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As armadilhas políticas das fake news

A decisão do governo federal de ingressar no combate à proliferação de notícias falsas (fake news) na imprensa e nas redes sociais esconde armadilhas políticas que podem causar sérios embaraços ao presidente Lula, porque é um tema complexo sobre o qual é difícil estabelecer um controle absoluto. Na verdade, o combate às fake news está mais na esfera da comunicação social e menos no âmbito do poder executivo, já que é muito arriscado criar regras rígidas para neutralizar um problema que ganhou grandes dimensões justamente porque se aproveitou da escassa experiência de nossa sociedade com o manejo da informação digitalizada. O fenômeno das notícias falsas, incompletas, distorcidas ou descontextualizadas já é bastante antigo. Convivemos com ele há mais de um século, período em que se manifestava através de jornais, revistas, noticiários radiofônicos e telejornais. As fake news passavam, no entanto, quase desapercebidas porque a comunicação jornalística pré-internet era controlada por um reduzido grupo de grandes empresas, na maioria privadas. Com a chegada das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), no final do século XX, surgiram as redes sociais virtuais que passaram a concorrer com a imprensa convencional na produção de fluxos informativos oferecidos à população. A concorrência se transformou em batalha pela sobrevivência com a migração de anunciantes para o espaço virtual, especialmente depois que a telefonia celular facilitou o acesso às grandes redes virtuais como Facebook e Google. É neste contexto que surge a polêmica sobre o combate às fake news, basicamente um argumento manobrado pela imprensa convencional para tentar construir uma imagem de credibilidade em meio ao caos informativo criado por grupos políticos extremistas no fluxo de notícias na internet. Se a imprensa estivesse eticamente comprometida com a veracidade das informações publicadas até a chegada da internet, ela já teria feito um mea culpa de todas as notícias distorcidas, enviesadas e meias verdades veiculadas no passado como parte do jogo corporativo de interesses políticos e empresariais. A ofensiva político-publicitária contra as redes sociais ganha características de uma manobra dos grandes conglomerados midiáticos interessadas em usar a bandeira do combate às fake news como arma contra a acelerada expansão financeira de impérios tecnológicos como Facebook e Google. É uma guerra de “cachorro grande” e quem se meter nela precisa ter muito claro que se o compromisso com a confiabilidade das notícias for levado até as últimas consequências pode acabar tendo que enfrentar tanto as redes como grupos empresariais como Globo, Folha e Estadão. As redes sociais virtuais estão muito longe de serem modelos de conduta em matéria de compromisso com a veracidade. Muito pelo contrário. O fato de reunirem audiências infinitamente maiores que as da imprensa convencional, de se aproveitarem da onipresença dos telefones celulares e permitirem a instantaneidade na transmissão simultânea de milhares de mensagens, fez com que Facebook, Youtube, Twitter, Instagram e Whatsapp se tornassem as plataformas preferenciais dos terroristas e extremistas online. Casos como o da Lava Jato, bem como as campanhas eleitorais de Jair Bolsonaro e Donald Trump, acabaram se tornando paradigmas do uso de notícias falsas com fins político-eleitorais. Discurso sofisticado O esforço para combater as fake news é urgente e necessário mas ele precisa levar em conta o contexto social-econômico-político em que estamos inseridos, as especificidades tecnológicas dos fluxos virtuais de notícias e os recursos de que dispomos para alcançar o objetivo. A primeira constatação contextual é a inviabilidade de combater problemas digitais com ferramentas analógicas. Não vai funcionar ou servirá apenas para enganar a opinião pública. No espaço físico dos jornais, rádio e TVs há responsáveis, endereços e condutas localizados e identificáveis. No chamado ciberespaço, tudo isto é muito difuso, mutável e complexo. Levamos décadas para produzir leis, códigos, regulamentos e normas tentando disciplinar a atividade noticiosa da imprensa, sem eliminar completamente a incidência de notícias falsas ou distorcidas na imprensa convencional. As empresas construíram um sofisticado discurso para adequar o jornalismo ao ambiente comercial na produção e veiculação de informações. Mais do que isto, as mídias formataram audiências que, sem juízo crítico, incorporaram vários itens deste discurso aos seus valores individuais no trato com a informação. De repente, tudo isto muda com a avalanche informativa gerada pela internet e por inovações tecnológicas como telefones celulares, computadores, bancos de dados e, mais recentemente, com a robotização e inteligência artificial. Criou-se um espaço sem regras e sem valores consolidados. O lento e complexo sistema de produção de leis e regulamentos não consegue acompanhar o ritmo frenético das inovações tecnológicas. Muitas leis se tornaram obsoletas e ineficazes antes mesmo de serem aprovadas. E mais do que tudo, começa a ficar claro que a criação de normas vai depender mais das pessoas do que dos tribunais, parlamentos ou governos. Isto fica claro quando se analisa o trabalho das centenas de projetos de checagem de informações, um louvável esforço para tentar limitar a proliferação das fake news por meio da sua desconstrução. É humanamente impossível checar todas os dados e fatos publicados numa edição normal de jornais impressos. É viável detectar as mentiras mais grosseiras, mas o enviesamento, descontextualização e as meias verdades exigem muito mais tempo e conhecimento para serem identificadas. Além disso, a experiência tem mostrado que o espaço editorial dedicado à publicação do resultado de checagens é muito inferior ao dedicado à publicação de notícias gerais. O resultado é que a checagem de fatos e dados, também conhecida pelo jargão inglês fact checking, acaba servindo mais para marketing do jornal ou revista do que para tranquilizar ou orientar o leitor. Assim, o ingresso do governo no combate às fake news precisa levar em conta todo este arsenal de dificuldades capazes de criar decepções, contrariedades e acusações numa questão que, no final das contas, tem mais chances de ser resolvida pelas pessoas e comunidades do que por decretos e leis. Em vez de buscar a normatização do problema, o governo talvez tenha mais possibilidades de êxito se apostar em campanhas públicas de formação de consciências e de incentivo ao surgimento de novos valores e comportamentos no trato da notícia. Lidar com a informação e a notícia não é algo que você prática baseado em manuais ou regras. Cada informação ou notícia está relacionada

