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FARC paz

FARC, um novo partido na Colômbia

por Elaine Tavares Foram 53 anos de luta armada nas montanhas colombianas, a guerrilha mais antiga da América Latina. Primeiro, chegou como defesa mesmo das famílias e das comunidades num país devastado pelo caos político iniciado com o assassinato de Jorge Gaitán. Um exército popular nascido em 1964, em resposta à violência desatada pelo governo sobre a região de Marquetalia. Um grupo que, atuando de maneira mais sistemática, foi então se articulando como uma proposta de libertação, marxista. Mais de meio século enfrentando o poder de um estado militarizado e também de paramilitares e narcotraficantes. A Colômbia e seu caldeirão, recheado de mortes, desaparições, desalojamento de gente. Um país marcado pela proximidade política com os Estados Unidos, parceiro na luta contra qualquer possibilidade de vitória de uma proposta socialista. Era preciso varrer do mapa as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, e muito foi investido nisso. Mas, apesar de toda a ajuda dos EUA e da ação permanente do paramilitarismo, o mercenarismo e o narcotráfico, as FARCs resistiram. E ao longo de quase meio século nunca faltou gente para engrossar as fileiras do sonho da liberdade e da soberania. Só que mais de 50 anos de guerra civil também conseguiram esgotar a população. Era tempo demais vivendo sob o medo e o terror de estado. Por isso, a proposta de um cessar fogo e de consolidação da paz começou a ganhar músculo. Várias tentativas já tinham sido feitas, todas infrutíferas, mas dessa vez, com a mediação de Cuba, as partes se entenderam. Não sem conflito. A ponto de, depois de assinada a paz, no final de 2016, um plebiscito realizado no país decidiu pelo não ao acordo, fruto de campanha massiva das forças mais reacionárias, comandadas por Álvaro Uribe, ex-presidente com ligações próximas ao narcotráfico. O fato é que, acertados alguns interesses, o acordo vingou e as armas da guerrilha começaram a ser entregues. A paz começou a tecer seus primeiros arranjos numa caminhada que não será curta nem fácil. E uma dessas tessituras foi a possibilidade de transformar toda aquela organização popular nascida na guerrilha em uma instituição partidária capaz de atuar na vida cotidiana, às claras, amarrando os laços construídos por todo o país. Assim, foi-se costurando a organização do Primeiro Congresso das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo. E o congresso aconteceu agora em agosto de 2017, na capital do país, reunindo mais de 1.200 delegados de praticamente todas as regiões da Colômbia. Vieram os combatentes das montanhas e os milicianos da cidade. Vieram ainda delegações de movimentos revolucionários de mais de 20 países. Foram cinco dias de acaloradas discussões e ao fim, ali estava um novo partido político, uma organização fora da clandestinidade, pronta para disputar o jogo político na Colômbia da paz. Assim, o que eram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) se transmudaram em Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC). Um nome e tanto, capaz de plasmar na mesma sigla os desejos de meio século: um país no qual os bens comuns pudessem ser desfrutados por todos e não apenas por uma elite. A voz da montanha pode soar sem medo, e da junção dos caminhos da luta armada com a paz, pode nascer a rosa vermelha que, a partir de agora, anunciará a luta da FARC partidária, civil. Já na abertura do histórico congresso, a fala de Rodrigo Londoño, o Timochenko, então dirigente máximo das FARC, deixava claro que entrar para a legalidade não significava abandonar os pressupostos que levaram tantos colombianos às armas: “não renunciamos aos nossos fundamentos ideológicos, nem ao projeto de sociedade. Seguiremos sendo revolucionários. Nossa missão fundamental será ganhar as massas, sem as quais o adversário fará o que quiser conosco”. Durante os cinco dias de congresso os delegados construíram o estatuto e o programa do partido, elegendo também a primeira diretoria, com 111 membros. Dentro desse grupo ficaram incluídos os