Zona Curva

crise política 2016

Balanço do golpe I

por Guilherme Scalzilli Os equívocos administrativos dos governos Dilma Rousseff são insuficientes para explicar o sucesso do golpe. Os péssimos índices socioeconômicos, a corrupção e a impopularidade não abreviaram os mandatos de José Sarney e FHC, por exemplo. A associação dos fracassos gerenciais de Dilma com a queda visa dar a esta um verniz meritório, criando pretextos para a negociata que os golpistas apelidaram “julgamento político”. A responsabilização da vítima esconde suas tentativas de resistência e, acima de tudo, os esforços sistemáticos da mídia, do Judiciário e do Congresso para sabotá-las. A viabilização do golpe se deu no âmbito estratégico. O impeachment representou uma confluência de elementos que foram se articulando ao longo dos últimos três ou quatro anos, nem sempre de forma planejada, mas partindo de setores com o mesmo interesse. Nesse sentido o governo petista contribuiu com a própria tragédia, como um jogador que planeja mal seus movimentos e subestima as manobras adversárias. Isso diz respeito a uma esfera pragmática da atividade política, onde ideais, plataformas e mesmo realizações ocupam lugar lamentavelmente secundário. Por ingenuidade, cinismo ou pura preguiça, os comentaristas midiáticos ignoram esse ambiente. Mas evitar a face espinhosa do impeachment leva a um idealismo alienante, que enxerga pressupostos no lugar de fatos, pessoas e instituições. Eis porque alguns progressistas e conservadores parecem ter visões tão semelhantes sobre o fenômeno. Nas próximas semanas abordarei a consecução do golpe sob as óticas político-partidária, social, jurídica, econômica e midiática, com um epílogo perspectivo. Não pretendo esgotar os assuntos, nem mesmo desenvolvê-los, e sim propor um rol de questões que julgo merecerem figurar nos futuros debates historiográficos.  Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. A escandalosa isenção do Judiciário brasileiro  

Enquanto o governo afunda

por Elaine Tavares A jogada do impedimento da presidente Dilma segue de vento em popa, com golpes e contragolpes no âmbito da casa legislativa, a qual abriga a comissão que julga o processo. Uma comissão que já é por si só suspeita, visto que boa parte de seus integrantes está envolvida em corrupção. Não bastasse isso, o próprio presidente da Câmara de Deputados tem a ficha suja e dinheiro escondido – comprovadamente – nos paraísos fiscais. É quase um cenário de ficção. No campo da investigação policial as coisas deram uma acalmada depois que saiu uma lista com os nomes de deputados de vários partidos, envolvidos com o recebimento de propina, paga pela grande empresa multinacional Odebrecht, para a defesa de seus interesses. A lista vazou e logo foi impedida de circular pelo mesmo juiz que tem insistido que não deve haver sigilo no caso da investigação contra Lula. Ficou meio difícil para ele explicar os dois pesos, duas medidas. Por outro lado o país segue sacudido pela vertiginosa sequência de fatos palacianos e partidários. O PMDB – que era o principal partido de base do governo, desembarcou. Depois de várias ameaças de deixar o governo, finalmente, em uma reunião relâmpago, tomou a decisão. Decidiram salvar a pele, caso