O papel da imprensa no esvaziamento das bolhas extremistas

  Ao invés de apontar um vencedor consensual, o resultado das eleições presidenciais acabou por escancarar a formação de bolhas extremistas. Tais bolhas constituem um enorme desafio não apenas para o presidente eleito, mas também para a imprensa, o jornalismo e os canais de comunicação, por onde flui a maior parte das informações que alimentam a polarização político-ideológica no país. Os veículos de comunicação, profissionais autônomos e os influenciadores digitais (1) são protagonistas neste processo de fracionamento da sociedade brasileira. Cabe a eles a responsabilidade de fazer a filtragem das informações que ampliarão ou diminuirão o sectarismo político e a xenofobia social dos grupos que se recusam a aceitar a vitória do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se de uma situação inédita para a imprensa e para os profissionais, pois a realidade política que emergiu do segundo turno das eleições presidenciais aponta no sentido de uma maior preocupação social com as causas e consequências do surgimento das bolhas extremistas do que com o noticiário factual convencional. Em última análise, o jornalismo e a imprensa estão diante do agravamento do dilema entre seguir a velha regra da isenção ou assumir a necessidade de neutralizar a polarização político-ideológica. Não é uma escolha simples porque mexe com comportamentos, normas e valores vigentes há décadas na profissão. A reação extremista à vitória de Lula desorientou a maior parte dos jornais brasileiros e acelerou a necessidade da mudança de estratégias editoriais. Surgiu uma situação em que a defesa da democracia deixou de ser retórica para assumir um caráter concreto, ou seja, garantir o respeito ao resultado de uma votação popular e a crítica à formação de bolhas golpistas. Ficou também claro que as fake news não são apenas um erro pontual a ser corrigido pelos institutos de checagem, mas um instrumento político central na estratégia dos movimentos de extrema direita, pois é através delas que se consolidam a unidade interna e o voluntarismo das bolhas extremistas. A avalanche informativa e as redes sociais virtuais aumentaram de tal forma o fluxo de notícias que as pessoas acabaram confusas diante de tanta informação, ficando quase impossível eliminar as fake news. A insegurança e incerteza sobre a autenticidade das notícias levaram os extremistas de direita à formação de grupos ideologicamente homogêneos, dentro dos quais as pessoas recebem o mesmo tipo de informação, não importa se verdadeira ou falsa. Foi criado o ambiente ideal para a disseminação em massa de fake news, o que alimentou o fenômeno de radicalização descrito em detalhes pelo professor norte-americano Cass Sunstein (ex-assessor do presidente Barack Obama), no livro Going to Extremes, (publicado em 2009, sem tradução no Brasil). Estamos presenciando uma situação nova em matéria de ressaca pós-eleitoral. Tradicionalmente, os vencedores costumavam exibir orgulhosamente sua opção eleitoral em camisetas e adesivos, mas o que assistimos hoje é um protagonismo dos derrotados, principalmente através de bandeiras nacionais em carros e da profusão de roupas nas cores verde e amarela. Há claramente uma posição desafiadora e uma recusa em aceitar a derrota, mesmo que esta posição busque se auto justificar usando fatos e dados absolutamente inverídicos. Não importa a credibilidade e sim a repetição incessante da mentira, até que ela passe a ser reproduzida sem questionamentos. A radicalização e polarização ideológicas já estão transbordando o âmbito partidário para atingir as relações humanas, como mostram as multiplicações de vídeos e postagens na internet de pessoas hostilizadas ou discriminadas por integrantes dos grupos extremistas de direita. O fenômeno é mais intenso na região sul do país, especialmente em Santa Catarina e Paraná. A imprensa e o jornalismo não podem tratar estes casos de forma burocrática, porque posturas tolerantes ou supostamente isentas contribuem para incentivar ainda mais o extremismo de direita. (1) Imprensa e jornalismo são conceitos distintos. A imprensa é o negócio de disseminar e vender notícias. Jornalismo é a profissão responsável pela produção de notícias. Influenciadores são indivíduos, em sua maioria sem formação técnica jornalística, que divulgam e comentam fatos, dados e eventos pela internet. O ecossistema informativo nacional no governo Lula A imprensa ainda não sabe lidar com a mentira em campanhas eleitorais Jornalismo e imprensa não são sinônimos

