanto a população mais pobre perdia direitos e vivia em condições ainda mais difíceis. Ainda segundo o pesquisador, durante a ditadura militar (1964-1985), foi rompida a tendência de queda na concentração de renda que estava acontecendo nas duas décadas anteriores. Norte e Nordeste voltam a ser esquecidos no faminto Brasil de Bolsonaro Essa evolução na distribuição que estava em curso foi fruto de políticas como a do aumento do salário-mínimo em 100%, proposta pelo então ministro João Goulart, em 1953 (leia mais sobre o mandato de Jango como ministro de Vargas no texto de Fernando do Valle aqui no Zonacurva). Com condições trabalhistas mais favoráveis, os proletários passaram a viver um momento de maior participação econômica, o que diminuiu o déficit em relação aos mais ricos. Já nos primeiros anos da segunda metade da década de 1960, o 1% mais rico da população passou de 17% a 26% no acúmulo de renda nacional. Esse aumento é consequência de uma das medidas econômicas vigentes no período: a redução de 30% no valor do salário mínimo. Essa diminuição deixou a classe trabalhadora em situação desfavorável, deixando-os mais pobres e impedindo a evolução da distribuição de renda. Além disso, a repressão a sindicatos e atividades de mobilização popular impossibilitou a classe mais pobre de reivindicar seus próprios direitos e lutar por melhoria na qualidade de vida. Depois disso, no período de transição democrática dos anos 1980, que ficou conhecido como “década perdida”, 30% da renda nacional ficou concentrada no 1% mais rico do país. Uma pesquisa mostrada no artigo “A history of inequality: Top incomes in Brazil, 1926–2015”, publicada pelo pesquisador Pedro Herculano Souza, compara a concentração de renda do topo da pirâmide socioeconômica,

O Brasil, os caminhoneiros e a política

por Elaine Tavares Quando em 2013 a direita foi às ruas houve uma surpresa geral. Havia muito tempo que esse campo não travava batalhas no campo aberto. Sua tática, desde o golpe de 1964, era a das salas acarpetadas, dos acordinhos espúrios, da pressão via dinheiro. Mas, tampouco o país tivera na direção alguém identificado  com os trabalhadores. Lula e depois Dilma vinham de um partido de trabalhadores e ainda que seguissem a cartilha liberal, o nome “trabalhadores” na sigla que os representava parecia perigoso demais. O período de vacas gordas na economia passara e a realidade de país dependente assomava outra vez. À classe dominante já não interessava mais o PT no governo e ela decidia que queria de volta o poder político. Naqueles dias de 2013, a faísca que se acendera com a batalha contra o aumento da tarifa de ônibus deu vazão a uma série de outras demandas. E, de repente, as ruas, que eram território da esquerda e dos trabalhadores, passaram a se vestir de um verde-amarelo reacionário, com a classe média e até algumas socialites realizando passeatas e manifestações. O grito de Fora PT começou a aparecer e no meio da luta pelo transporte público surgiu a pauta da PEC-37 que tomou conta do país, com as pessoas defendendo seu arquivamento sem sequer saber o que ela significava. E nas ruas travou-se a batalha contra os partidos políticos, os sindicatos e os movimentos sociais. Ali já se pronunciava a semente do que estaria por vir. O arquivamento da PEC 37 deixava o Ministério Público com poderes de investigação tal qual a polícia e a operação Lava-Jato que nasceria mais tarde mostraria o quanto servira aquele arquivamento.   