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Guerra Rússia e Ucrânia 2022

Ucrânia: o jornalismo precisa fazer uma autocrítica

Nós, jornalistas, precisamos fazer uma dolorosa autocrítica. Acabamos participantes da construção de uma narrativa sobre a guerra na Ucrânia que está nos levando a uma crise mundial, cujo desfecho é uma gigantesca incógnita, onde apenas uma coisa é certa: o número de perdedores poderá ser muitíssimo maior do que o de ganhadores. Como jornalistas, selecionamos, formatamos e publicamos dados, fatos e eventos sobre a guerra na Ucrânia que influenciaram decisivamente a formação de opiniões contrárias à Rússia em boa parte do planeta. É claro que não somos responsáveis pelo que dizem e fazem Biden, Putin, Zelensky, Xi Jiiping e líderes europeus. Mas somos nós que damos ou não destaque às ações destes protagonistas do conflito, e o que publicamos leva as pessoas a darem mais ou menos importância ao que entra na agenda da imprensa. O resultado disto é que nos tornamos protagonistas da construção de uma narrativa unilateral da crise ucraniana, ignorando o dogma profissional de ouvir os dois lados de forma igualitária, sem a devida contextualização dos fatos e muitas vezes sem até mesmo checar se estamos ou não sendo inocentes úteis numa guerra de fake news. A esmagadora maioria dos jornalistas, na maior parte do mundo, não deu a devida atenção aos precedentes históricos e ao que está por trás do atual xadrez bélico/diplomático. O russo Vladimir Putin não é nenhum modelo de líder democrático. Joe Biden preside um império em declínio obcecado pela perda iminente da hegemonia mundial para a China; e Zelensky, um comediante sem experiência política, acabou manobrado tanto pela extrema direita como pela Casa Branca. Poucos profissionais deram a devida importância ao fato do ucraniano Wolodymyr Zelensky ter sido eleito presidente em 2019, com 72% dos votos propondo um acordo de paz na região de Donbass (1) . Mas a esperança de paz durou pouco porque a extrema direita ucraniana ameaçou matar Zelensky e toda sua família caso Donbass, cuja população é majoritariamente descendente de russos, se tornasse autônoma dentro de um estado federativo. Zelensky cedeu à pressão da extrema direita, o que irritou Putin e deu a Biden o pretexto para usar a Ucrânia para meter a Rússia num atoleiro militar. A imprensa mundial, inclusive a brasileira, não deu a devida importância ao fato de Joe Biden já ter dedicado mais de 60 bilhões de dólares para apoio militar a Zelensky, justo num momento em que a inflação interna nos EUA bate recorde e a economia norte-americana dá sinais de enfraquecimento. A jogada de Biden é clara: penalizar o público doméstico, na aposta de que um eventual revés russo na Ucrânia contribua para reduzir o ímpeto econômico chinês, este sim o grande alvo da Casa Branca. Só que o extremista Donald Trump já está faturando eleitoralmente o descontentamento da classe média norte-americana. O G-7 (as sete nações mais ricas do mundo) anunciou esta semana um empréstimo de 31 bilhões de dólares (30 bilhões de euros) para a reconstrução da Ucrânia e mais 520 milhões de dólares em armas e equipamento militar. Os governos membros da OTAN estão gastando fortunas para alimentar uma guerra, ignorando o fato de que ela agrava uma crise econômica iniciada antes de pandemia da Covid 19. É um absurdo financiar um conflito sabendo que a reconstrução da Ucrânia vai custar ainda mais caro do que a guerra. O mundo poderia evitar o caos econômico e a destruição da Ucrânia se os países da OTAN tivessem feito uma conta básica de custo-benefício da guerra. Bastaria Zelensky renunciar ao ingresso na Aliança Militar do Ocidente, controlar a extrema direita interna, e respeitar o acordo de Minsk (2014) que deu autonomia parcial à região de Donbass. Putin perderia o pretexto para a invasão, seis milhões de ucranianos não precisariam emigrar e a economia mundial teria um ambiente um pouco mais tranquilo para enfrentar a recessão causada pela Covid 19. Nada disto que mostrei acima é inédito pois já foi dito por muitos comentaristas políticos internacionais e acadêmicos. Só que a maioria da imprensa continua presa a uma narrativa do bem contra o mal, do humanitário Biden e do valoroso Zelensky contra o diabólico Putin e o sinistro Xi Jiping. Ignoramos a complexidade dos fatos e processos, para nos refugiarmos no simplismo que nos livra da necessidade de ter que pensar e contrariar estratégias de informação desenvolvidas tanto em Washington, como em Kiev e Moscou. Não há inocentes nesta guerra, mas a imprensa, contrariando seus dogmas, já consagrou um bandido e um mocinho. Todas estas afirmações estão baseadas em fatos e depoimentos que não reproduzo aqui porque acabaria escrevendo um livro. Mas valem o início de um debate. O propósito deste texto é chamar a atenção para a falta de um equilíbrio informativo na cobertura da guerra na Ucrânia. Não se trata apenas de ser ou parecer isento, mas de ter consciência de que as pessoas precisam saber que o desenrolar dos acontecimentos desde o mês de abril sinalizam um agravamento do conflito que nos coloca na faixa de risco para um confronto nuclear. Nossa sobrevivência depende de um fluxo diversificado e transparente de informações sobre o que está acontecendo de fato na Ucrânia. (1) Donbass é uma região da Ucrânia situada na fronteira com a Rússia onde estão as cidades de Luhansk e Donetsk. 5 perguntas sobre o conflito Rússia x Ucrânia A paz é possível? ONU joga para a plateia