haja uma decisão pelo impedimento da presidenta. Uma decisão tardia, enfim, pois se houvesse um mínimo de brio, já teriam dado o fora depois da ridícula carta de Temer a Dilma, reclamando sobre sentir-se um “enfeite” como vice. Ele mesmo não sai de cena nem do governo, pois, como foi eleito na chapa com Dilma, se ampara nesse fato para garantir a faixa de presidente caso haja o impedimento. Fica ali, de “enfeite”, conspirando para que o desfecho lhe seja favorável. Se formos pensar em termos de jogo parlamentar, a debandada do PMDB complica um bocado as chances da presidenta Dilma no desenrolar do golpe dentro do congresso nacional, mas em termos de força de classe não muda nada. Como bem aponta o economista Nildo Ouriques, em suas sistemáticas análises sobre os acontecimentos, na luta de classes, esses partidos – PT, PMDB, PC do B e outros que compunham e compõem a base do governo petista – atuam na defesa dos interesses da classe dominante. Daí o uso do termo “governo petucano”, cunhado pelo sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, para designar o comando atual do país. Um mistura de petismo (PT) com tucanismo (PSDB). É que nem a dita base de “esquerda”, nem a direita que hoje exige a queda de Dilma se diferencia no essencial que é a completa submissão aos interesses do grande capital. Isso fica bem claro na conjuntura, pois enquanto os trabalhadores saem às ruas, mobilizados contra o golpe em curso, os deputados – inclusive com o voto dos aliados do governo – vão aprovando leis que destroem direitos, que aprofundam o arrocho salarial, que privatizam serviços públicos, que entregam riquezas do país. E tudo devidamente sancionado pela presidenta, que em nenhum momento vira seu olhar para as mesmas gentes que estão nas ruas em sua defesa. É como um conto de terror. Defender o governo é inviável diante do quadro, embora se tenha claro que o que acontece é um golpe jurídico/parlamentar/midiático. Daí essa divisão entre os grupos de esquerda. Enquanto alguns acreditam que primeiro deve-se barrar o golpe e depois recrudescer a luta contra o governo petista, outros acreditam que é preciso tocar para fora todo mundo. Nem o PT e seus aliados, muito menos o PSDB e sua trupe. “Que se vayan todos”. Por outro lado, ainda não se vislumbra uma força capaz de assumir o comando da vida brasileira. Tudo está em construção. Hoje, dia 31, acontecem novas manifestações – ainda bastante confusas – pois juntam a defesa da presidenta com os protestos contra o ajuste fiscal que ela mesma vem impondo. Quase uma esquizofrenia social. De fora, seguem os que querem o “fora todos”. O inegável nessa crise toda que vive hoje a nação brasileira, com o governo prestes a sucumbir diante de um golpe que será desastroso para a vida de todos os brasileiros, é que tudo isso é resultado justamente dos acordos partidários feitos pelo petismo para garantir a tal da governabilidade, quando então assumiu essa cara “petucana”. E, nesse consórcio, a opção de classe é clara. E não é pela classe trabalhadora. Tristes dias vivemos!  O que anima é que o povo nas ruas é sempre um exercício de luta e, desde aí, algo pode emergir. Que seja bom, e pela esquerda. Texto publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes.