Naqueles dias as forças de esquerda também ficaram em estado de perplexidade, mas resistiram e enfrentaram os raivosos verde-amarelinhos em todos os campos. E quando tudo acabou, acreditava-se que aquele episódio não se repetiria. Mas, não foi assim. O nascimento de uma série de movimentos de direita e sua ação nas redes sociais deu volume aos gritos de “fora PT” e a situação econômica foi abrindo brechas na sociedade que não queria mais perder o que pensava que havia conquistado: a segurança financeira. O segundo mandato de Dilma que começava com promessas de manutenção dos programas sociais e de vida boa para todos fez água e ela decidiu aplicar um ajuste que cortava na carne da maioria. Virou inimiga, e com razão. A operação Lava-Jato e o jogo das delações premiadas começaram a mostrar um quadro de corrupção dentro da Petrobras, a maior estatal brasileira. Políticos do PT foram caindo um a um, até que chegou à presidenta. Como um rastilho de pólvora a pauta do combate à corrupção foi se espalhando capilarmente, com o engajamento ferrenho das mídias comerciais. Dilma estava com a cabeça a prêmio e, de novo, as forças da direita conseguiram empurrar para as ruas milhões de pessoas pedindo o impedimento da presidenta. Não havia crime, não havia provas, mas havia um frisson alucinante que exigia a punição, a queda, o desaparecimento do PT. E Dilma foi derrubada por conta das pedaladas fiscais, coisa que todo governante praticava. Tanto que logo depois da assunção de Temer, as pedaladas foram legalizadas pelo Congresso. Com Dilma fora do caminho, o vice, Temer, assumiu e a próxima jogada no tabuleiro da política brasileira que era derrubar Lula, apagá-lo da história, tirá-lo de cena como um reles ladrão, capaz de vender-se por um apartamentinho furreca. E tudo foi feito conforme o script. Lula foi envolvido nos esquemas de corrupção e hoje está preso em Curitiba por conta de uma acusação que envolve o recebimento de um apartamento como propina. Enquanto essa novela palaciana se desenrolava, os movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos seguiam com suas mesmas velhas práticas, sem perceber que algo havia mudado radicalmente nas entranhas do país. As redes sociais, misturadas de forma capilar na vida das gentes, viraram tanques de guerra a disparar notícias falsas e a constituir um consenso generalizado sobre a esquerda brasileira. Qualquer luta de trabalhadores virava coisa de “comunista” e até mesmo o PT foi acusado como tal. “Minha bandeira jamais será vermelha”, gritavam os verde-amarelos, possuídos pela sanha anti-comunista. E as ruas iam se mesclando de gente que misturava esse ódio ao comunismo a própria perda de vantagens econômicas, visto que a economia ia se desmilinguindo. Com Temer no comando, o país foi sendo entregue em todas as áreas: riquezas naturais, estatais, soberania. Um campo dos trabalhadores abraçou a batalha pela defesa do Lula. E, em todo o processo, que foi da acusação à prisão, a vida se desenrolou por ali. Mesmo depois da prisão, que já leva quase 50 dias, esse grupo seguiu atuando no sentido de batalhar pela liberdade do líder. As demais pautas ficaram em segundo plano e mesmo a Reforma Trabalhista, que tirou direitos fundamentais dos trabalhadores não encontrou combate. Poucas foram as ações contra a reforma e ela passou no Congresso sem maiores atropelos. As centrais outrora combativas chegaram a suspender greves gerais marcadas, desmobilizando e enfraquecendo a luta dos trabalhadores. A direita, que vinha se reorganizando desde 2013, com a construção de novos mecanismos de batalha, não deixou que o vácuo na política demorasse. Atuou com competência e venceu a batalha das ideias, tendo nas mãos os meios de comunicação e as redes sociais. Assim, a luta contra os “comunistas” continuou ganhando fôlego e incitando muitos grupos a exigirem até a intervenção militar. Assim, enquanto o país ia sendo entregue e a economia despencava, ia se criando o caldo de descontentamento totalmente vinculado ao campo da esquerda. Tudo de ruim que Temer provocava era culpa do PT. E ainda que houvesse sim responsabilidades do PT, o negócio não era tão simples assim. Na última semana um movimento de caminhoneiros contra o preço do diesel surpreendeu outra vez o campo da esquerda. Das entranhas do país, pelas estradas carcomidas e perigosas que constituem a malha rodoviária do gigante brasileiro, homens e mulheres decidiram parar

Brasil: tempo de lutar