ONU joga para a plateia

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas suspendeu a Rússia do Conselho de Direitos Humanos. O motivo foi o chamado massacre de Bucha, que Moscou nega alegando que foi um episódio armado pela Ucrânia. Mas, mesmo sem se levar a cabo uma investigação segura, a Rússia já foi julgada sumariamente. E, a punição foi o banimento do Conselho. Foram 93 países a favor, 24 contra e 58 abstenções. Há denúncias de que o texto não foi discutido previamente e que, é claro, a votação aconteceu sob intensa pressão dos Estados Unidos. Ou seja, é mais ou menos como acontece nas nossas Câmaras de Vereadores: ninguém leu nada, mas vota porque o prefeito mandou. Nenhuma novidade, portanto. Ora, a ONU, historicamente, tem sido absolutamente omissa com relação aos crimes dos Estados Unidos e nem mesmo depois que a verdade aparece, como foi o caso do Iraque, quando os EUA anunciaram aos quatro ventos de havia armas químicas por lá e por isso o destruíram, o país do Tio Sam recebe qualquer sanção. Os EUA podem tudo, mas seus adversários são sempre julgados com rigor. Para quem tem memória curta, é bom lembrar que esse mesmo organismo suspendeu a Líbia em 2011, também sob alegações de que lá, Muammar Kadafi cometia um sem fim de violências contra a população. E, na esteira disso, os EUA promoveram a “primavera árabe”  e garantiram que Kadafi fosse assassinado e arrastado pelas ruas. Com isso destruíram a Líbia – um país não alinhado e afeito ao nacionalismo árabe  – que até hoje não conseguiu sair do atoleiro. A ONU historicamente sempre tem se comportado como um braço longo do imperialismo estadunidense e os países ficam por lá porque entendem que é sempre possível fazer uma batalha por dentro do monstro, denunciando os dois pesos e duas medidas que conformam as decisões. De qualquer sorte, as decisões do órgão que são tomadas contra nações amigas dos EUA nunca são ouvidas e sequer noticiadas com ênfase. Já, agora, com toda a mídia comercial assumindo as relações públicas da OTAN, a medida repercutiu tremendamente. Um exemplo próximo de nós é o dos povos indígenas, que sistematicamente têm denunciado sobre a violação dos direitos humanos no Brasil no que diz respeito às etnias e aos territórios. E o que passou? O Brasil foi escolhido para integrar o Conselho de Direitos Humanos. Não parece estranho? Cuba é um país não alinhado que faz parte desse Conselho, votou contra a resolução de suspensão da Rússia e ainda tem advertido os demais países sobre esse ato que pode se tornar corriqueiro, servindo de moeda de troca dos Estados Unidos com os demais países. Hoje é a Rússia, amanhã pode ser qualquer país que se apresente não alinhado. Para os diplomatas cubanos, o conselho deveria ser um espaço capaz de enfrentar os complexos desafios apresentados pela comunidade internacional nessa área encontrando saídas e não simplesmente aplicando sanções. O embaixador cubano, no seu discurso, questionou: “esta Assembleia alguma vez poderá aprovar uma resolução suspendendo a participação dos Estados Unidos no Conselho de Direitos Humanos? Todos nós sabemos que isto não aconteceu e não acontecerá, apesar de suas flagrantes e maciças violações dos direitos humanos”. O fato é que agora, não adianta querer discutir os crimes estadunidenses. Ao fazê-lo, a maioria das pessoas, já contaminada pelo discurso da mídia servil, só quer saber de julgar o que a mídia mostra. E o que a mídia mostra são os crimes de guerra na Ucrânia. Os demais podem seguir, já que não estão na tela da TV. Para os que não se movem desde a opinião dos poderosos de plantão, os crimes de guerra devem ser julgados, todos. Com apresentação das provas, com a investigação qualificada. Fosse assim, Israel já estaria pagando por seus crimes contra os palestinos, ou os Estados Unidos pelo que fez no Iraque, só para ficarmos em dois exemplos. Mas, ao contrário. Quem está preso e morrendo aos poucos pela tortura é o jornalista Julian Assange, que ousou denunciar – com provas cabais  – os horrores estadunidenses. Para Assange não se vê qualquer manifestação do Conselho da ONU. Ele está prestes a ser extraditado para os Estados Unidos como se fosse um criminoso de guerra, um espião. Uma situação para lá de bizarra que aparece como normal. De qualquer forma isso não é surpresa. A lógica dos organismos que foram criados no pós-guerra é essa mesma: fortalecer sempre o poder do império estadunidense, sob quaisquer circunstâncias.  Todo cuidado com os amigos e toda a força da lei para os inimigos. Provas? Investigação? Justiça? Não, isso não é necessário. Se o “rei” falou, tá falado. A inevitável escalada da guerra nas fronteiras russas 5 perguntas sobre o conflito Rússia x Ucrânia Ucrânia: o jornalismo precisa fazer uma autocrítica

