Zona Curva

Festa Literária de Paraty

Flip 2014: agora até escritor vira celebridade

FLIP – Em entrevista ao programa Roda Viva, em 1989, Millôr Fernandes, homenageado da FLIP (Festa Literária de Paraty) deste ano, fuzilou: ”eu acho a popularidade uma coisa extremamente vulgar, posso parecer elitista, mas eu não quero ser reconhecido na rua”. Segundo ele, a fama transformava a pessoa em “uma entidade vaga que o cara viu e achou bonitinho”. Assista a entrevista.  Na Festa Literária de Paraty (FLIP), cada fala dos escritores, por mais genial ou idiota, reverbera e trilha um longo caminho: plateia de 850 pessoas com ingressos esgotados há tempos, um telão atrás da tenda principal e outro na praça principal da cidade, trechos das conversas e áudios integrais no youtube, cobertura da grande mídia e a divulgação espontânea ou não pelas redes sociais. Durante os cinco dias da festa, entre os dias 30 de julho e 3 de agosto, o incauto até pode acreditar que a literatura saiu dos círculos acadêmicos e literários e contaminou no bom sentido milhões de pessoas e batalhões de leitores black blocs saquearão a livraria mais próxima. Vaga ilusão. Longe de mim a defesa do escritor incompreendido em sua torre de marfim em busca da frase certa, bolando o romance que irá mudar o mundo, mas tenho dúvidas de que a espetacularização da figura do escritor democratize o acesso aos livros. Estive na FLIP e vi o escritor sendo valorizado e isso é legal. A grande maioria deles sacrifica sua vida na tentativa de viver de seu trabalho e vamos combinar que ninguém escreve para ser ignorado e viver no obscurantismo. Aqui (e sempre) cabe outra frase de Millôr: “não ter vaidade é a maior de todas”. 20 frases de Millôr Fernandes Evento literário mais importante do país, a FLIP fez uma homenagem justa a uma figura ímpar e genial como Millôr e contou, neste ano, com 47 autores de 15 países, que trataram de vários temas urgentes como a situação de abandono dos índios, os 50 anos da ditadura militar, o domínio da indústria alimentícia sobre nossos hábitos, depressão psicológica, os novos caminhos do jornalismo e alguns outros. Antes do início do festival em Paraty, seu curador, Paulo Werneck deu o tom: “procurei ver como todos [os escritores] falavam em público. Hoje, o escritor é uma figura que tem um aspecto de performance”. No final da feira, Werneck comparou a FLIP a um festival de rock e disse que “a gente conseguiu oferecer muitos ângulos, portas de entrada para o público”. Adoro festivais de rock e é certo que a literatura conta com concorrência pesada hoje em dia em mais de uma centena de canais a cabo, na internet, DVDS, Netflix, e inclusive dos festivais de rock, porém, o escritor nunca conseguirá concorrer, por exemplo, com os vlogueiros moderninhos que produzem vídeos de conteúdo irrelevante e assistidos por milhares de internautas. Sem purismos, cada um no seu quadrado. Hoje parece tão importante quanto o talento do escritor suas habilidades de palestrante, ator ou showman. E se o espetáculo do escriba em um palco contém frases de efeito, é divertido e espirituoso, seus livros estariam fadados a ocupar as posições mais altas das listas dos mais vendidos. Em entrevista ao genial humorista e ativista Rafucko, o escritor João Paulo Cuenca vai na contramão de Werneck: “existe uma espetacularização da figura do escritor, eles ganham hoje alguns trocados para falar sobre sua literatura para pessoas que não vão consumir mais do que aquilo, isso é bom, mas gostaria que as pessoas lessem os livros, me incomoda perceber que eu estou sendo consumido não pelo que escrevo, mas por uma performance”. Assista ao programa do Rafucko com Cuenca. Basta ler algumas de suas crônicas ou poemas, para sacar que talento não falta a Gregório Duvivier, integrante da trupe Porta dos Fundos. Os vídeos do Porta, como é conhecido pelos fãs do canal da web, já totalizaram um bilhão de visualizações. Mesmo com dois livros publicados e possuidor de um canudo em Letras pela PUC do Rio de Janeiro, o perspicaz Duvivier ironizou sua presença anunciada com destaque na FLIP: “é humilhante falar depois da Eliane [Brum], ela está salvando populações ribeirinhas e eu tenho um canal de humor no Youtube”. Ponto pra ele. Ele participou da mesa literária ao lado do poeta Charles Peixoto e da jornalista e escritora Eliane Brum. Poucas horas depois, Duvivier já estava no Instituto Moreira Salles (IMS) conversando sobre um de seus romances preferidos, O Estrangeiro, de Albert Camus. E a jornalista descolada estava curiosa em saber quando ele iria escrever o seu romance. Com menos de 30 anos, Duvivier respondeu meio sem jeito que ainda não teve uma ideia que valesse a empreitada. Tão jovens quanto Duvivier, a neozelandesa Eleanor Catton, de 28 anos, e o suíço Joël Dicker, de 29 anos, venceram importantes prêmios literários. O romance A verdade sobre o caso Harry Quebert deu ao suíço o Prix de l`Académie e o catatau de quase 900 páginas Os Luminares de Canton lhe garantiu o Man Booker Prize. Ambos dividiram uma mesa literária e foram chamados pelo mediador José Luiz Passos de “dois autores vergonhosamente jovens e bem-sucedidos”. “Celebridade é um idiota qualquer que aparece na TV” Millôr Fernandes Enquanto os bem-sucedidos habitam a Tenda dos Autores, aspirantes tentam seu lugar ao sol na pequena casa do Clube de Autores, site que viabiliza a publicação de livros de escritores iniciantes. Na quinta, dia 31 de julho, um autor anônimo de Macapá fazia digressões sobre a antiga Macapá, aquela que não existe mais, de bairros charmosos e arquitetura preservada para meia dúzia de pessoas. Não passei da página 10. Na penúltima noite da FLIP, a sensação era de que uma nuvem de gafanhotos dizimou a livraria oficial da festa, a da Travessa. As enormes pilhas de livros dos autores do evento no primeiro dia da festa foram reduzidas a montinhos de meia dúzia de exemplares. Quem sabe, o público da FLIP leia os livros adquiridos e, com isso, cometam uma indelicadeza com o mestre Millôr tornando obsoleta