A imprensa ainda não sabe lidar com a mentira em campanhas eleitorais

O episódio Damares Alves envolvendo supostas violências sexuais contra crianças na ilha de Marajó mostrou como o jornalismo e a imprensa brasileira como um todo estão desnorteados diante da normalização da mentira como ferramenta eleitoral. As declarações da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos se mostraram tão fantasticamente inverossímeis que a maior parte do público leitor de jornais não se preocupou com a credibilidade da notícia passando a dar mais atenção às reais intenções de Damares. Ficou claro que a pastora evangélica, dublê de militante política, pretendia gerar pânico entre eleitores indecisos às vésperas do segundo turno da votação para presidente da República. A leviandade deliberada com que políticos de extrema direita passaram a incorporar mentiras ao seu discurso eleitoral coloca a imprensa diante de um complicado dilema profissional: ignorar a falsificação, distorção e omissão de informações para evitar que seus promotores atinjam os objetivos pretendidos; ou promover a checagem de todas as notícias sob suspeita, um processo lento, complexo e capaz de gerar novas polêmicas eleitorais. Infelizmente, poucos veículos de comunicação fizeram esta escolha de forma clara porque foram condicionados pela velha regra de que é preciso ouvir os dois lados para demonstrar imparcialidade. Uma isenção que perde sua razão de ser quando a mentira é transformada em ferramenta eleitoral. Nestas circunstâncias, quando o uso de fatos, dados e declarações inverídicas se torna normal em disputas políticas, o jornalismo não pode ser neutro porque isto contraria sua missão fundamental que é a de levar aos cidadãos informações que os ajudem a evitar escolhas equivocadas. A regra da imprensa de ouvir os dois lados é válida quando a divergência de opiniões e posicionamentos ocorre em questões complexas onde a diversidade de percepções é um fator importante para o esclarecimento do público. Quando a divergência envolve um fato, dado ou afirmação notoriamente falsa ou mentirosa a preocupação com a veracidade é muito mais importante do que a imparcialidade por conta de possíveis consequências irremediáveis. Logo, a imprensa não deveria dar espaço ao mentiroso, ou mentirosa, para promover algo que vai causar dano ao conjunto da sociedade. Um desafio enorme O jornalismo sempre tratou a mentira como uma exceção que deve ser recriminada e desconstruída através da verificação de confiabilidade dos dados e fatos sob suspeita. Mas quando a falsificação, distorção e descontextualização são transformados em rotina por um candidato, a checagem de todas as mentiras fica virtualmente impossível por conta do tempo e da exatidão exigidos na verificação. Tome-se o exemplo dos debates entre candidatos presidenciais. O ritmo e o volume de informações que, em tese, deveriam ser conferidas, implicaria a interrupção do debate quase a cada minuto, sem contar o tempo consumido na checagem dos dados apresentados. Mas não é só isto. A normalização da mentira em períodos eleitorais muda a natureza das narrativas políticas. O jornalismo ainda está apegado a uma abordagem analítica dos fatos, dados e eventos mencionados em pronunciamentos e entrevistas dos candidatos. Desapareceu o constrangimento de usar falsidades no discurso eleitoral porque o mais importante é como elas influem na percepção das pessoas, principalmente as menos informadas ou as mais contaminadas pelo passionalismo e xenofobia. Por isto, os candidatos de extrema direita deixaram de ter qualquer escrúpulo em mentir porque o que importa não é a confiabilidade do que é dito ou escrito, mas sim como o eleitor vai incorporar a mentira à sua visão de mundo e sua decisão de voto. Trata-se de uma realidade profissional ainda pouco explorada pelo jornalismo porque o extremismo de direita, como protagonista eleitoral significativo, também é um fenômeno novo. Pela natureza antidemocrática deste movimento político, não são aplicáveis as regras criadas pelo jornalismo condicionadas pelo modelo democrático. Os profissionais e pesquisadores do jornalismo não têm assim alternativa senão partir do estudo da realidade concreta, para descobrir como e porque a mentira consegue contaminar tanta gente. Só com estes dados será possível começar a pensar em estratégias editoriais baseadas na realidade e não em concepções herdadas de outro contexto político. (ver artigo As Vacilações do Jornalismo na cobertura das Ameaças à Democracia ) A opção pela pesquisa do fenômeno do crescimento da extrema direita em várias partes do mundo é defendida enfaticamente por Margareth Sullivan, ex-ombudsman do The New York Times e hoje colunista do The Washington Post. Ela diz que é essencial se preocupar mais com a contextualização mais ampla possível das declarações e promessas de candidatos, especialmente os de extrema direita, do que com a pressa em publicar a notícia. O papel da imprensa no esvaziamento das bolhas extremistas Eleições: por que vencem as mentiras (fake news)? Jornalismo eleitoral: mais do que só notícias Dois toques sobre a eleição no Brasil

Jornalismo eleitoral: mais do que só notícias

A previsível avalanche de notícias falsas e o fenômeno das “narrativas” marcam o início de uma campanha eleitoral que deve obrigar o jornalismo a uma difícil escolha e até influenciar o futuro da profissão. Trata-se da opção entre desconstruir a agenda eleitoral para que o público descubra o que não está sendo dito e mostrado; ou afogar o eleitorado num mar de notícias, impossibilitando as pessoas de identificar o que é falso, irrelevante ou fora de contexto. São duas questões complexas que vão exigir abordagens diferentes dos profissionais e não profissionais do jornalismo (1). O primeiro desafio é o volume de material a ser analisado por repórteres, editores e comentaristas. É inevitável que a quantidade de fake news espalhadas pelos diferentes candidatos e partidos supere a capacidade das organizações verificadoras existentes de checar todo o material veiculado tanto pela imprensa (2) como pelas redes sociais. O segundo desafio está ligado ao crescente uso das chamadas “narrativas”, formatos textuais ou visuais através dos quais os candidatos e políticos manipulam dados, fatos e eventos de forma a tentar dar credibilidade a suas propostas e posicionamentos eleitorais. Nas narrativas, predominam o uso de meias verdades e de conteúdos fora de contexto. As vítimas do lixo fake A impossibilidade material de checar a veracidade de todas as notícias publicadas durante a campanha eleitoral abre a possibilidade para muito lixo informativo chegar, sem verificação, até o público. As fake news são a ferramenta mais usada por ativistas e políticos de extrema direita, aqui e no resto do mundo, para confundir a opinião pública e ampliar a desconfiança das pessoas em relação à imprensa. Os grandes conglomerados midiáticos entraram na mira dos ultraconservadores por conta dos vínculos entre a grande imprensa e o establishment liberal-democrático, dominante na maior parte dos países ocidentais. Trata-se de um confronto basicamente entre duas visões de mundo, mas as grandes vítimas são a informação e as pessoas que precisam dela para sobreviver. Tudo isto ocorre num contexto em que, segundo o IVC (Instituto Verificador de Circulação), o total de assinantes dos 10 maiores jornais brasileiros caiu 57% nos últimos cinco anos (3). Ainda segundo o IVC, nenhum dos dez jornais mostrou uma tiragem média diária superior a 80 mil exemplares, o que assinala um brutal contraste com os saudáveis índices de 300 mil exemplares impressos, de publicações como a Folha de São Paulo e O Globo, há menos de 10 anos. Os dados mostram uma irreversível erosão da confiança do público no outrora influente “quarto poder”, o que aumenta a responsabilidade do jornalismo, como função social, na geração de fluxos noticiosos que preencham o vácuo que está sendo criado pela crise na grande imprensa e pela caótica agenda das redes sociais. A narrativa das urnas A realidade construída pelos candidatos para justificar seus projetos, ações e ideias é bem mais difícil de ser desmontada porque exigirá de repórteres, editores e comentaristas uma engenharia reversa dos dados mencionados na “narrativa”. Ou seja, identificar a confiabilidade e a forma como o material foi organizado pelo “narrador”. A análise vai exigir também que o profissional investigue os porquês da narrativa, seus objetivos e métodos, para que o eleitor possa perceber como estão tentando influenciar o seu voto. Nestas circunstâncias, o jornalismo provavelmente terá que recorrer a outras ferramentas além das incluídas nos manuais de redação. Terá, por exemplo, que recorrer aos instrumentos de investigação social desenvolvidos pela sociologia e a antropologia, duas disciplinas que na conjuntura atual podem ser extremamente úteis para o exercício da função social do jornalismo. Um caso exemplar de “narrativa” política é o uso da expressão “liberdade de expressão” para justificar posições de extremistas de direita contrárias à ciência e às normas institucionais do país. A liberdade de expressão é um conceito complexo, mas foi simplificado e ressignificado para embasar campanhas contra a vacinação, defesa do terraplanismo ou exclusão de homossexuais e lésbicas. Outro exemplo é a “narrativa” da desconfiança nas urnas eletrônicas, um discurso baseado em dados falsos ou inexistentes para justificar um eventual pedido de anulação das apurações. A combinação dos efeitos previsíveis das fake news e da desinformação gerada pelas “narrativas” sugere a hipótese de que talvez os profissionais do jornalismo devam se preocupar mais com os prováveis efeitos da saturação noticiosa durante a campanha do que com a frenética concorrência entre veículos para saber quem publica as manchetes mais impactantes. O jornalismo lento no tsunami eleitoral Uma alternativa possível para evitar os riscos de um tsunami informativo na campanha eleitoral deste ano é o jornalismo tentar frear a intensidade do fluxo de informação, priorizando o foco na qualidade e confiabilidade das notícias em vez de contribuir para que o acúmulo de material eleitoral aumente a desorientação do público e, consequentemente, amplie a desconfiança das pessoas nos produtores de informações. É uma alternativa que contraria a rotina e as regras tradicionais da imprensa brasileira, tradicionalmente empenhada em publicar o máximo possível de notícias. Mas a avalanche informativa acabou superando a capacidade das pessoas de processar as informações recebidas e transformá-las em conhecimento. Estamos vivendo novos tempos e, consequentemente, uma nova realidade onde os parâmetros são diferentes. Quando a informação era escassa por conta de limitações tecnológicas, era natural a preocupação em oferecer o máximo possível de notícias. Hoje, ocorre o contrário. A superoferta informativa gerada pela internet dificulta a compreensão do significado, importância e confiabilidade de notícias. E se o jornalismo tem sua razão de ser no apoio à tomada de decisões pelo público, a profissão precisa se adaptar a esta nova circunstância. — (1) Por não profissionais, entendemos pessoas sem formação técnica ou acadêmica em jornalismo, mas que produzem e publicam notícias em blogs, páginas web e redes sociais. É o caso dos influenciadores e blogueiros independentes que, junto dos profissionais, passaram a ser classificados como informadores por alguns especialistas em comunicação pública. (2) Consideramos que jornalismo e imprensa não são sinônimos. O jornalismo é a função de produzir notícias. Imprensa é o conjunto de empresas, com e sem fins lucrativos, que vendem espaços publicitários usando o interesse das pessoas por notícias. O jornalismo tem

