Estação Franco da Rocha

                                                                                                         I                                                                                                                                                   (…) um jovem casal se beija                                                                                                                                                          confessam segredos que                                                                                                                                         até o final da viagem terão o valor                                                                                                                                                de um bom dia dito às pressas                                                                                                                                                                      Mikhael O. Simões   – ESTAÇÃO FRANCO DA ROCHA. Desembarque pelo lado direito do trem – disse. Sempre a mesma canção: muitos passageiros descem; sobem ainda mais. Chega a ser tragicômico falar de distanciamento social e outros cuidados quanto à pandemia em um local onde cada metro quadrado é disputado. Franco da Rocha é um entreposto comercial das periferias de São Paulo destas bandas, um grande mercado-dormitório onde o que se vende a preços baixíssimos são as horas e a força de trabalho do precariado. A estação parece um porto seco, menos quando alaga. A cidade está encrustada entre o interior e a quebrada, ambos insones. Casas, barracos, esgotos a céu aberto e as gambiarras dos fios elétricos unem-se como se fossem cartões postais que magoam as vistas. Tais realidades repelem os gostos da estúpida classe média, que, alheia, enxerga a si mesma como algo muito distinto dessa condição.     Franco da Rocha, mais uma das crateras entre mares e morros. Da janela do trem, avisto lugares que desconheço, posso ver a geografia, muito embora me escape o que nunca conhecerei por completo: a singularidade de cada ser humano. Vielas irregulares construídas numa arquitetura insalubre. Eu nasci longe daqui, num bairro onde o operariado vive sisudo de segunda a sábado para, enfim, descontar tudo o que ressente aos domingos, em lazeres que acabam num instante. Não sou da quebrada, não vim do gueto, levei poucos enquadros, todavia, sei que o subdesenvolvimento da ilha Brasilis – décima segunda (falsa) economia mundial – é algo que atravessa a mim e a muita gente. O trem fecha as portas. A composição engasga, não arranca – imita o país. Demora um pouco para que o vagão vazado recomece a andar. O trem em transe arrasta-se preguiçoso: crianças estropiadas berram; o reino dos marreteiros está de novo instaurado; e proliferam, tensas, camisetas de times rivais. Não sei se hoje é dia de jogo, não sei se hoje é dia que valha ser lembrado. Num desses relances de distração, meus olhos esbarram na adolescência à frente: um casal efebo troca carícias, segredam – será que Aquiles e Pátroclo cuidavam assim das feridas um do outro? Os meninos sentem medo, sabem que podem apanhar, sabem que a hostilidade é lei e sabem que ainda hoje serão xingados de viados, de bixinhas, de fresquinhos, mas não retrocedem no carinho. E isso é o que importa. O trem não sai. O transporte público é uma jaula. Isso sim é aglomeração. “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”, gaba-se um dos nossos hinos. Somos herdeiros de uma nação que, há menos de um século atrás, acreditava ser normal encarcerar nas mesmas celas pessoas com transtornos mentais e negros recém-alforriados que vagavam juntos a presos que cometiam crimes hediondos. Herdamos uma república, cujo Estado é a perfeita máquina de moer gente e onde o único triunfo é o da amnésia social. Juquery, palavra cujos significados contrastam porque emudecidos foram os povos tupis. Nesta quilometragem, o que a ferrovia também reverbera é a história de mais de cento e vinte anos do asilo de alienados. A Santos-Jundiahy é um legado sombrio.     A ferrovia e o rio atraíram interesses peculiares. O Hospital do Juquery já teve uma porção de nomes, mas o mais adequado seria inferno: maus