A guerra e o Brasil

Colaborou Isabela Gama O CONVERSA AO VIVO ZONACURVA de 10 de março (quinta) recebeu novamente a mestranda em Relações Internacionais Giovana Branco. Desta vez para discutir os impactos do conflito russo no Brasil. O bate-papo contou com a presença do editor Zonacurva Fernando do Valle e Luis Lopes do portal Vishows. Os impactos do conflito russo para o Brasil são muitos e a alta do preço da gasolina é o mais relevante. Apesar do Brasil ser considerado autossuficiente em petróleo com suas enormes reservas do pré-sal e a alta produtividade da Petrobrás, a política entreguista de Bolsonaro, que vende as refinarias brasileiras a preços baixos ao capital estrangeiro, coloca o Brasil em uma situação vulnerável no refino e abastecimento de combustíveis. Por isso, houve um aumento da gasolina de quase 20% em 10 de março. Giovana relembra que a Rússia é o segundo maior exportador de petróleo do mundo, atrás apenas da Arábia Saudita, e que a guerra influenciou na alta do barril que chegou a 140 dólares, mais alto valor em uma década. É importante considerar que a importação de derivados de petróleo é realizada em dólar, e a inflação brasileira corrói o poder de compra do real, complementando os motivos que levam a gasolina a alcançar preços exorbitantes para o consumidor final. A pesquisadora afirma que o Brasil não é o mais afetado pela crise energética ocasionada pelo conflito. A situação dos países da Europa Ocidental é ainda mais complicada. A Alemanha é um dos países mais dependentes da energia russa, mais da metade do gás natural vem do país vizinho. Ambos os países terminaram de construir o Nord Stream 2 (gasoduto com 1230 quilômetros entre Rússia e Alemanha) no final do ano passado e que ainda não entrou em funcionamento. Com a guerra, o gasoduto foi bloqueado como sanção à Rússia. O desespero do governo alemão, que corre o risco de falta de gás para o aquecimento das casas às vésperas do inverno europeu, o levou a fechar acordo às pressas com o Catar para fornecimento de gás. A pesquisadora afirma que, na sua visão, essas sanções são egoístas, pois não levam em consideração a situação dos países da Europa. “As medidas parecem muito mais decisões unilaterais tomadas pelos Estados Unidos do que uma conversa com seus aliados”, afirma Giovana. Ela explica que, para os membros da União Europeia, a rivalidade com a Rússia não é benéfica, nem econômica ou politicamente, “são os norte-americanos que se sentem ameaçados com a presença russa”, completa. Outro ponto abordado na live foram as notícias que surgiram nas últimas semanas sobre empresários russos com seus bens bloqueados ao redor do mundo. Um exemplo foi o de Roman Abramovich, proprietário do time inglês de futebol Chelsea, que foi proibido de vender o time, como forma de retaliação à invasão russa na Ucrânia, considerando que o bilionário tem ligações próximas a Putin.  Giovana explica que os ataques aos oligarcas russos não vão ter o efeito que a comunidade internacional espera, visto que as relações entre o governo e esses empresários são diferentes do que estamos acostumados. “É como se houvesse um acordo, enquanto Putin não interfere na economia e nos negócios da elite russa, esses empresários não opinam nas atitudes do presidente”, explica. A paz é possível? A inevitável escalada da guerra nas fronteiras russas   5 perguntas sobre o conflito Rússia x Ucrânia