Extrema direita deseja a tolerância ao intolerável nas redes

O presidente Jair Bolsonaro tenta se esquivar da moderação de conteúdo na Internet com o frágil argumento da “liberdade de expressão”  Ferramenta pedestre nos corredores do poder, a mentira foi alçada à política de Estado pelo governo Bolsonaro. No último dia 24, o presidente Jair Bolsonaro teve a sua live semanal, transmitida na quinta-feira dia 21, removida das plataformas, Youtube, Facebook e Instagram. No vídeo, o presidente associava a vacina contra a covid- 19 à aids. Durante a transmissão ao vivo, Bolsonaro cita que poderia ter problemas com o vídeo, caso ele viesse a ler a suposta matéria que trazia a informação. Em março deste ano, ele já havia tido um vídeo banido por promover aglomerações, mas essa foi a primeira vez que sua tradicional live foi excluída. A moderação de conteúdo e o marco civil da internet, lei que expande a constituição para o âmbito digital relatório, vêm sendo criticados nas redes sociais. Segundo o relatório “Armadilhas e caminhos na regulação da moderação de conteúdo” realizado pelo Internetlab, esse descontentamento veio após haver interferências em publicações de líderes políticos. O presidente e seus apoiadores têm apertado na tecla da “liberdade individual”, motivados pelo inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga manifestações antidemocráticas. A máquina governamental se utiliza de disseminadores de discurso de ódio e notícias falsas como a blogueira Bárbara Destefani, que teve seu canal do Youtube desmonetizado, ou seja, ela não receberá pagamentos pelos seus vídeos publicados na plataforma.  Além dela, outros dois nomes são conhecidos nas redes sociais, o de Oswaldo Eustáquio e Sara Winter, que foram presos por ordem do STF por propagarem discursos de ódio criminosos em plataformas digitais como Twitter, Facebook, Instagram e Youtube. Criado em 2013, o aplicativo Telegram ganhou notoriedade após a reportagem do The Intercept, quando foi divulgado mensagens trocadas entre o procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sérgio Moro. A matéria revelou como a força tarefa da Operação Lava Jato e o ex-juiz atuaram juntos de forma antiética e delituosa para incriminar o ex-presidente Lula.    Atualmente a plataforma digital tem sido abrigo de fake news de políticos e influenciadores da extrema direita, visto que uma das funções do aplicativo é a possibilidade de comunicação com grandes grupos. Daniel Silveira, Carla Zambelli, Eduardo e Flávio Bolsonaro são alguns dos políticos que entraram na plataforma no último ano para fugir da moderação de conteúdo. O Telegram conta com canais e grupos em sua estrutura. Os canais têm capacidade ilimitada de participantes e com um link o usuário pode acessá-lo. Já os grupos têm uma quantidade máxima de integrantes, podendo comportar até 200 mil usuários. Já o concorrente Whatsapp permite apenas 256 pessoas por grupo.  O canal de Jair Bolsonaro já atingiu a marca de um milhão de inscritos no Telegram, enquanto o de Lula, apesar de ocupar o segundo lugar na plataforma entre os presidenciáveis, conta com apenas 35 mil. Isso coloca as duas personalidades em posições expressivamente distintas, e com poder de alcance desigual.  Sem responder aos contatos da justiça há mais de um ano e não tendo representação no Brasil, o Telegram tem se candidatado como o grande vilão entre as plataformas para as eleições de 2022. Considerando seu caráter permissivo em relação aos usuários da plataforma e por possibilitar mega disparos de mensagens,  Após inúmeras denúncias, o Whatsapp, aplicativo que pertence ao grupo Facebook, desenvolveu mecanismos para tentar diminuir o fluxo de notícias falsas entre os usuários. A plataforma limitou o número de contatos na hora de encaminhar uma mensagem, diminuindo assim sua possibilidade de alcance, além disso dispõe da opção de denunciar um contato caso ele te envie fake news.  Corridas eleitorais estão sendo impactadas pela falta de moderação de conteúdos, uma delas foi a brasileira em 2018, outra a norte-americana no ano passado quando o candidato Donald Trump alegou repetidamente sobre uma suposta fraude caso ele não fosse reeleito, isso fez com que sua conta no Twitter fosse suspensa por tempo indeterminado. O controle de postagens foi insuficiente e o clima de desconfiança com eleição se intensificou entre os apoiadores de Trump após a eleição de Joe Biden quando o republicano voltou à carga com acusações sem provas, o que precipitou a invasão do Capitólio em 6 de janeiro deste ano, o que ocasionou a morte de cinco pessoas.  Por outro lado, existem casos arbitrários na moderação de conteúdo, um dos casos mais comuns envolve o Facebook. A plataforma digital classifica publicações sobre a conscientização do câncer de mama como nudez e tem suspendido diversos conteúdos sobre o tema todos os anos, mesmo com as constantes críticas dos usuários. Enquanto isso, o aplicativo mantém centenas de perfis de soft porn e nudez explícita. Fatos como esse demonstram que as plataformas devem melhorar seu sistema de avaliação visando maior precisão na hora de banir conteúdos. As redes sociais precisam ser um ambiente de liberdade de expressão, mas não de liberdade de mentir compulsivamente, como faz o presidente.  De acordo com um levantamento feito pela agência de checagem “Aos Fatos”, Bolsonaro dava 50,5 declarações falsas ou enganosas por mês até março de 2020. Esse número triplicou após o início da pandemia, atingindo a média obscena de 170,9 mentiras por mês atualmente.  Fonte: Relatório “Armadilhas e caminhos na regulação da moderação de conteúdo” realizado pelo Internetlab Evento debate a estratégia da extrema direita nas redes sociais A batalha pelo controle do fluxo de notícias Os muitos dilemas da imprensa no governo Bolsonaro Pandemia negacionista Nossos dilemas diante da desinformação eleitoral Quem é o inimigo?