O que nos diz a lista da Odebrecht

por Elaine Tavares A guerra de torcidas entre os partidários de Moro e de Lula tem escondido algo muito mais precioso do que os nomes dos que receberam propina da grande empreiteira global, Odebrecht. É nada mais nada menos do que a prova concreta daquilo que podemos chamar de “ditadura do capital”. Um pouco o que o candidato estadunidense Bernie Sanders vem tentando dizer na sua inusitada campanha bem no centro nervoso do sistema. É também a comprovação de algo que até então estava apenas no discurso dos “comunistas” (para o senso comum, qualquer um que critique o sistema), como mais uma de suas loucuras.  Ou seja, a dita democracia burguesa não é democracia. Ela é o espaço no qual reina a bem camuflada ditadura econômica. Sim, eu disse ditadura. Esse “fantasma” que, na boca dos “democratas” só existe nos espaços de seus inimigos. Pois essa bem azeitada ditadura do capital usa os deputados, senadores, prefeitos, governadores, vereadores, em sua maioria quase absoluta, para representar os interesses de grandes grupos econômicos e não os da população que o elege. Nós somos os otários A tão incensada democracia liberal – que o presidente Obama fez questão de dizer em Cuba que é “melhor do que a ditadura de um homem só” – é um grande engodo. Nela, o império é o do dinheiro. Quem tem a “plata” investe em pessoas que vão defender seus interesses como se estivessem defendendo os destinos de toda a nação. Por isso, uma boa estudada na conformação das bancadas legislativas das cidades, dos estados e dos países, e vamos ver que o que ali está em jogo são as necessidades do grande capital, seja ele produtivo ou financeiro. Muito pouco está em pauta o desejo da maioria da população. Não é sem razão que numa cidade como Florianópolis, por exemplo, enquanto milhares de pessoas se manifestam em frente à Câmara de Vereadores contra a proposta de um Plano Diretor que destrói a cidade , a maioria dos legisladores vota às pressas e sem discussão um plano que só será bom para as grande empreiteiras, os bancos e os empresários do turismo. Essa é a lógica. A lista da Odebrecht em suas centenas de nomes não deve ser diferente de outras tantas listas que poderíamos descobrir em outras empreiteiras, ou bancos, ou federações de empresários. Essa gente é quem tem o controle do país, e paga generosamente por isso. Assim, bancadas como a da bala, do boi ou da bíblia, no Congresso Nacional, para além de seus interesses particularistas  – que também existem – escondem também a manipulação da política para favorecer a manutenção do sistema capitalista, concretizado pelas grandes empresas e bancos. Tudo está ligado. Nesse universo perverso salvam-se alguns legisladores que, por suas lutas e por suas ligações viscerais com as comunidades onde vivem, apenas se configuram em exceções à regra. A lista da Odebrecht é só a ponta de um escândalo maior, que é o da farsa da democracia. Ela não existe. É apenas uma palavra, que os governantes usam como arma contra os que decidem organizar a vida de outra forma, e que sejam seus inimigos. Porque pensem bem: que diferença há entre a organização da vida de Israel para o Irã. Ambos os países são teocráticos, governam em nome de uma verdade revelada desde cima, um deus. Mas, Israel é amiga dos EUA, então pode. E Cuba? Como pode um arrogante como Obama ir arrotar na cara dos cubanos que a democracia dele é melhor? Ou que Cuba não tem democracia? Os legisladores cubanos são eleitos em eleições onde a propaganda eleitoral não existe. O candidato tem de ser alguém que atua de verdade na comunidade e, por isso, é conhecido pelas gentes. Ali a ditadura é outra. É a da maioria dos trabalhadores, dos que vivem a vida cotidiana e decidem nela. Já na democracia liberal, do Obama e a nossa, a ditadura é a do capital. São ditaduras diferentes, com objetivos diferentes. Uma visa o bem de todos e outra visa o enriquecimento de alguns. Nós estamos aí no meio desse rolo e cabe a nós decidirmos em qual delas é melhor viver. Há os que ingenuamente acreditam que na ditadura do capital há chances para todos, e que se trabalharem muito, “chegarão lá”. Sim, pode ser que sim. Mas serão poucos, muito poucos. Nesse tipo de sistema – a democracia liberal ou a ditadura do capital – o jogo é entre os “cachorros grandes”, não tenha ilusão. Assim que ao fim e ao cabo, a lista da Odebrecht, que contempla políticos de quase todas as cores – lembrem-se das honrosas exceções – é uma boa oportunidade para que as pessoas saiam do âmbito da consciência ingênua e se deparem com a verdade nua. A de que os que fazem as leis, os que julgam, os que comandam, nada mais são do que mandaletes dos graúdos. E contra eles só tem um jeito: povo crítico, unido e em luta. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes.