antigos componentes do Estado Maior das FARCs, bem como aqueles que representarão o partido como senadores e deputados, cinco em cada casa, conforme garantiu o acordo. Para aqueles que durante anos viveram no terror da guerra, agora está colocada a possibilidade de construir uma alternativa que expresse a construção do mundo sonhado, de justiça, de terras repartidas, de cuidado com as gentes, de democracia real. Um grande desafio, como afirma o relatório do congresso fundacional: “Pedimos perdão às vítimas do conflito, fizemos ações de reparação e continuaremos a fazê-lo. Acreditamos que a reconciliação é possível, ainda num contexto político de polarização instigada por aqueles que a repudiam, sim, persistimos na necessidade de estabelecer diálogos e outras ações que permitam compreender que a construção da paz é um propósito coletivo. A paz tem que ver com todos: com os partidos políticos, com os governantes, com os diversos ramos do sector público, com os ex-contendores, com os empresários e os povos indígenas, os grandes meios de comunicação e as comunidades afro, com os habitantes das cidades e os camponeses, com os jovens e as mulheres, enfim com as pessoas comuns, com o povo. Chegar ao coração da população também significa compreender como, de facto, já o fizemos, que a solução dos problemas lancinantes da população não se encontra, exclusivamente, na implementação dos acordos e que estes, se bem que representam um indiscutível avanço democrático, têm que dialogar com o conjunto de iniciativas e propostas surgidas das mais variadas expressões organizativas políticas e sociais do campo popular”.  E esse caminho para o coração dos colombianos já se mostrou fecundo no grande ato de lançamento do partido que aconteceu ao final do congresso, na Praça Bolívar, em Bogotá, ao qual compareceram mais de 15 mil pessoas, para ouvir as decisões do encontro, cantar, dançar e compartilhar do ritual sagrado oferecido pelos povos originários, no simbólico cachimbo da paz. Agora, a luta seguirá por outras vias. Existem ainda muitas pontas soltas para serem amarradas. Afinal, é uma mudança radical a que milhares de pessoas estão vivendo, saindo da guerrilha para a vida civil. A rotina na montanha não encontra similaridade

FARCs entregam armas e seguem no caminho da paz

por Elaine Tavares Essa semana os jornais do mundo inteiro deram a notícia de que, por fim, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARCs, entregaram as armas, e que isso consolida o início do processo de paz no país. Isso é uma meia verdade. Toda a estrutura de violência gerada pelo estado e pelos chamados paramilitares segue viva e sem que isso também se modifique, a paz ainda é um sonho que está distante. Para entender o momento atual da Colômbia é preciso voltar na história. Depois das guerras de independência quem assumiu o mando no então recém-criado estado colombiano foi a oligarquia agrária. Os indígenas, os camponeses e os trabalhadores ficaram de fora do poder, apesar de terem sido maioria nas fileiras das lutas de libertação. A esses sobrou sustentar a riqueza de algumas poucas famílias que se apropriaram da terra. Assim, ao longo dos anos, foram se revezando no comando do estado os liberais e os conservadores. Em 1948, um liberal, Jorge Gaitán, apareceu com propostas mais ousadas, alargando o espaço entre o poder e as massas trabalhadoras. Surgiu aí uma esperança para os colombianos. Ele tornou-se candidato à presidência e tudo indicava que seria eleito. Por conta disso, a saída encontrada pelos poderosos foi o assassinato,  e ele tombou crivado de balas.  