Bolsonarismo em xeque

O CONVERSA AO VIVO ZONA CURVA do dia 9 de setembro (quinta) contou com a participação da pesquisadora, professora e antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Letícia Cesarino. Ela conversou com Fernando do Valle (editor  Zonacurva) e Luís Lopes (editor Vishows) sobre bolsonarismo, a maneira pela qual esse grupo utiliza as redes digitais pra propagar seu discurso extremista e os descaminhos do atual cenário político brasileiro. Cesarino comentou a intensificação do caos político causado pelas manifestações antidemocráticas do presidente no dia 7 de setembro. Segundo ela, a convocação foi uma forma de manter a base aliada de Bolsonaro mobilizada. A antropóloga analisou também a ambiguidade, sempre presente nos discursos do presidente, e as estratégias escolhidas para se manter no poder. Segundo nossa entrevistada, foi previsível a suposta mudança de postura de Bolsonaro depois da pressão contra os discursos de viés inconstitucional que Bolsonaro proferiu tanto em Brasília como em São Paulo. Após ser criticado por lideranças políticas sobre a explícita ameaça golpista de Bolsonaro, o site do governo publicou uma nota, assinada pelo presidente e, pasmem, escrita pelo ex-presidente Michel Temer afirmando nunca ter tido “nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes” e que a culpa foi “do calor do momento”. Após quase 3 anos de governo, Cesarino explicou que as estratégias da direita bolsonarista estão ficando ultrapassadas, o que pode diminuir sua eficácia: “As táticas começam a ficar batidas e repetitivas. O próprio ecossistema deles já demonstra sinais de exaustão, observada no comportamento dos próprios seguidores”, afirmou a pesquisadora que já analisou grupos de whatsapp e telegram de “fãs” do presidente. A antropóloga também considera que a base aliada de Bolsonaro se apoia em narrativas superficiais na tentativa de desvincular os graves problemas socioeconômicos de qualquer responsabilidade do mandatário do governo central. Na tática falsamente antissistema do presidente, a culpa é sempre dos outros, podem ser comunistas, governadores, petistas e até do próprio povo. Com isso, o presidente, que pouco trabalha, segue levando no bico seus seguidores. Acerca do desenvolvimento das relações sociais e políticas através das redes, a antropóloga projeta uma rearticulação de posições radicalizadas no futuro, já que a extinção da mediação é pouco provável. “De um lado, temos o especialista tecnocrático que não está disposto a ouvir os leigos. No outro extremo, existe o populismo sem freios. Acredito que, com o tempo, haverá um meio termo nisso”, disse ela. Cesarino explicou ainda que a estruturação das redes sociais avança constantemente de forma sistemática para aumentar o tempo de tela do usuário e sua passividade, o que diminui a capacidade de tecer pensamento crítico. Segundo ela, grupos bolsonaristas se adequam facilmente a esse sistema midiático e o usam a seu favor. “Hoje, as notícias falsas fazem parte da estrutura da internet”, afirmou. Ao utilizar métodos imediatistas e simplistas, que apelam ao lado emocional das pessoas, os bolsonaristas recortam a realidade a seu bel prazer nas redes para torná-la favorável ao governo. “Eles ignoram a existência de estatística e amostragem, isso não funciona naquele ambiente”, completa. Com colaboração de Carolina Raciunas. https://urutaurpg.com.br/siteluis/extrema-direita-nas-redes/ O universo paralelo do fanatismo bolsonarista Mil dias de destruição e mortes

