Zona Curva

crônica

Saudades dos tempos orgiásticos

Em uma de suas poucas entrevistas, o jornalista Ivan Lessa explicou um dos motivos de seu auto-exílio em Londres. Ele tinha medo da realidade destruir suas memórias da joie de vivre desfrutada no Rio nas décadas de 60 e 70: “eu era feliz e sabia, aquilo era de uma intensidade orgiástica”. Me contamino de saudosismo e imagino um tempo em que jornalistas não se fechavam em discussões provincianas e divisões em turminhas de fora ou de dentro do eixo. Os que valiam a pena eram a priori e naturalmente sem eixo e não se jactavam disso. Lessa morreu em 8 de junho de 2012, aos 77 anos e morou em Londres de 1978 até sua morte no ano passado. Na redação do lendário Pasquim, conheceu dois de seus maiores amigos, Paulo Francis e Jaguar. Com o último, Lessa criou o ratinho Sig, de Sigmund Freud, símbolo do Pasquim, baseado na anedota que dizia que se “Deus criou o Sexo, Freud criara a sacanagem”. Ainda no Pasquim, Lessa conviveu com figuras como Millôr Fernandes, Ziraldo, Tarso de Castro, entre outros. Na última década de vida, passou a andar em má companhia, tornou-se amigo do deplorável Diogo Mainardi, que despeja suas sandices no panfleto ordinário que atende por Veja e no Manhattan Connection, do canal GNT. Tradutor de inúmeras obras, Lessa foi autor do livro de contos Garotos da Fuzarca (1986) e dois de crônicas: Ivan vê o mundo (1999) e O luar e a rainha (2005). Lessa trabalhou por anos na rádio e no site da BBC Brasil, onde escrevia três colunas por semana quando morreu (vale a pena dar um pulinho por lá). A inspiração para a carreira jornalística e literária veio do sangue. Bisneto de Julio Ribeiro, autor do romance A Carne, de 1888, que causou escândalo na época de sua publicação por abordar temas como o amor livre e o divórcio, Ivan Lessa é filho do escritor Orígenes Lessa e da cronista Elsie Lessa. Segundo o filho, sua mãe “foi meio injustiçada”, referindo-se à falta de reconhecimento de seu trabalho (Elsie escreveu para o jornal O Globo sem cessar por inacreditáveis 48 anos). Além de cronista e jornalista, Lessa foi também ótimo frasista. “Baiano não nasce, estreia” e “todo brasileiro vivo é uma espécie de milagre” exemplificam sua mordacidade. Em entrevista concedida ao jornalista Alberto Dines em 2001, Lessa fala sobre o Pasquim, sua paixão pela música brasileira, Paulo Francis, os jornais ingleses, sua família e outros assuntos. Dois anos antes, em 1999, em outra entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, Lessa nos recorda da canção Nossos Pais, imortalizada por Elis Regina. Na canção, Elis canta a plenos pulmões que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Para Lessa, o mesmo pode se aplicar à literatura: “ao ler Ana Karenina, você se empolga, acompanha a mulher até ela se jogar embaixo de um trem, mas, se você se lembrar dessa meia hora na praça ou num jardim, evidentemente essas experiências, têm, em você, um impacto pessoal que a literatura jamais vai dar”. https://www.zonacurva.com.br/cinco-anos-sem-o-velho-lobo/

No bico do corvo (1)

Um Deus sensível. Manda repouso à dor que te devora. Destas saudades imortais. (poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe)   Estava com o pé na cova, quase fui pro saco, por um fio não fui dessa para melhor… Depois de um mês no hospital (15 dias de UTI), 4 cirurgias e 60 dias de convalescência, estou de volta. Além de me perguntarem se melhorei, amigos e parentes me questionaram duas coisas: se tive alguma iluminação metafísica ou contato com o além e se agora passei a valorizar mais as ‘pequenas coisas’ da vida. Começo pela segunda: me emocionei sim quando voltei a ver minha filha dormindo como a pureza de um anjinho, ao comer um pastel de feira, ao dar um mergulho no mar, ao sentir forças para o meu primeiro treino de corrida no Ibirapuera e outras ‘pequenas coisas’. Quando renasci, lembrei de como o mundo lá fora me chamava e eu tinha a cama como o meu terreno exclusivo, a minha minúscula cela monitorada por fios, eletrodos e monitores, sinto calafrios pela espinha ao recordar. A televisão a cabo com poucos canais, metade deles com pastores televisivos e suas picaretagens de costume, aumentava o meu desespero por não conseguir ler um livro. Nem em meus piores pesadelos, imaginei que não conseguiria praticar uma de minhas paixões mais comezinhas. Dentro do possível, mantive a calma. Recordo de forma nebulosa, vivia sob efeito de bombas da medicina moderna, do meu vizinho de UTI. Não queria comer, tomar água, nem dar um curto tour pelo cenário de filme trash de entubados e adormecidos da UTI mas cismou que queria fumar. Uma pequena comitiva de três enfermeiras formou-se para convencê-lo da impossibilidade de tragar sua nicotina. Ele cismou até onde suas forças permitiram. Vencido, dormiu. Vício maldito, que larguei após a internação, pelo menos, por enquanto.     Nada me acalmou tanto quanto a doce morfina, que diminuía as dores lancinantes que me faziam contorcer. Com um pequeno controle remoto na mão, dosava as quantidades de morfina quando sentia dor. Confesso que desobedeci as ordens médicas de não exagerar. Apertava o botão como um desesperado e paz, muita paz artificial! Rezei, rezei bastante. Pela via das poucas orações que sei, tive papos bem próximos com ELE. Não resolve mas alivia. E também já prepara o terreno como, se acontecesse o pior, aquecimento para o papo tête-à-tête. Rezei o Evangelho Segundo o Espiritismo com minha mulher, trecho da Bíblia com minha prima ao lado da cama (falei para ela que era cedo para a extrema-unção), orei a oração de São Francisco, esperei na UTI com paúra a visita de um espírito de luz (lembro de sua cara etérea em sulfite enviado por uma amiga), fiz promessa para Nossa Senhora (já cumpri) e desejei a paz que já experimentei após uma sessão de yoga. Rezaram por mim também. E muito. Agradeço a todos. Um dos médicos me disse que se tivesse a infecção que me pegou há 20 anos, já era. Três vivas! Estamos em 2013, em pleno século 21. Sinto não ter me despedido de alguns médicos e enfermeiros que me ajudaram. Foi o receio da lembrança por parte deles da falta de mais um exame… Nem a pau. Não tive medo da morte, só pensei que era injusto morrer aos 40 quando sempre quis chegar aos 80. Tenho muito o que fazer e viver. Faltou responder a uma das perguntas do primeiro parágrafo, se tive contato com o além, não tive nenhuma experiência extra-corpórea, epifania ou revelação. E nem pretendo ter tão cedo.