#vemprarua invade a Flip 2013

Com corruptela de Diderot*, o filósofo Vladimir Safatle empolgou o público: “nós queremos que o último mensaleiro petista seja enforcado nas tripas do último mensaleiro tucano”. Em mesa da Flip 2013, Safatle lembra que a luta contra a corrupção não se encaixa como bandeira conservadora e que vivemos crise de representação, tanto na política como na imprensa. O debate atrasou e foi iniciado com o comunicado de que mais uma estrela da Flip, o poeta palestino-egípcio Tamim Al-Barghouti não viria para participar do evento no domingo (dia 7). Apesar do furacão político que seu país atravessa, Barghouti, conhecido como o poeta da primavera árabe, conseguiu chegar a Londres mas perdeu seu passaporte e ficou impossibilitado de comparecer à festa de Paraty. A mesa Da arquibancada à passeata, espetáculo e utopia na noite de sábado (dia 6 de julho) na 11ª Flip (Festa Literária de Paraty) foi criada nos últimos dias após o cancelamento da palestra de outra estrela da Flip, o escritor francês Michel Houellebecq. O evento reuniu o filósofo Vladimir Safatle, o psicanalista Tales Ab’Saber e o escritor inglês T.J. Clark e foi mediado pelo jornalista Mario Sergio Conti. Ab’Saber lembrou do ‘começo de tudo’, os integrantes do MPL, o Movimento do Passe Livre. “Eu passava na Doutor Arnaldo (avenida paulistana) e aqueles meninos sempre estavam lá protestando contra os aumentos de ônibus, desde 2005”. Segundo ele, o MPL trabalha no “presente absoluto e não respondem nem ao PSTU e ao PSOL e, muito menos, ao lulismo-petismo”. Com dois metros de altura e pinta de Zizek paulistano, Ab’Saber encara temas espinhosos. Escreveu dois livros ousados: o primeiro analisa a cultura clubber, A música do tempo infinito, e o segundo, Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Editora Hedra), em que investiga aspectos da construção da persona carismática do ex-presidente Lula. “O lulismo tem um componente de erotismo primitivo”, disse. O crítico e historiador britânico T.J. Clark iniciou sua participação ressaltando que não estava preparado para analisar a situação brasileira. “Foi o tempo em que intelectuais como Negri e Sartre sentiam-se no direito de avaliar a situação de outros países”. Para ele, o Estado alimenta-se desses momentos falsos de unidade nacional como a Copa do Mundo. “As catedrais do futebol estão cada vez maiores mas algo está acontecendo e nem o Pelé conseguirá espantar essa raiva”. * Citação original do filósofo francês Diderot : “O mundo somente será livre no dia em que o último padre for enforcado nas tripas do último general”. Acorda, Paraty na Flip 2013