A estratégia de dúvida no noticiário político: uma armadilha para o jornalismo

O jornalismo vive um complexo dilema profissional e corporativo ao enfrentar a chamada “estratégia da dúvida informativa”, um recurso usado com frequência cada vez maior por grupos políticos em luta pelo poder na sociedade contemporânea. A dimensão do desafio pode parecer exagerada, mas ele atinge em cheio a credibilidade das mídias, logo o coração do jornalismo. Espalhar incertezas é uma velha tática de políticos, mas desde o surgimento da internet ela se transformou numa sofisticada estratégia destinada a minar a credibilidade de personalidades e instituições visando enfraquecê-las politicamente. A disseminação estruturada da dúvida é uma ameaça ao jornalismo, porque coloca a atividade noticiosa diante de uma difícil escolha: funcionar como cúmplice ao ignorar a natureza da estratégia ou desmistificá-la, correndo o risco de ser acusada de proselitismo. É importante ressaltar que duvidar pode ser também uma atitude positiva e faz parte da cultura acadêmica porque está associada à preocupação com a investigação científica. Neste sentido, a dúvida é um comportamento que visa ir além das aparências ou convenções, e não um recurso para encobrir objetivos politicamente inconfessáveis. A estratégia da dúvida visa desacreditar pessoas e organizações através da desorientação do público por meio da disseminação de versões contraditórias. O manual dos promotores da desestabilização informativa da opinião pública já tem um roteiro padrão. Começa, em geral, por uma denúncia com alguma veracidade, feita por uma personalidade com alguma respeitabilidade e que depois é investigada por uma instituição também dotada de alguma credibilidade. Verdade disfarçada Foi o que aconteceu nos recentes casos do mensalão e da lava-jato. A suspeita inicial é posteriormente complementada por outras denúncias baseadas em meias verdades que fornecem mais munição para os investigadores, ampliando gradativamente a intensidade da suspeita, até que ela ganhe ares de verdade pelo acúmulo de dúvidas. A destruição de reputações segue este mesmo roteiro. A frequência e intensidade com que vem sendo usada a estratégia da dúvida como arma na luta pelo poder acabou contribuindo para a sua própria desmistificação, na medida em que especialistas em opinião pública, juristas e cientistas políticos passaram a estudar o fenômeno. As pesquisas contribuíram para neutralizar a principal característica da dúvida: o seu disfarce como verdade, gerando dúvidas sobre a dúvida. O esquema funciona eficientemente enquanto as pessoas ignoram que estão sendo contaminadas pelo vírus da dúvida ao serem expostas a meias verdades ou fatos descontextualizados. A partir do momento em que o público-alvo se dá conta de que nem tudo o que é divulgado constitui fatos e dados inquestionáveis, a estratégia da dúvida como arma política deixa de ser eficiente e pode até se tornar contraproducente. É aí que entra o papel da imprensa. Quando jornais, revistas, noticiários radiofônicos e telejornais transmitem conteúdos supostamente noticiosos, gerados pelos promotores da dúvida para leitores, ouvintes e telespectadores, a imprensa age como cúmplice da desorientação informativa, de forma consciente ou involuntária. Boa parte da imprensa brasileira acabou desempenhando este papel quando deu ampla cobertura a denúncias e investigações nos casos do Mensalão e da Lava Jato, que posteriormente acabaram se mostrando infundadas e ilegais. Mudança de cultura nas redações Mas a nova realidade surgida a partir dos estudos e pesquisas feitas por acadêmicos e jornalistas, colocou a imprensa diante da necessidade de checar a veracidade e o contexto de todas as suspeitas lançadas contra personalidades, pessoas comuns, instituições e órgãos governamentais que, de alguma forma, possam contribuir para disseminar dúvidas e desorientação informativa. Caso isto deixe de ser feito, a imprensa contribuirá para a desinformação ao induzir as pessoas ao erro, atentando contra a regra básica de todos os manuais de redação: o compromisso inarredável com o rigor informativo. Só que, ao fazer isto, o jornalismo e a imprensa provavelmente serão acusados de parcialidade e proselitismo pelos protagonistas da luta pelo poder político. Faz parte da lógica destes grupos dividir a sociedade de forma simplista entre simpatizantes e desafetos. Isto implica uma mudança na cultura das redações, nos procedimentos, regras e valores do jornalismo que deixará de ser um mero observador da realidade para assumir uma atitude proativa ao mostrar como determinados dados, fatos ou eventos estão sendo transmitidos de forma distorcida, intencional ou inadvertidamente. A checagem de fatos para identificar mentiras ou meias verdades já é parte deste processo de revisão dos comportamentos profissionais antes associados à isenção e não comprometimento com partes em conflito. A checagem é justificada pela necessidade de evitar a desinformação e as notícias falsas com o objetivo de preservar a credibilidade da imprensa. Só que a estratégia da dúvida levou o processo de manipulação política para um patamar mais elevado. O que passa a ser importante não é apenas se algo é verdade ou mentira, mas a forma como os fatos, dados e eventos estão sendo moldados, disseminados e percebidos pelo público. A imprensa e o jornalismo não devem assumir e nem podem ser vistos como juízes da interpretação dos conteúdos noticiosos. São parte importante e obrigatória no suprimento de material informativo para que as pessoas tomem suas decisões a partir de percepções o mais próximo possível da realidade. Os jornalistas são um componente essencial no esforço para neutralizar a epidemia da dúvida no noticiário político, porque são os profissionais mais preparados, por conta de sua experiência e formação, para lidar com a informação. É função da imprensa e do jornalismo desmistificar o uso da dúvida como arma política. Publicado originalmente na página Medium de Carlos Castilho. O jornalismo no salve-se quem puder da desinformação em escala planetária Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo? Os muitos dilemas da imprensa no governo Bolsonaro