por Elaine Tavares Não é de agora que o governo brasileiro vem arrochando a vida do trabalhador. O processo começou bem antes de o vice, Michel Temer, dar o golpe. A presidenta Dilma Rousseff, que se elegeu com um programa, vinha já aplicando outro, mais adequado aos interesses das grandes agências de fomento internacionais, do agronegócio e da pequena parcela da elite produtiva. Sempre é bom lembrar que Dilma escolheu Joaquim Levy para Ministro da Fazenda, um ex-funcionário do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ou seja, uma raposa cuidando do galinheiro. E logo que entrou já veio com a conversinha de metas para o superávit primário, baixando duas medidas provisórias de ajuste fiscal, que mexia com trabalhadores e empresários de médio porte. Essa memória é necessária para que se perceba que o governo do PT estava respaldando as medidas, ainda que um ou outro dirigente fizesse críticas públicas ao ministro. O fato é que em 2014 já estava em andamento uma crise mundial do sistema capitalista e ela iria atingir a periferia, motivo pelo qual o governo já se preparava para enfrentar, sempre jogando a conta para a maioria da população e para os trabalhadores, como sempre ocorre  nos países periféricos. O respiro de “desenvolvimento” vivido no governo Lula estava indo pelo ralo e o Brasil teria de voltar ao velho patamar de país subdesenvolvido e dependente, de onde só saíra por conta de uma conjuntura favorável de curta duração. Dilma não teve dúvidas sobre iniciar esse processo e, claro, com isso tocou nos interesses da tal “classe média” que havia sido criada no tempo das vacas gordas. E, como dizia Milton Santos, a classe média não quer direitos, mas privilégios, não haveria dúvidas de que essa fração de classe iria se bandear para o lado de quem oferecesse mais, ainda que mentindo. Quem não se lembra dos protestos dos proprietários de automóvel por conta de o preço da gasolina estar em quase três reais? O setor da população que havia conseguido – via expansão do crédito – ter acesso a bens e viagens arreganhou os dentes e grande parte desse povo foi às ruas com a camiseta da seleção pedir o impedimento da presidenta. No desejo de vantagens imediatas, esse povo todo pensou que a simples saída da presidenta resolveria as coisas, sem compreender o jogo da economia que se desenrolava no mundo. A direita brasileira, que conhece as regras do jogo, e sabe jogar, aproveitou o descontentamento e procurou incentivar ainda mais a pressão, incitando os brasileiros e brasileiras no ódio ao PT, colando no partido o selo de “comunista”, o que definitivamente é a mais deslavada mentira. Nada menos comunista do que o governo Dilma, tendo sido ela mesma a presidenta a sancionar a inominável Lei Antiterrorismo, que hoje é um eficaz instrumento de domesticação das lutas. E foi assim que a onda de neofascismo que toma conta do mundo todo no ódio aos pobres, aos negros, aos índios, a tudo que tenha cor popular, também cresceu a crista no Brasil e ajudou a empurrar Dilma para o abismo. Um golpe, seguro, mas quase que um desdobramento natural no contexto de recuperação de poder por parte da direita tradicional. Estava tudo escrito. Dado o golpe e assumindo o governo o vice Michel Temer, que já antecipara a traição na famosa carta na qual reclamava ser apenas um bibelô, o ajuste necessário – na lógica fria do capital – veio a galope. Não haveria mais nada a impedir o aprofundamento das medidas de arrocho contra os trabalhadores, contra a maioria da população. É fato que uma parcela significativa da população resistiu ao golpe, apoiando a presidenta Dilma. Houve manifestações massivas, protestos. Mas não houve força suficiente para impedir o que já estava traçado. E, desde então, a classe trabalhadora vem amargando perda de direitos e recessão. No campo da disputa partidária o golpe também aprofundou a perseguição contra o PT, chegando ao ápice com a prisão do seu líder mais popular: Luiz Inácio Lula da Silva. De certa forma, o grupo que planejou o golpe vem conseguindo o que planejara: amarrar a militância petista na batalha pela libertação de Lula, tirando-a do centro dos acontecimentos que aprofundam os prejuízos aos trabalhadores. Foi assim que a Reforma