Um pouco sobre a ética em tempos de cólera

           por Fernando do Valle Espantoso como a falsa moral e bons costumes da elite brasileira, que sonega bilhões e corrompe o Estado há séculos, é incorporada bovinamente no discurso da classe média. Impossível acreditar que “honestos” empreiteiros, industriais, CEOS, diretores de empresa foram ludibriados por Lula, o “ladrão operário que fala palavrão e que vai mofar na prisão” (discurso rápido ouvido em elevador). Ingênuos os muitos que acreditaram na conciliação de classes em um país ainda profundamente desigual. Lula perpetuou velhas relações promíscuas do Estado com alguns empreiteiros do 0,1% que controla a grana e agora está escancarado o modo irresponsável como essas empresas operam. Em uma das ligações da República Federativa dos Grampos, vulgo Brasil, Marcelo Odebrecht chamou o ex-presidente de Brahma, quem mandou Lula bicar o Blue Label que embala os papos da alta roda, Odebrecht deu a senha, lugar de operário é no boteco tomando cachaça e cerveja. Não sei se Eduardo “Caranguejo” Cunha, evangélico que é, entorna Blue Label, convidado com certeza é, mas sempre soube seu lugar. O mundo político foi mais uma vez abalado com uma lista de 316 políticos de 24 partidos  que receberam dinheiro da construtora Odebrecht nas eleições de 2012 e 2014. O grande capital compra políticos no varejo e ainda os apelida na planilha com nomes hilários: Jaques Wagner é o Passivo, Eduardo Cunha, o Caranguejo, Renan Calheiros o Atleta, Eduardo Paes o Nervosinho, José Sarney o Escritor, Humberto Costa o Drácula, Lindbergh Farias o Lindinho e Manuela D’Ávila o Avião e por aí vai. Na lista, não constam Brahma e Dilma.  “A “boa consciência” das classes privilegiadas torna-se perfeita, já que o problema está sempre longe, na corrupção estatal, por exemplo, permitindo uma perfeita legitimação de práticas cotidianas de exploração e humilhação” (Jessé Souza em “A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite”, página 156). O mais tragicômico entre os inúmeros grampos ilegais do juiz Sérgio Moro mostra o prefeito olímpico Eduardo Paes, o Nervosinho, sem papas na língua, criticando a “alma de pobre” do ex-presidente que frequenta sítio e compra barquinho. Lula ri do outro lado da linha. Quem está rindo também são empresários, muitos deles encastelados na Fiesp, que enxergam na crise política a oportunidade de guindar ao posto mais alto do executivo um político mais alinhado aos seus interesses. Para isso distribuem filé mignon a manifestantes a favor do impeachment, se a estratégia der certo, mais tarde a classe média “que luta contra a corrupção” vai engolir acém moído. Se reclamarem, tropa de choque a postos, dessa vez sem selfie. Mas então Lula não tem culpa de nada? É um santo? Pode perguntar a dona de casa com a camiseta da impoluta CBF. O boquirroto Ciro Gomes sempre acusa seu amigo Lula de ter “vocação para virar Deus”. Dizia o capeta na pessoa de Al Pacino no final do filme Advogado do Diabo que a vaidade é um dos seus pecados preferidos. Quem não se lembra de 2007, 2008, enquanto o mundo se afogava na crise financeira, vivíamos uma vibração positiva no país, como se nossas diferenças tivessem sido colocadas debaixo do tapete e o Brasil encontrado seu destino glorioso. Lula só não saiu da presidência em 2010 elegendo uma ministra pouco conhecida, como era aprovado por 83% da população. Mais: 84% dos brasileiros acreditavam que o país estava melhor. Quem não ficaria vaidoso que atire a primeira pedra. Mas boa parte da classe média que engoliu Lula por um período o regurgita agora com doses maciças de preconceito e ódio, teleguiados por uma imprensa torpe e grupos organizados da direita com as burras cheias de dólares. Em uma catarse triste, muitos agora sentem-se à vontade para gritar pela janela que Lula é vagabundo e analfabeto. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão” (Cláudio Abramo). Há sempre legitimidade no protesto movido pelo descontentamento contra qualquer governo, mesmo o mais empedernido governista não pode fechar os olhos aos repetidos erros de Dilma nos últimos meses que desembocaram em uma difícil situação econômica e uma forte rejeição ao seu governo, mas se a crítica é contaminada por um discurso excludente, ela não é direcionada aos equívocos de Dilma e sim às mudanças que beneficiaram parcelas da população mais pobre no quadro social brasileiro, que permaneceu praticamente inalterado por décadas. Sonho que um pouco dessa indignação contra Lula se voltasse a favor de demandas justas e necessárias. Antes de Lula assumir a presidência, jamais vi parte da classe média conservadora se indignar contra a fome, a desigualdade, a violência policial, a barbárie da situação carcerária brasileira. E pelo jeito, continuam os mesmos, e ainda mais raivosos. Do outro lado, talvez a mobilização do protesto do dia 18 de março sirva para alguma mudança na correção dos rumos do governo que não cansa de agradar a plutocracia que manda neste país e já provou que não tem fidelidade a ninguém, só a seus interesses privados. Lula nunca foi revolucionário e propunha reformas em junho de 2002 na Carta ao Povo Brasileiro , muitas delas não cumpridas ou cumpridas em parte. É inegável o aprimoramento de certas instituições, como da Polícia Federal (apesar de certos abusos) e da Procuradoria Geral da República nos últimos anos. O ex-chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, afirmou em entrevista “que Lula sempre dizia: daqui pra frente, quem não quiser ser investigado no governo, que não erre. Doa quem doer. Eu me lembro da nossa dor quando o José Dirceu, o [Antonio] Palocci foram investigados”. Agora observamos a força do injusto pacto social intermediado por muitos políticos sem caráter. No início da Operação Lava Jato, a prisão de empreiteiros trazia a falsa esperança de que os poderosos fraudadores e sonegadores não eram mais inatingíveis, mas agora o sistema tenta