Acorda, Paraty na Flip 2013

No dia 6 de julho (sábado), penúltimo dia da Flip (Festa Literária de Paraty), o povo da pequena cidade fluminense acordou. O movimento Acorda, Paraty mobilizou cerca de 200 moradores e interditou a ponte sobre o rio Perequê-açu, que liga a festa ao centro histórico, por 30 minutos. Os paratyenses aproveitaram a presença da mídia grande por lá como os jornalões O Globo e a Folha de São Paulo, e a TV Globo, além de milhares de turistas que lotam a cidade, para mostrar sua indignação contra a precariedade dos serviços públicos. As faixas do protesto pediam melhorias, principalmente, na segurança, educação e transporte público. Segundo os moradores, somente nesse ano, foram 31 assassinatos na cidade de 35 mil habitantes. Durante a manifestação, foi lida uma pauta com diversas reivindicações como a efetivação de professores aprovados em concurso e a preservação de áreas de mangue. Segundo moradores da cidade entrevistados pelo Zonacurva, há constantes faltas de luz e água na cidade e o saneamento básico é precário. “Após trabalhar nos restaurantes e pousadas, voltamos para a Ilha das Cobras e o Campinho (bairros periféricos da cidade) em que a realidade é outra, por lá, só tem violência e tristeza”, afirmou manifestante que não quis se identificar. Mais fotos do protesto:

Rapapé burguês na Flip 2013

O escritor e professor Dênis de Moraes deu o tom da mesa Graciliano Ramos: ficha política, na 11ª Flip, na sexta. Ao imaginar o que diria o velho Graça sobre toda a pompa e circunstância oferecida a ele nessa edição da principal festa literária do país, Moraes disparou: “Graciliano diria que isso aqui não passa de um rapapé burguês”. A mesa contou também com o sociólogo da USP, Sérgio Miceli, o brasilianista Randal Johnson da Universidade da Califórnia (UCLA) e a mediação de José Luiz Passos. Autor da biografia O Velho Graça, além de livros sobre o teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha (Cúmplice da Paixão) e do cartunista Henfil (Rebelde do Traço), Moraes lembrou da insubordinação e do ativismo do romancista alagoano. “Graciliano nos mostrou a importância da militância intelectual, com certeza, apoiaria as atuais manifestações populares”. Johnson recordou do impacto e da dificuldade ao ler o romance Vidas Secas aos 20 anos. “Foi o primeiro livro em português que li, somente na primeira página, já tinha recorrido ao dicionário umas 30 vezes”. O professor norte-americano afirmou que, ao término da leitura, sentiu-se recompensado pelo esforço. Ele disse que conta o episódio aos seus alunos para exemplificar o tortuoso porém gratificante caminho pela obra do escritor. As falas mais burocráticas de Johnson e Miceli foram entremeadas pela paixão de Moraes pela obra de Graciliano. Moraes ressaltou a pequena revolução que Graça realizou na pequena cidade de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, quando prefeito. “Graciliano nos chama para a coerência ética e na luta contra o clientelismo da política brasileira”, arrancando aplausos do público.

Disneylândia para intelectuais na Flip 2013

O exemplar de Eduardo Galeano descansa solitário na pilha errada na Livraria da Travessa da Flip, a mais cheia que conheci na vida. Duas de óculos o encontram e o disputam. Risadinhas amarelas. “Nossa, aqui é a nossa Disneylândia”. O Galeano volta para a prateleira. Ao contrário dos personagens de Disney, a lista daqui é multifacetada: artistas de rua, intelectuais de barba, hare krishnas em cantoria, séquito para leitora de poesia em barco no rio Perequê-açu (segundo o aviso, o passeio dura 50 minutos), descolados de plantão, vendedores de cordel caracterizados, e mais, como diz o outro, o público em geral. Na 11ª Flip (Festa Literaria de Paraty), engana-se quem acredita que os escritores e professores de blasers escuros são os protagonistas. A professora de português anônima está em todas as partes. A intelectual caminha cambaleante em dupla ou em pequenos grupos com sede por novidades pelas pedras de Paraty. A idealizadora da Flip, a inglesa Liz Calder foi ‘gênia’ ao bolar a festa. Não existe cenário melhor para o deleite intelectual do que Paraty. Em devaneio, imagino dois dos melhores escritores brasucas vivos, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, abandonando a toca e circulando tranquilamente pelas mesas do evento. Devaneio ainda mais: ambos papeando por horas com a longa fila de jornalistas. Muita coisa acontece por aqui ao mesmo tempo. Ao entrar para ver as fotos do fotógrafo americano apaixonado pelo Brasil, David Drew Zingg, dos bambas da MPB, fui surpreendido com as divagações certeiras do escritor Bráulio Tavares sobre Lugar Público, obra de 1965 do maldito José Agrippino de Paula para a Rádio Batuta do IMS (Instituto Moreira Salles). Lembrei do lançamento pela Editora Papagaio há mais de 10 anos do livro mais conhecido de Agrippino, Panamérica, publicado originalmente em 1967, e que fez a cabeça da galera da Tropicália. Para arrematar o primeiro dia, vi cena que seria inspiradora para as trips literárias de Agrippino: cercado por duas dezenas de ‘fãs’, o popstar Gilberto Gil incólume em seu carro com insufilm nos vidros fechados, guiado por motorista-segurança em terno preto. A menina de uniforme escolar e bloquinho na mão vibrou: “eu vi ele, eu vi ele”.