Zona Curva

Gilberto Freyre

“Feia é a miséria”, certa vez afirmou Gilberto Freyre

por Urariano Mota Os seus livros se apoiavam em pesquisas originais, tidas até então como indignas, de receitas de cozinha aos anúncios de escravos na imprensa e fotos de álbuns de famílias senhoriais. Uma inteligência e sensibilidade de gênio a serviço do objeto que estudava. Original e mui confiante desse espírito original. Afoito, com aquela afoiteza que caracteriza os que têm a consciência do próprio valor. Casa-grande & senzala, dos livros de análise histórica surgidos no século XX, é para mim o que vai atravessar a nossa e as vindouras gerações. Tem a qualidade de ser bem escrito, e bem escrito de tal forma, que mais parece literatura, romance. Esse Freyre era um homem de extrema sensualidade, que tinha, entre outras perversões, o gosto da prosa. Não há livro científico tão bem escrito quanto Casa-Grande. Minto: talvez só A Origem dos Sonhos, de Freud.  E o seu conteúdo (supondo uma separação dura de forma e conteúdo)? Em uma época de doutrinas racistas no Brasil e no mundo (lembremos o grande Euclides da Cunha a falar de raça frágil em Os Sertões), onde sempre se disse que nós éramos sub-raça (até hoje há quem insista nisso) por força da miscigenação, Gilberto Freyre destacou o avanço da mistura de raças, e não só a mistura, Freyre ressaltou o papel do negro como agente da nossa formação cultural e de raça. Ele chega a frases lapidares, como na resposta que dá à ideia reinante de que o negro era feio: “feia é a miséria” (em que o negro vivia). Lembro — e tudo que digo aqui é de memória, sem consulta — do destaque dado por ele a alguns grupos de negros, muçulmanos, que eram alfabetizados, artesãos sofisticados, escravos de senhores de engenho analfabetos. (Isso ocorreu com mais frequência na Bahia). Notem que o livro é de 1933, e chegou a ser mandado queimar pelos padres da igreja em Pernambuco. Coisa herética, do diabo, com suas revelações vexatórias da vida sexual, promíscua nos engenhos, em que às vezes as crianças negras papavam o “rabo” dos meninos brancos. A sua orientação e influência, como uma gripe inescapável, se estendeu sobre a prosa e poesia dos nossos mais brilhantes escritores, de José Lins do Rego a Manuel Bandeira e Ascenso Ferreira. Também aos maiores pintores, como Lula Cardoso Ayres e Cícero Dias. Mas o poder da prosa de Gilberto Freyre, a beleza encantatória do que escreveu nos trechos vários em que sacrifica a ciência para não perder o ritmo de um parágrafo, esse poder e esse encanto têm que ser mortos. Um ponto nevrálgico da sua obra é que, ao lado dos avanços, reproduz também os limites do autor e da sua classe: Gilberto Freyre é filho e neto de senhores de engenho, um sujeito culto, genial, portanto “ovelha negra” em seu meio (cultura, talento e civilização sempre aguçam conflitos, em lugar de apaziguá-los), mas filho dos seus limites de tempo e de classe. Isso quer dizer: ele não vai fundo na violência e violentação sofrida pelo escravo. Ele não chega ao extremo de outro grande brasileiro, Joaquim Nabuco, que em alguns trechos de Minha Formação tornava lírica a relação entre escravos e senhores da sua infância. Mas faz, é verdade, uma defesa e ataque contraditórios, às vezes em um mesmo parágrafo, do engenho e da senzala. Em resumo: Casa-grande & senzala, o seu maior livro, em 1933 foi revolucionário. Mas o tempo e a democracia deram luz e ultrapassaram a escravidão ali narrada. Gilberto Freyre é o homem que glorifica a colonização portuguesa. E nesse caso, tão brasileiro, pela dissolução da crueza com ares de fazer graça, entre um pigarro no cachimbo e um costume bárbaro, como quem dilui a violência com uma piada. Nesse caso particular, é preciso vencer Gilberto Freyre. Vencê-lo no sentido também de uma reação à sua influência avassaladora e paralisante. Mas antes, ele deve ser muito estudado. Contraditoriamente, antes de vencê-lo, Gilberto Freyre há que ser assimilado. Para que seja superado em uma etapa necessária rumo ao lugar onde a verdade da nossa história seja soberana. E se faça um acerto de contas com o passado escravocrata, estudado por ele a partir da casa-grande, que ainda resiste. Vencê-lo como uma forma de superação necessária. E muito estudá-lo, voltando a suas luzes de escritor, de gênio. Superar é uma forma de assimilar a tradição. (Trecho do verbete Gilberto Freyre no Dicionário Amoroso do Recife)

O poeta Manuel Bandeira, por Joaquim Pedro de Andrade

  [embedyt] https://www.youtube.com/watch?v=PCzyBUthBxM[/embedyt] Em 1959, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade debutou como diretor de cinema com o curta-metragem O Poeta do Castelo, que mostra o cotidiano de seu padrinho de crisma, o poeta Manuel Bandeira. O cinemanovista Joaquim tem no currículo filmes como Macunaíma (1969) e Garrincha, alegria do povo (1962). Joaquim Pedro descreveu a experiência de filmar o poeta em texto publicado no Suplemento Literário do Diário de Notícias em abril de 1966: “Manuel Bandeira descobriu que era um bom ator. A sua risada alegre e inesperada, comemorando o primeiro take do filme O Poeta do Castelo, foi para mim a mesma e boa surpresa que desde menino eu ouvia quando menos esperava. Sou afilhado e amigo de Manuel Bandeira. Às quartas-feiras, ele vinha jantar com meu pai (Rodrigo Melo Franco de Andrade) e falava de tudo. Me lembro bem das noites em que ele se indignava, contando alguma coisa que o tivesse irritado e agitava-se impulsivo, violento, para de repente achar graça na própria fúria e na história que estava contando”. Joaquim Pedro de Andrade nasceu no Rio de Janeiro em 25 de maio de 1932 e morreu na mesma cidade em 10 de setembro de 1988. Filho de Rodrigo Mello Franco de Andrade, um dos fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Joaquim conviveu desde cedo com figuras como Bandeira, Vinicius de Moraes, Oscar Niemeyer e Carlos Drummond de Andrade, que costumavam frequentar sua casa. Joaquim Pedro iria repetir a fórmula de breve documentário em Mestre de Apipucos, também filmado em 1959, em que retrata a intimidade do sociólogo e escritor Gilberto Freyre, também amigo de seu pai. Rodeado de intelectuais de esquerda, Joaquim foi criticado pela escolha: Freyre era uma figura assumidamente conservadora.   Nossas veias ainda não cicatrizaram