A morte de Gaitán provocou um grande levante popular, conhecido como o “bogotaço”, mas, com o tempo, as forças conservadoras aplastaram a reação e instaurou-se no país um tempo de grande convulsão. Os colombianos não confiavam no estado e o estado perseguia e assassinava. A única alternativa que sobrou às gentes foi a auto-organização. E foi nesse tempo que começaram a surgir os grupos armados de defesa das comunidades e das famílias. Nos anos de 1960 esses grupos que nasceram para defesa familiar e comunitária já estavam bem mais organizados e alguns passaram a se mostrar como guerrilha armada, com um claro pensamento socialista. Já não eram mais grupos apenas para a defesa, mas para a libertação nacional. A intenção era derrotar a oligarquia e construir uma nação soberana, com a participação ativa dos trabalhadores e dos camponeses. Aí estão localizadas as FARCs, bem como outros grupos de libertação. Então, as FARCs não são grupos terroristas, nem facções do narcotráfico. São grupos de luta por uma vida boa para os colombianos. O fato é que o estado oligárquico colombiano conseguiu se manter firme diante da luta por libertação. Mas não conseguiu isso sozinho. Teve a grande ajuda dos Estados Unidos, que desde sempre apoiou os governantes para evitar que as guerrilhas socialistas vencessem. Por isso a Colômbia virou um estado militarizado, não apenas por conta da estratégia governamental interna, mas por uma questão de geopolítica. Não é sem razão que lá está o maior número de bases militares estadunidenses. O argumento para isso foi o combate ao narcotráfico, mas, na verdade, sempre foi por conta das guerrilhas. Tanto que os narcotraficantes de verdade chegam a chefiar a nação, como é o caso de Álvaro Uribe, que já foi presidente e hoje é senador. Assim, para derrotar a ameaça marxista que representavam os grupos de guerrilha, a Colômbia entregou sua soberania aos Estados Unidos, criou grupos paramilitares e se especializou na violência institucionalizada. Tanto que por conta dessa violência, a sua população é uma população em eterna migração interna, sistematicamente premida pela guerra que se faz sem quartel dentro das fronteiras do estado. Agora, mediado pela ação do governo cubano, o estado colombiano e as FARCs acertaram um acordo de paz, que envolve muito mais do que entregar as armas. Há discussão sobre formas de reparação com as vítimas da luta, a constituição de uma polícia rural integrada pelos guerrilheiros, e a construção de uma forma de destruir o paramilitarismo. São muitos passos que precisam ser dados para que o povo colombiano possa realmente sentir o gosto da paz. Os movimentos de trabalhadores e de populações inteiras que explodiram no mês de junho, com dois “paros” cívicos, nos quais a população inteira de Chocó e da cidade de Buenaventura realizaram protestos por mais de 15 dias seguidos, mostram também que agora, sem o “fantasma” da guerrilha, que sempre ocupava o primeiro plano das preocupações governamentais, os problemas estruturais do país começarão a aparecer com mais força. Buenaventura, por exemplo, uma cidade de 400 mil habitantes fez greve por que não tem água nas torneiras da maioria das gentes, que amargam um desemprego de 60%. Isso não é pouca coisa. No campo os problemas serão ainda mais complexos pois será necessário reacomodar milhões de famílias que foram desalojadas por conta dos conflitos militares. Ousará Juan Manuel Santos fazer uma reforma agrária? Difícil de isso acontecer. Mas as comunidades lutarão. A entrega das armas que se viu na televisão é em parte simbólica. Nem tudo será entregue. Os guerrilheiros sabem que confiar no governo de peito aberto pode ser um erro fatal. Isso já aconteceu nos anos de 1980 quando um grupo guerrilheiro aceitou entregar as armas e depois, com o passar dos meses, seus integrantes foram assassinados, um a um. Essa memória está viva. Os tempos são outros, mas a oligarquia é a mesma. É por isso que Iván Márquez, um dos negociadores por parte das FARC tem dito em alto e bom som: “As armas são para nós uma simbologia de resistência e nós vamos colocá-las em um lugar distante do uso. Mas seguirão sendo nossas”. O caminho para a paz na Colômbia está apenas começando a ser trilhado. Muita coisa ainda precisa acontecer. Os acordos foram assinados, mas ainda há muita gente para quem a paz é um estorvo. Justamente porque ela coloca em questão as demais chagas do país. Só o povo organizado e consciente é que poderá fazer avançar a proposta de uma nova Colômbia. Colômbia diz não à paz Colômbia e o difícil caminho para a paz Colômbia e a silenciada guerra contra o povo