O discurso jornalístico e as fake news

Desde 2016, a discussão sobre as notícias falsas (fake news) monopolizou, em todo mundo, a atenção dos profissionais da imprensa e do público, mas agora começamos a nos dar conta que elas não são o maior problema enfrentado pelo jornalismo. As fake news são apenas um componente do chamado discurso, ou narrativa jornalística, que é o principal responsável pela formação da opinião pública. O discurso pode ser convincente mesmo baseado em notícias falsas, desde que o autor, ou autores, o construa usando fatos, dados, ideias e eventos organizados e publicados, tendo em vista dar a eles um significado especifico. Isto é inevitável em qualquer discurso jornalístico, pois ele é sempre construído e moldado conforme a experiência, cultura, conhecimento e condicionamentos empregatícios do profissional da comunicação. A identificação dos significados embutidos numa notícia, reportagem ou comentário é uma das principais funções do jornalismo investigativo, cuja missão é desconstruir discursos para verificar também a exatidão, relevância, confiabilidade e pertinência dos dados, fatos, eventos e ideias incluídos na narrativa. Acontece que o jornalismo contemporâneo está muito mais preocupado em flagrar mentiras e meias verdades do que na analise do discurso. A denúncia de falsidades tem um efeito muito mais impactante do que a identificação de significados embutidos numa notícia, em geral um trabalho mais teórico e sujeito a interpretações polêmicas. A checagem de fatos, dados e eventos é uma obrigação do jornalismo, mas ela por si só não garante a credibilidade do discurso. É necessária uma integração entre as duas atividades, fato que não vem acontecendo na nossa cobertura diária, especialmente em setores como política, economia e até nos esportes. O discurso jornalístico que permite identificar o contexto dos fatos mencionados e consequentemente o tipo de mensagem (significado) que é transmitido ao leitor, ouvinte ou telespectador. Sem uma definição de contexto, um mesmo fato, dado ou evento pode ter diferentes leituras, dependendo o nível intelectual, grau de informação e experiências prévias de quem acessa um texto, áudio ou imagem. As modernas teorias da cognição garantem que não há fato ou dado puro, isento de significado, porque eles são sempre percebidos pelos nossos sentidos humanos e ao serem incorporados à nossa memoria são condicionados pelas informações nela armazenadas. Assim, a identificação de significados passa a ser tão importante quanto a verificação da veracidade de um dado ou evento. O fenômeno das notícias falsas aumentou a importância da desconstrução de um discurso adotado por autoridades governamentais diante da complexidade crescente de quase todos os temas incluídos na agenda pública. A desconstrução de um discurso é bem mais complicada, demorada e sujeita a muitas controvérsias, razão pela qual a maioria dos jornais confere à atividade uma baixa prioridade para evitar conflitos com autoridades públicas e privadas, deixando o público sem condições de entender uma notícia ou reportagem. Goebells revisitado As estratégias de comunicação adotadas por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro enfatizam o discurso e minimizam a preocupação com a veracidade de fatos, dados e ideias. Para ambos e também para seus seguidores, as notícias falsas são toleráveis desde que se enquadrem nos objetivos pretendidos. Atitude que passou a ser tratada nos meios acadêmicos pelo neologismo de “pós-verdade”, ou seja, uma “verdade” condicionada por interesses e não pela realidade. Na política da chamada era da pós-verdade, os fins ( discurso e objetivos políticos) justificam os meios (fake news). O discurso público produzido por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo, usa intensamente as meias verdades e as fake news, repetidas dezenas de vezes através dos meios de comunicação sem a devida contextualização, até que leitores, ouvintes e telespectadores passem a considera-las “normais”. É a versão moderna da famosa frase de Joseph Goebells, o marqueteiro mor de Adolf Hitler, para quem “uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade”. O público dos meios de comunicação vai aos poucos se dando conta de que a chamada “guerra da informação”, não envolve mais apenas um confronto entre o verdadeiro e o falso em matéria de notícias, mas uma batalha pela supremacia no discurso, na narrativa. É claro que a denúncia do uso de dados, fatos e eventos falsificados pode desacreditar um discurso, mas como este, geralmente envolve elementos muito complexos, é improvável que as pessoas comuns consigam separar, sozinhas, o joio do trigo informativo. Com isto muitos leitores, ouvintes e telespectadores assumem um ceticismo diante do noticiário da imprensa e acabam buscando outras fontes de informação. A migração dos desiludidos é o preço pago por jornais, revistas, telejornais e páginas jornalísticas na web por falhar na identificação dos interesses ocultos na fala de políticos, empresários e formadores de opinião. https://medium.com/@ccastilho/o-discurso-jorna%C3%ADstico-e-as-fake-news-e5de06ab61fa   Eleições: por que vencem as mentiras (fake news)?

Da mídia de consenso à de conflito

Fake news -Definha o interesse por notícias impressas ou televisivas. Pesquisas revelam que o público prefere notícias online. Nos séculos 19 e 20, o modo de pensar da sociedade tendia a ser moldado pelos grandes meios de comunicação: mídia impressa, rádio e TV. Tudo indica que termina aquela era. Trump se elegeu atacando a grande mídia dos EUA. Só a Fox o apoiou. Os principais veículos da mídia britânica se opuseram ao Brexit. Ainda assim a maioria dos eleitores votou a favor dele. Bolsonaro fez campanha presidencial quase ausente da grande mídia. Criticou os principais veículos, e ainda assim se elegeu. O que acontece de novo? O novo são as redes digitais, as novas tecnologias ao alcance da mão. Elas deslocam a notícia dos grandes veículos para computadores e smartphones. Têm o mérito de democratizar a informação, rompendo a barreira ideológica que evitava opiniões contrárias à orientação editorial do veículo. Contudo, pulverizam a notícia. O que é manchete na TV não merece destaque na comunicação interpersonalizada na internet. O receptor corre o risco de perder ou não adquirir critérios de valoração das notícias. Pode ser que lhe seja mais importante ficar ciente de que seu colega tem nova namorada do que inteirado do golpe de Estado no país vizinho ou da nova lei que regula o trânsito em seu bairro. Essa informação individualizada, embora mais cômoda, prêt-à-porter, tende a evitar o contraditório. Cada interessado se isola no interior de sua tribo no Whatsapp, no Twitter, no Facebook, no Instagram, no YouTube, no Telegram, nos serviços de mensagens no Google e do Periscope. Não há interação dialógica. Não interessa o que dizem as tribos vizinhas, potenciais inimigas. O que transmitem não merece crédito. A única verdade é a que circula na tribo com a qual o internauta se identifica. Ainda que essa “verdade” seja fake news, mentira deslavada, farsa. Apenas um dialeto faz sentido para o internauta. Desprovido de visão conjuntural, ele se agarra ao que propagam seus parceiros como quem acolhe oráculos divinos. Querer mudar-lhe o foco é como se alguém tentasse convencer os astecas contemporâneos de Cortés de que o sol haveria de despontar no horizonte ainda que eles não despertassem de madrugada para celebrar os ritos capazes de acendê-lo. Com certeza não ousariam correr o risco de ver o dia inundado de escuridão. Eis a privatização da notícia. Essa seletividade individualizada faz com que o internauta se encerre com a sua tribo na fortaleza virtual dotada de agressivas armas de defesa e ataque. Se a versão emitida pela tribo inimiga chegar a ele, será imediatamente repelida, deletada ou respondida por uma bateria de impropérios e ofensas. É dever de sua tribo disseminar em larga escala a única verdade admissível, ainda que careça de fundamento, como a teoria do terraplanismo. Os efeitos dessa atomização das comunicações virtuais são deletérios: perda da visão de conjunto; descrédito dos métodos científicos; indiferença ao conhecimento historicamente acumulado; e, sobretudo, total desprezo por princípios éticos. Qualquer um que se expresse em linguagem que não coincida com a da tribo merece ser atacado, injuriado, difamado e ridicularizado. O que fazer frente a essa nova situação? Desconectar-se? Ora, isso seria bancar a tartaruga que recolhe a cabeça para dentro do casco e, assim, se julga invisível. A saída deve ser ética. O que implica tolerância e não revidar no mesmo tom. Como sugere Jesus, “não atirar pérolas aos porcos” (Mateus 7,6). Deixar que chafurdem na lama sem, no entanto, ofendê-los. A vida é muito curta para que o tempo seja gasto em guerras virtuais. Quanto a mim, prefiro ignorar ataques e atuar propositivamente. Sobretudo, não trocar a sociabilidade real pela conflituosidade virtual. E muito menos livros por memes e zaps que nada acrescentam à minha cultura e à minha espiritualidade. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. As “fake news” não são um fenômeno passageiro O leitor não é um penduricalho dos blogs