Trabalhista passou, destruindo direitos conquistados há décadas sem que a reação fosse proporcional ao tamanho do prejuízo. O certo é que entre os trabalhadores há imobilismo, medo e perplexidade, o que torna bem mais difícil uma reação contundente contra os novos governantes. Na internet, a peleia é acirrada, mas essas batalhas não podem ser ganhas só no campo virtual. Há que haver materialidade no mundo da vida. O ano de 2017 registrou mais de 1100 greves de trabalhadores, segundo dados do DIEESE. Isso não é pouca coisa nesse cenário de apreensão no qual o desemprego cresce de maneira vertiginosa e o trabalho temporário virou moda. Mas, debruçando-se sobre os números, pode-se perceber que a maioria dos movimentos paredistas deu-se na defensiva. Quase 70% das greves aconteceram por conta de atrasos no pagamento, ou seja, não foi para ampliar direitos, foi para garantir o que é o mínimo no contrato capitalista: o salário.  Apenas 16% das paralisações foram por reajuste salarial. É certo que uma greve, seja por qual motivo, sempre ajuda a ampliar a consciência de classe, mas ainda teremos de vencer muita estrada para que a indignação ultrapasse o corporativismo. Uma olhada nas páginas dos sindicatos de Santa Catarina, por exemplo, de trabalhadores privados e públicos, e o que se vê são notícias sobre pautas bem intestinas. As categorias não conseguem sair de suas zonas de conforto. E também investem muito mais no debate sobre a prisão x liberdade de Lula do que nos grandes temas nacionais. Isso mostra que os dirigentes estão armadilhados nessa arapuca montada pelas forças conservadoras. Resta saber se é uma captura no campo da consciência ingênua ou se há o interesse em não mexer no vespeiro que poderia ser

É possível sair da crise?

por Paulo Kliass* – da Agência Carta Maior Ao longo dos últimos meses os meios de comunicação passaram a utilizar, de forma mais recorrente, uma analogia originária da meteorologia para descrever as difíceis condições por que passa a economia brasileira. Na verdade, o movimento de empréstimo da noção de “tempestade perfeita” para explicar os movimentos no âmbito da economia já vinha sendo experimentado na imprensa em outros países ao longo desse início de milênio. Foi assim no caso da eclosão da crise econômica e financeira em 2008 nos Estados Unidos e sua irradiação para o espaço europeu. A analogia também foi largamente usada no caso mais recente da decisão da Grã Bretanha de sair da União Europeia, o chamado Brexit. De forma geral, a imagem se revela bastante adequada para explicar momentos e conjunturas em que uma série de fatores se combinam para agravar uma tendência já crítica em sua própria essência. O quadro mais recente da economia e da sociedade brasileiras se encaixa quase como uma luva nesse modelo explicativo. Alguns chamam de “crise geral”, outros preferem “crise sistêmica”, outros ainda ficam com a ideia de “combinação de crises”. Mas o fato concreto é que atravessamos um momento de extrema dificuldade, onde a coincidência e a retroalimentação entre os diferentes fatores só fazem aprofundar a gravidade da crise. Primeiros sinais vêm de longe As primeiras sinalizações de “anormalidade” na dinâmica econômica remontam a 2014, quando as notícias da área fiscal já apontavam para problemas no equacionamento das contas públicas tal como vinha sendo feita desde 2003. No entanto, desde lá Dilma havia sido convencida de que a solução para tal descompasso pontual entre receitas e despesas seria um ajuste de viés conservador, com metas de redução de gastos na área social e desonerações tributárias a rodo para o capital sem controle nem contrapartida. Com a política monetária mantendo a SELIC na estratosfera, não havia meio de se promover a recuperação dos investimentos. Com a vitória nas eleições de outubro, por alguns dias se manteve aceso o sonho do coração valente, mas que rapidamente se derreteu no tristemente conhecido episódio do estelionato eleitoral. A presidenta reeleita chama Joaquim Levy para comandar a área econômica e passa chamar de