Gandhi era racista? Forçava garotas a dormir nuas com ele?

por Leandro Uchoas Há cerca de cinco anos, um texto circulou amplamente na internet. De autoria do indiano Mayukh Sen no site Broadly, e reproduzido no Brasil pelo Vice, o artigo versava sobre o principal líder da independência da Índia, Mahatma Gandhi. Como eu estudo a vida e a mensagem de Gandhi há anos, e vivi naquele país estudando seu pensamento na universidade criada por ele, Gujarat Vidyapith, muitos amigos me procuraram. Alguns, com o intuito de esclarecer se aquelas palavras de Sen eram verdadeiras. Outros, com o ousado propósito de me alertar sobre um assunto que eu estudo muito, muito mais do que eles. E outros ainda com o também equivocado propósito de apenas denunciar Mayukh Sen, que teria difamado essa espécie de santo hindu – “santidade” essa jamais reivindicada nem aceita por Gandhi. O artigo ousava apontar os erros de Gandhi. Cometia um erro, logo de saída, ao rotular o Mahatma. Também pudera – nossa sociedade, seja na Índia ou no Brasil, tem mesmo esse hábito de pescar elementos na personalidade complexa de uma pessoa e utilizar esse elemento como uma síntese dele. Nossa sociedade faz isso com as pessoas comuns e com as grandes personalidades. Rotula-se seres que, em verdade, estão em plena e diária mutação. Grande erro. O título do texto foi “Gandhi era um racista que obrigava meninas a dormir na cama com ele”. Com essas palavras, o autor indiano sintetizou a personalidade de um personagem que, sem usar uma única arma, foi o principal líder – embora jamais o único – da luta da Índia pela independência do império mais vasto territorialmente da História, o britânico. Péssima síntese, não?! Entretanto, eu não queria começar a análise do texto de Sen pelos muitos elementos dele que me causam estranhamento ou repúdio. Queria começar pelos elementos com os quais concordo no texto de Sen. Porque, embora tenha ampla admiração por Gandhi, e me considere gandhista, eu também estou profundamente interessado, assim como o autor do texto, em desconstruir imagens falsas criadas sobre o Mahatma. Gandhi era profundamente humano, e Sen anteviu que seus críticos iriam usar esse argumento, até porque é absolutamente óbvio. Por ser ele um humano como eu, como você e como Sen, ele errou muito. Porém, não conheço um personagem histórico que tenha se modificado tanto, ao longo da vida, quanto o Mahatma Gandhi. Suas ideias mudaram muito ao longo da vida. Se em algum momento ele se vestia como um lorde e exigia ser tratado como advogado, ao fim da vida ele tinha apenas duas peças de roupa, que eram somente pedaços de pano enrolados no corpo. Se na juventude ele, de fato, escreveu textos racistas, terminou a vida defendendo que os negros seriam os grandes defensores de seus ideais não-violentos. Se foi profundamente opressor com sua esposa nos primeiros anos, a alavancou depois à posição de líder da Independência, sua principal “professora” de não-violência, e com posição equivalente a dele em seus ashrams . Se foi profundo defensor do império britânico, a ponto de ir à Primeira Guerra Mundial como enfermeiro para servir a Inglaterra, como suposto “cidadão britânico”, depois se transformou no maior adversário deste mesmo império. Exatamente por isso, nos livros escritos por ele, e publicados na editora da Gujarat Vidyapith, onde estudei, há sempre a reprodução de um pequeno texto nas primeiras páginas. Neste excerto, Gandhi afirma que, caso encontrássemos duas citações dele que fossem contraditórias, ou mesmo opostas, que ficássemos com a última, porque naquela altura de sua “velhice” ele já não tinha mais nenhum receio de mudar de opinião – palavras dele. A trajetória pública de Gandhi durou quase meio século. Se rotular qualquer pessoa é uma armadilha perigosa, torna-se erro primário fazê-lo a uma personalidade assim. Convergências Por que acho interessante o artigo de Sen, apesar de relatar inverdades ou verdades deslocadas de contexto? Acho interessante porque ajuda, em certo sentido, a desconstruir a imagem mítica do Mahatma. Na Índia, e mesmo no ocidente, Gandhi é visto como uma espécie de santo, cujas palavras de sabedoria e exemplo de integridade e de vida simples deveriam servir como norte à humanidade. Acredito que há certa verdade nisso – tanto que estudo sua vida, e tento tomá-la como referência em múltiplos aspectos. Mas há contradições que precisam e devem ser desconstruídas. Até porque ele mesmo, em seu livro “Minha vida e minhas experiências com a verdade”, que é vendido como se fosse sua autobiografia, Gandhi escolhe alguns recortes biográficos para mostrar, em grande medida, suas próprias falhas (algumas delas graves). Ele mesmo, portanto, achava interessante sublinhar seus limites. Gandhi realmente teve momentos machistas? Sim, eles os teve. Profundamente machistas. Porém, fica muito claro como lutou contra essas tendências, mesmo vivendo em países tão arraigadamente machistas (até hoje), como Índia e África do Sul. Por isso, ele produziu avanços claros. Gandhi escreveu textos racistas? Sim, ele o fez, quando jovem. Mas após a profunda metamorfose que sofreu na vida, arrisco dizer que ninguém fez mais pelo combate à opressão étnica do que ele ao longo do século XX. A personalidade de Gandhi foi moldada historicamente a serviço da construção do mito de um líder perfeito? Sim, isso aconteceu. Mitificar Gandhi era interessante para políticos e historiadores. Mas ele jamais foi cúmplice dessa mitificação, esforçando-se cotidianamente para desnudar seus próprios limites. Divergências Mesmo havendo alguma convergência entre o que penso e o que escreveu Sen, é evidente que há muito mais divergência. O texto de Sen é repleto de inverdades, de verdades retiradas de contexto, e de interpretações interessadas de fatos e ideias de um outro momento histórico. Embora não conheça pessoalmente o autor, ouso acusar algumas das ideias que defende de desonestas e mal informadas. Quando chegou na África do Sul para ser advogado, recém-formado na Inglaterra, Gandhi se vestia como um integrante da elite britânica. De fato, encontra-se em seus textos dessa época citações que podem ser interpretadas como algo profundamente racista, de quem considera os negros sul-africanos uma etnia inferior. É preciso, em primeiro lugar, entender