As armadilhas ocultas na narrativa jornalística online

Narrativa jornalística – Nós ainda não estamos plenamente conscientes e acostumados com uma mudança que altera radicalmente nossa forma de lidar com notícias. Hoje, as narrativas, ou o que muitos chamam de versões, são mais importantes do que os fatos quando se trata de condicionar percepções e opiniões alheias. Narrativa é a forma pela qual os fatos são organizados e apresentados, seguindo uma ordem de importância estabelecida por narrador ou jornalista, no caso da imprensa. Isto implica, é claro, uma dose variável de subjetividade porque todos nós vemos o mundo de acordo com nossa bagagem cultural, conhecimento, experiência, interesses e inserção na realidade. A subjetividade sempre esteve presente no jornalismo porque ele é feito por seres humanos, mas o discurso das empresas jornalísticas criou a ideia de que as notícias são isentas e objetivas. O que assistimos hoje é uma supervalorização das narrativas porque é por meio delas que os veículos de comunicação procuram diferenciar-se uns dos outros para aumentar receitas com publicidade e assinaturas. Até a era da internet, o fluxo de dados, fatos e eventos noticiáveis era muito reduzido, o que permitia notícias exclusivas, os “furos” no jargão jornalístico. Hoje, os “furos” são raros por conta da avalanche informativa nas redes sociais e blogs, o que deu margem a que as narrativas se tornassem ferramentas de condicionamento da opinião pública. O condicionamento envolve uma operação ampla, complexa e demorada porque o interessado na formação ou desconstrução de opiniões precisa impedir que o público alvo da ação perceba que está recebendo informações distorcidas, parciais ou totalmente falsas. Também é essencial a produção de um fluxo constante e massivo de fatos noticiosos que, ao se sobreporem uns aos outros, ocupam os espaços nobres na mídia, praticamente anulando a credibilidade de narrativas divergentes. A falta de informações sobre como as notícias são produzidas e difundidas faz com que o público ainda confunda fatos e narrativas, acreditando que só os primeiros são publicados. O uso de narrativas disfarçadas de fatos está substituindo o recurso à força bruta, como intervenções militares em crise nacionais e internacionais, porque os custos financeiros e humanos são muito menores. O caso da invasão do Iraque é um exemplo claro onde foi usada intensivamente a narrativa baseada no suposto arsenal de armas de destruição em massa em poder de Saddam Hussein, fato que nunca foi comprovado. O polêmico “nihilismo informativo” A nova estratégia para conquistar corações e mentes colocou em evidência os especialistas em manipulação de fatos na forma de narrativas com algum tipo de viés político, social, financeiro ou ideológico. É o que ficou conhecido como políticas de desinformação baseadas em notícias falsas (fake news), meias verdades e em narrativas distorcidas para atingir uma determinada finalidade. Estes especialistas raramente aparecem para evitar que a narrativa, criada por eles, seja associada a contratos comerciais, capazes de comprometer a credibilidade do projeto. A manipulação de fatos na construção de narrativas com algum tipo de viés torna ainda mais complicada nossa tarefa de identificar o que é digno ou não de crédito. Missão esta que é ainda mais complexa se levarmos em conta que vivemos num mundo cada vez mais midiatizado, onde somos obrigados a consumir não apenas a informação, mas também a informação sobre a informação. Questionar dados, fatos e eventos não é mais um luxo intelectual de professores e pesquisadores, mas uma necessidade permanente de cada indivíduo. Aqui está o nosso principal dilema contemporâneo em matéria de informação. Já não dá mais para terceirizar integralmente o questionamento para a imprensa, como era feito até agora, porque ela não tem condições de contextualizar todas as notícias que circulam diariamente em todas as plataformas informativas na internet. Também não é mais possível o que muitos classificam como “ nihilismo noticioso”, ou seja, o desligamento total do noticiário diário. Tudo bem, alguém pode decidir tornar-se um ermitão informativo, mas isto significa também alienar-se socialmente. A digitalização da informação e a internet nos condenaram, portanto, a ter que dedicar parte do nosso tempo a refletir sobre o bombardeio de notícias a que estamos sujeitos 24 horas do dia, sete dias por semana. Publicado originalmente na página MEDIUM de Carlos Castilho. O jornalismo é uma forma de ativismo? Em busca do jornalismo perdido O jornalismo no salve-se quem puder da desinformação em escala planetária Como as novas tecnologias e as notícias falsas impactam o jornalismo