seu o programa de governo da turma que havia sido derrotada nas eleições. O austericídio se consolida como estratégia oficial para superar as dificuldades da economia e com isso os resultados vão no sentido contrário, tal como nove entre dez economistas sinceros havíamos alertado desde o início. Os cortes no orçamento pela lógica da armadilha do superávit primário esmagam qualquer possibilidade de recuperação da atividade econômica. A inflação não cede, a SELIC continua nas alturas, os gastos orçamentários com pagamento de juros da dívida atingem a cifra de R$ 540 bilhões em 12 meses. A compressão das despesas se mantém nas áreas sociais e nos investimentos públicos. A recessão começa a se demonstrar nas estatísticas do IBGE e o desemprego vai campeando por todas as regiões e setores. Uma vez consolidado o golpeachment, a mudança de governo reforça ainda mais o garrote do ajuste conservador, com a entrega do comando da economia de Temer ao candidato preferido de Lula para 2015: Henrique Meirelles. O banco Itaú se vê representado na presidência do Banco Central, na figura de Ilan Goldfajn. A direção geral do ajuste não se altera em termos essenciais. A proposta de corte de gastos gestada ainda sob o comando de Dilma é recuperada e “aperfeiçoada”, transformando-se na versão ainda mais maldosa da ex PEC 241, atual PEC 55. Crise: econômica, política, social, institucional Em paralelo a toda esse festival de incompetências e perversidades das sucessivas equipes econômicas, a crise política vai ganhando contornos igualmente dramáticos. Esse rolo compressor vem ainda da época da aprovação do impeachment, que se efetuou sem que nenhuma prova de crime de responsabilidade tenha sido apresentada. Os exageros jurídicos e policiais envolvidos na Operação Lava Jato contribuem para contaminar a atmosfera de casuísmo das decisões adotadas em todas as esferas e poderes da administração pública. Trata-se da seletividade do Poder Judiciário, do Ministério Público e das próprias forças policiais no trato das manifestações públicas. A crise institucional adquire cores dramáticas. Ela se expressa nas disputas duras entre representantes dos Poderes da República, com interferências quase cotidianas de uns nas esferas de outros. A crise federativa também se agrava a cada instante, com decretação de calamidade financeira em alguns Estados e as dificuldades que serão ainda mais crescentes nos municípios, que estarão sob novo comando a partir do início do ano que vem. Em todas as situações, a crise econômica se confunde e se entrelaça à crise política. O aprofundamento e persistência da conjuntura recessiva se articulam com redução de despesas na área social, acentuando ainda mais a gravidade do quadro geral, com desemprego e aumento da desassistência social. A fadinha mágica das expectativas não cumpre o prometido de que bastaria derrubar Dilma e colocar o financismo em estado puro no comando da economia. Faltou apenas alertar aos mais desavisados que a retomada do crescimento depende muito mais de outros fatores objetivos do que unicamente da subjetividade otimista do “agora vai!” O arco de alianças apoiando o golpe desde o início vai sendo reduzido aos poucos e os sucessivos escândalos de corrupção de personagens nucleares do governo Temer também operam como complicadores para se atingir algum tipo de estabilidade tão desejada pelos putschistas. Os conflitos entre os três Poderes da República vão sendo acentuados e a agenda política encontra dificuldades para evoluir como imaginada pelo Palácio do Planalto. Ao que tudo parece indicar, aos poucos vai caindo a ficha para vários setores empresariais de que houve mesmo estelionato golpeachmental. Prometeram terreno na Lua e não estão conseguindo entregar a mercadoria. O pato da FIESP começa se sentir incomodado. Os manifestantes direitistas de verde amarelo encontram-se igualmente órfãos e procuram esconder as fotos que tiraram sorridentes ao lado de Cunha, Temer, Renan i tutti quanti. Agora apegam-se à figura de um juiz de primeira instância, Sergio Moro,