A paz é possível?

Colaborou Isabela Gama O CONVERSA AO VIVO ZONACURVA de 3 de março (quinta) recebeu a mestranda em Relações Internacionais Giovana Branco para discutir sobre o atual conflito entre Rússia e Ucrânia. O bate-papo contou também com a presença do editor Zonacurva Fernando do Valle e Luis Lopes do portal Vishows. Giovana explica que a Rússia está tentando se reafirmar como uma potência mundial no cenário internacional pós-guerra fria, mas o saudosismo da época de glória da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) não é o suficiente para que o país retorne ao prestígio obtido após a segunda guerra mundial.  “É importante compreender que a Rússia atual é muito distinta da União Soviética, apesar das políticas de Putin lembrarem a de outros líderes lendários russos”, afirmou a pesquisadora, que escreve a dissertação As Relações Rússia-Ocidente: da Cooperação ao Conflito. As Mudanças na Política Externa Russa na Era Putin sob orientação do professor Luís Alexandre Fuccille no programa de pós-graduação de Relações Internacionais San Tiago Dantas. O que despertou o interesse de Giovana pela Rússia foi a leitura dos grandes escritores russos como Fiódor Dostoiévski. Como estudiosa da trajetória do líder russo, Giovana relata que Putin sempre mostrou admiração, e até um certo saudosismo, pelo regime socialista soviético, que foi desmantelado no início dos anos 90. O ex-agente da KGB, serviço secreto russo, defendeu a URSS enquanto pôde, e até o momento conta com forte apoio popular. O nome do filósofo russo Alexander Dugin, apontado por muitos como o “influenciador de Putin” foi trazido à baila por Luís Lopes. “Dugin sempre foi visto como muito radical para o meio acadêmico, mas com a tomada da Criméia em 2014, ele ficou popular por embasar as decisões políticas de Putin” afirma Giovana.  A pesquisadora relembra que o avanço da OTAN sobre o “território de influência russo” gerou a ocupação da Geórgia (antiga república soviética) em 2008 pelos russos, assim como ocorreu com a Ucrânia neste ano. A pesada máquina militar russa tomou Tiblissi, capital da Geórgia, em apenas cinco dias.  Um ponto questionado à Giovana pelo editor Zonacurva Fernando do Valle foi a posição da China no conflito. Por enquanto, a nação tem se mostrado neutra, apesar de ter mantido as relações comerciais com a Rússia. A mestranda acredita que essa suposta neutralidade tenha vindo como um reflexo das severas sanções econômicas impostas pelo ocidente.  Mas, não resta dúvida, de que a Rússia não invadiria seu vizinho sem apoio, mesmo que velado, do gigante chinês. Sobre a ascensão de grupos neonazistas em todo o território da Ucrânia, Giovana explica que na sua visão o governo ucraniano fechou os olhos para o surgimento desses grupos paramilitares. Segundo ela, eles são uma consequência da onda de extrema direita que assolou diversos países do mundo nos últimos anos. Luis ainda reclamou sobre a absurda “normalização” desses grupos, “foi como se brigadas paramilitares se tornassem constitucionais dentro de um determinado país”, afirma o editor do Vishows.  5 perguntas sobre o conflito Rússia x Ucrânia