A fábrica de ideologia

por Elaine Tavares A Globo mostrou ontem, mais uma vez, o que é ser uma fábrica de ideologia. Coloca como herói alguém que trabalha acima da lei, insufla o golpe, escancara sua posição. Nada de novo para nós que fazemos a crítica cotidiana. A mídia comercial é o braço armado do sistema. Há quem diga que não é bem assim, que não é tanto poder sobre as pessoas. Mas é. Negar isso é fechar os olhos para a realidade. A onda fascistóide que varre o país desde há tempos só cresce, e muito desse crescimento vem da atuação da mídia. Não digo que as pessoas sejam tábulas rasas, que qualquer informação passada pela televisão se encrava e domina. Não. Isso seria estúpido e equivocado. Mas, Theodor Adorno, um dos filósofos da escola de Frankfurt já deu a pista nos anos 50 sobre como essa fábrica de ideologia funciona e como acaba influindo na consciência coletiva. No seu estudo sobre a personalidade autoritária, Adorno mostra que existem na sociedade os fascistas em potencial. Essas pessoas seriam aquelas que já estariam abertas às tendências antidemocráticas da sociedade e, com a instigação sistemática, fatalmente se tornariam autoritárias e passíveis de explicitação do ódio. Esse trabalho foi feito por Adorno para tentar explicar algumas tendências autoritárias na sociedade estadunidense logo após a segunda grande guerra, e ele baseava suas conclusões na experiência vivida pelo nazismo – pouco tempo atrás, que acabou levando ao fanatismo um país inteiro. Ele mostra que as tendências fascistas não estão ligadas ao desconhecimento, à ignorância ou a falta de informação. Se fosse assim não teríamos tantos intelectuais caminhando por essas veredas. A tendência fascista, para ele, é algo que está na consciência e, se bem trabalhada, pode aflorar até mesmo nas chamadas “pessoas de bem”. O fato é que a classe dominante usa os meios de comunicação para insuflar o ódio a tudo aquilo que apareça como um entrave ao seu domínio. Mentiras e preconceitos, repetidos e repetidos, provocam a insurgência do fascista em potencial, aquele que no íntimo do seu ser precisa de um líder, um patrão, um chefe, alguém autoritário e mandão para definir os caminhos. Ele mesmo não se sente seguro em definir seu próprio rumo. E é aí que a televisão – fábrica de ideologia – entra. Como o espaço mais propício para a fermentação do ódio e para a construção de uma sociedade autoritária. Não é sem razão que os meios de comunicação comerciais estejam sempre a massacrar os negros que vivem nas favelas, os pobres, os índios, os trabalhadores que se revoltam, as gentes que se rebelam, os de “abajo”. Todas essas parcelas da sociedade são demonizadas diuturnamente. Milhares de trabalhadores públicos em greve fazendo passeata em Brasília não entram no plantão da Globo, mas meia dúzia de reacionários gritando em frente ao Palácio da Alvorada são elevados ao patamar de “heróis da pátria”. E o que é pior, tudo isso acaba sendo potencializado nas redes sociais, que reproduzem os mesmos meios, as mesmas ideias, à exaustão. Na histeria dos fascistas em potencial já não cabem mais a lei, as regras definidas para viver em sociedade, nada. Só o que vale é fala e a indicação do líder. Com ele vão ao inferno e podem até matar a própria mãe. Dura realidade. Porque um líder que se vale do ódio pode voltar-se contra os seus próprios comandados a qualquer momento, basta que apresentem uma fagulha de pensamento crítico. Registros disso podemos encontrar aos milhares na história da humanidade. Na arte, um filme que mostra bem essa construção da sociedade autoritária é “O senhor das moscas”. Vale a pena ver e pensar um pouco sobre o que vivemos agora mesmo no Brasil e na América Latina. Ontem assistimos a mais um capítulo das investidas da classe dominante para abocanhar o poder de governar de direito. Porque de fato nunca esteve fora das decisões. Apenas suportou a aliança com o Partido dos Trabalhadores porque havia uma conjuntura continental que favorecia a um avanço da ideia de socialdemocracia, de avanço de políticas públicas, de políticas compensatórias. Mas, agora que por toda a América Latina a mão dura do capital vem recuperando seu poder, já não é mais preciso esconder-se na pele de cordeiro. O lobo volta arreganhar os dentes sem vergonha de ser quem é. E, nesse processo de reagendar novas formas de ser governo, nada melhor que espalhar o germe do autoritarismo que está latente em boa parte das gentes. Para isso tem a Globo, a Record, a Band, a Folha e toda a sorte de seguidores. A mão dura, quando é para ser usada em favor dos pobres, não serve. Aí, quem a usa é acusado de louco, ditador e outros quetais, como foram alcunhados Fidel, Che, Chávez. Hoje, vimos nas ruas, a elite e a classe média – em sua maioria – babando, pedindo o regime militar. A favor de quem? Dos pobres é que não. Querem o autoritarismo para garantir privilégios. Mal sabem que quando se acorda o monstro, ele pode pisar em qualquer um. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes.