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impeachment dilma

Balanço do golpe I

por Guilherme Scalzilli Os equívocos administrativos dos governos Dilma Rousseff são insuficientes para explicar o sucesso do golpe. Os péssimos índices socioeconômicos, a corrupção e a impopularidade não abreviaram os mandatos de José Sarney e FHC, por exemplo. A associação dos fracassos gerenciais de Dilma com a queda visa dar a esta um verniz meritório, criando pretextos para a negociata que os golpistas apelidaram “julgamento político”. A responsabilização da vítima esconde suas tentativas de resistência e, acima de tudo, os esforços sistemáticos da mídia, do Judiciário e do Congresso para sabotá-las. A viabilização do golpe se deu no âmbito estratégico. O impeachment representou uma confluência de elementos que foram se articulando ao longo dos últimos três ou quatro anos, nem sempre de forma planejada, mas partindo de setores com o mesmo interesse. Nesse sentido o governo petista contribuiu com a própria tragédia, como um jogador que planeja mal seus movimentos e subestima as manobras adversárias. Isso diz respeito a uma esfera pragmática da atividade política, onde ideais, plataformas e mesmo realizações ocupam lugar lamentavelmente secundário. Por ingenuidade, cinismo ou pura preguiça, os comentaristas midiáticos ignoram esse ambiente. Mas evitar a face espinhosa do impeachment leva a um idealismo alienante, que enxerga pressupostos no lugar de fatos, pessoas e instituições. Eis porque alguns progressistas e conservadores parecem ter visões tão semelhantes sobre o fenômeno. Nas próximas semanas abordarei a consecução do golpe sob as óticas político-partidária, social, jurídica, econômica e midiática, com um epílogo perspectivo. Não pretendo esgotar os assuntos, nem mesmo desenvolvê-los, e sim propor um rol de questões que julgo merecerem figurar nos futuros debates historiográficos.  Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. A escandalosa isenção do Judiciário brasileiro  

Brasil, começar de novo

por Frei Betto No Brasil, agosto é mesmo o mês do desgosto. Em agosto de 1954, Getúlio Vargas, escorraçado do poder por pressão da Aeronáutica, disparou uma bala contra o próprio coração e saiu “da vida para entrar na história”, como registrou na carta-testamento. Em agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência da República na esperança de voltar ao poder nos braços do povo, e de costas para a democracia. Agora, em agosto de 2016, Dilma Rousseff foi afastada da presidência da República por decisão dos 61 senadores que se prestaram a consumar o golpe que permite ao vice, Michel Temer, assumir usurpadoramente o comando do país. Não me espanta a decisão do Senado nem as infundadas alegações de que Dilma teria cometido crime de responsabilidade fiscal. O que me surpreende é a apatia de um povo beneficiado pelos 13 anos de governo do PT. Onde estão os 45 milhões de brasileiros que, graças aos programas sociais, se libertaram da miséria? Onde estão os trabalhadores que, anualmente, tiveram seus salários atualizados acima da inflação? Onde estão os jovens que chegaram ao ensino superior graças ao Enem, ao Fies, ao sistema de cotas? Fora algumas manifestações pontuais nas grandes cidades do país, não houve reação popular ao golpe parlamentar. Como não houve ao golpe militar dos idos de abril de 1964. Nós erramos. Não demos consistência política aos programas sociais. Ensinamos a pescar, não a pensar. Os bens materiais que erradicaram a miséria não vieram acompanhados de bens simbólicos que suprimissem a indigência da consciência. A fome de pão foi saciada, não a de beleza. O PT nasceu com o propósito de “organizar a classe trabalhadora”. Chegou ao poder graças aos movimentos sociais. Mas não soube valorizar o que lhe daria sustentabilidade política. Não houve estratégia para desarticular os atuais protagonistas do golpe. Acreditou nas alianças com os inimigos de classe. Fez demasiadas concessões a quem tinha por objetivo desbancar o PT e retomar o controle da máquina do Estado. Trocou a estratégia por meras conquistas eleitorais. Abriu mão do projeto histórico por meras táticas de acomodação no governo. Manter-se no poder, ainda que à custa de pactos espúrios, ganhou mais importância do que alterar as estruturas arcaicas da sociedade brasileira. Treze anos de governo e nenhuma reforma, nem a agrária, a trabalhista ou a tributária. Hoje, o PT é vítima da omissão de reforma política. Apenas 61 brasileiros anularam os votos de mais de 54 milhões de eleitores! Agora nos resta o desafio de restaurar a democracia no Brasil. Porém, para isso não basta disputar eleições com as forças retrógradas e golpistas. É preciso organizar a esperança. Fortalecer os movimentos sociais. Dar consistência política ao projeto histórico. Reativar a militância. Não se trata apenas de derrubar os golpistas. Mas, sim, de mudar a gramática do poder para a democracia deixar de ser uma falácia que ilude aos que nela não enxergam a ditadura do capital. Publicado originalmente no Correio da Cidadania.

Golpe a jato

por Guilherme Scalzilli O país assiste passivamente à consumação do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. As audiências no Senado se transformaram em farsa legitimadora do processo, repetindo a eleição indireta que alavancou o regime militar de 1964. Antes e agora com aval do STF, da mídia corporativa e do empresariado. Se algo desautoriza esse paralelo, não é a falta de arbítrio no caso atual. Abusando de suas prerrogativas e agindo em sintonia com a agenda do impeachment, o comando da operação Lava Jato sabotou cada esboço de resistência petista no Congresso. As gravações ilegais que antecederam o processo na Câmara e o indiciamento de Lula às vésperas da decisão no Senado dispensam comentários. O tal “juízo político” dos senadores se resumiu a negociatas promovidas pelo banditismo interino. Grupos sem respaldo popular tomaram o governo de assalto e garantiram, no interior da máquina, que a invasão ficasse irreversível. E, pior, com estratagemas bem piores do que as manobras contábeis usadas contra Dilma. É possível que Ricardo Lewandowski, não sem algum cinismo, cobre dos parlamentares a convicção nos crimes alegados. Mas ninguém ali se preocupa com a ilegalidade do golpe, nem com as inúmeras denúncias de acadêmicos, jornalistas, juristas e autoridades políticas do Brasil e do exterior. Eis o ponto central: Dilma será julgada por pessoas indiferentes aos méritos jurídicos do processo. Qualquer acusação formal a derrubaria. As patéticas alegações dos senadores favoráveis ao impeachment revelam que eles ignoram até a base técnica do tal “crime de responsabilidade”. A longa tradição de golpes ‘brancos’ no Brasil Da mesma forma, os defensores do arbítrio na mídia passaram a falar em “fracasso” do governo Dilma, como se fosse motivo constitucional para derrubá-lo. Não é. Fazendo apologia de uma inconstitucionalidade, esses analistas escancaram a própria natureza antidemocrática de sua defesa do impeachment. A previsível supervalorização da derrota de Dilma servirá como atestado simbólico de culpa, suprindo a falta de provas e fundamentos legais do veredito. Mas não deixa de ser sintomática a identificação do desmoralizado Congresso Nacional com a ideia de justiça que fundamenta o golpe. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.

Brizola volta a falar do calvário de Dilma e do impeachment

por Marceu Vieira  Ao assistir à inquisição de Dilma no Senado, o cronista digital teve uma nova alucinação e revisitou o baú de lembranças do seu tempo de repórter político. Mais uma vez, surgiu diante dele a memória de Leonel Brizola, e o cronista arrancou do velho trabalhista gaúcho o que ele pensa do martírio e da paixão da presidente em sua crucificação no tribunal do Senado.   Governador, o senhor ainda acredita na possibilidade de absolvição da Dilma? Veja, Morfeu.   É Marceu, governador. Tu me desculpes. Tu sabes desta minha confusão renitente com teu nome. Mas veja, Alceu. A rigor, se isto ocorrer, será uma imensa surpresa. Realmente, uma imensa surpresa. Um velho ditado no Sul diz que não se apeia do cavalo enquanto o fim da estrada não chega. Mas o fim da estrada está próximo, independentemente do desfecho que tiver. Eu te digo isso com um sentimento de desgosto muito grande! Muito grande, realmente. Estes senadores de gravatas modernas, não é verdade?, esses que aí estão a julgar a presidente, eles, sim, vão merecer um julgamento. Um julgamento exemplar e ainda mais severo que este que impõem agora à presidente legitimamente eleita. Será o julgamento da História! A História, tu sabes, é cruel em seus julgamentos. Eu mesmo tenho aqui as minhas dificuldades em explicar certas situações em que estive.   Que situações, governador? A rigor, poucas, bem poucas. Mas sei que ainda hoje me julgam, compreende?   Por exemplo… Julgam o velho Brizola pelo seu papel no episódio do impeachment do presidente Collor, por exemplo.   O senhor apoiou Collor naquele momento de crise. Sente-se arrependido? Isto é uma grande inverdade, tu me permitas dizer. Chego a duvidar, sinceramente, que tu penses assim. Tu, que acompanhaste uma boa parte da nossa trajetória, que estavas ali tão próximo, a nos entrevistar naquele período, tu sabes que não foi o que ocorreu. As diferenças entre mim e o Collor eram conhecidas. Já não sei de ti, mas qualquer guri daquele tempo, qualquer piá, francamente, sabia da minha profunda discordância em relação ao presidente Collor. De modo que, se há um arrependimento neste coração que já parou de bater, mas segue vivo aqui no meu peito, se há um arrependimento é o de eu não ter me posicionado com mais clareza sobre estes fatos naquela época para desfazer certos mal entendidos. Nada mais. Leia outra “entrevista” do cronista digital Marceu Vieira com Leonel Brizola. Se não era apoio, o que era? Deixe-me concluir, Ateneu. Calma lá que te darei a tua resposta. Em nome da governabilidade, eu, como governador do Rio de Janeiro, do que muito me orgulho, aliás, procurei o presidente Collor e propus a construção de Cieps federais e a adoção de algumas das nossas ideias. Sobretudo, na área da educação. Ele nos atendeu com os Ciacs, não é verdade? Creio que o presidente se contaminou ali, criou ali um certo encantamento em relação a algumas das nossas ideias, e se construiu um clima amistoso entre nós. Ele foi sempre muito cortês conosco. E nós retribuíamos o trato pessoal. E foi só.   Mas o senhor não participou dos atos pelo impeachment dele nem se posicionou. Veja, Nereu. Eu sempre disse que caberia ao Congresso e ao Supremo Tribunal julgar os crimes de que acusavam o Collor. Eu não fui a reboque do PT, um ramal auxiliar do PT, que queria a carnificina, o julgamento sumário, a crucificação imediata. Eu estava ali, de camarote, entendes? Tu sabes das minhas convicções e das minhas imensas diferenças também com o PT. Francamente, até me surpreende que tu queiras seguir por esta vereda agora nesta nossa conversa e neste momento tão grave do nosso país.   Qual a diferença daquele processo de impeachment pra este de agora? Permita que eu te diga. Veja. Tu mesmo, agora, estás aí a trabalhar para a Rede Globo. Andei sabendo, nas minhas resenhas, dos teus novos voos, com este Adné…   Adnet, governador, Adnê. Tu me perdoes a maneira desabrida. Longe de mim querer te desagradar ou te constranger. Longe de mim! Mas este Adné, que, na verdade, me parece um fanfarrão, te pôs pra trabalhar no império Globo. Por isso, sinto teus questionamentos contaminados.   Governador, trabalho atualmente pra um programa de humor, como roteirista. E perguntei apenas sobre as diferenças entre o processo de impeachment da Dilma e o do Collor. Eu te peço desculpas. As minhas mais sinceras desculpas. Mas é como vejo. A grande diferença é que não há crime agora. O que fez a dona Dilma?! Com todo o respeito aos sábios da lei, a rigor, ela não fez nada. Não há nada! Esta é a verdade. Dilma não roubou, não acobertou corruptos, não se apequenou diante dos… como te dizer… diante dos chimangos. Dilma não se beneficiou de um alfinete do palácio! Um alfinete! A rigor, Dilma, uma jovem que vimos nascer na política lá no Rio Grande, não fez nada. Nada. Já Collor tinha lá as intercorrências dele, não é verdade? Tu sabes. Collor ficava naquela motoca d’água dele (jet ski), ali nos lagos de Brasília, exibindo seus dotes atléticos, enquanto no porão do palácio havia quem fizesse coisas que se dizia que faziam em nome dele, tu sabes bem. Não sou eu quem está dizendo! Não sou eu, Leonel, quem diz. Diziam que faziam. Diziam até que o tesoureiro pagava as contas pessoais dele! Mas veja. Diziam. Não sou eu que afirmo. E o que fez a dona Dilma? A rigor, nada! Dona Dilma é inocente e está pagando por crimes que não cometeu. Com toda convicção, não cometeu.   O senhor diria que ela paga pelos erros do PT? Tu agora tocaste num ponto, creia, que tem andado aqui nas minhas reflexões. Daqui de onde estou agora, tenho uma visão mais ampla do que ocorre e descontaminada das coisas da política. O Lula, na sua autossuficiência, abandonou a Dilma em certo momento. Não há como negar. Não quero julgá-lo. Mas, francamente, foi o

Enquanto isso, na realidade paralela do planalto central

por Fernando do Valle No mundo paralelo projetado por conhecido arquiteto comunista, a presidenta eleita há cerca de dois anos está sendo defenestrada pelas vossas excelências. Entre elas difícil encontrar qualidades que se aproximem de excelentes ou ilustres, com certa benevolência talvez encontremos algumas boas intenções, mas não nos esqueçamos do popular ditado. Crime ainda não foi provado contra tal presidenta, mas a maioria das excelências não se importa tamanho o apuro demonstrado em assegurar a continuidade do governo plutocrático do vice eleito na chapa da presidenta. O partido político do vice é péssimo de votos, sempre recebe poucos nos pleitos bienais, mas estranhamente sempre esteve no poder, escudado por mirabolantes negociatas, acordos e ouso dizer jogo de cintura parecido com o de dançarinas adeptas de diminutos shorts. Esse partido, o mais bem adaptado aos corredores de certos prédios que se foram construídos de concreto hoje são o habitat do mais puro abstracionismo, pelo jeito chegará ao poder pela terceira vez sem voto. Na primeira ocasião, péssimo escritor e presidente governou por cinco longos anos após a morte de um velho político depois de mais de duas décadas de um regime militar que torturou e matou centenas de opositores. No segundo momento, a presidência caiu no colo de mineiro topetudo meio atrapalhado após a queda do alto comando do país de político de imensa sordidez e olhem que a concorrência nesse quesito é considerável por lá. O sórdido político carioca que fez carreira nas Alagoas foi construído nos gabinetes do principal meio de comunicação do país, comandado por conhecido apoiador dos militares. No ano passado, esse mesmo veículo de comunicação fez cobertura incensando os festivos selfies de boa parte da classe média em suas camisetas amarelas com policiais da tropa de choque que matam milhares de pretos e/ou pobres nas periferias das grandes e médias cidades. Tanto os defensores da tal presidenta como seus opositores são alimentados com sua ração de ódio diário e depois gritam e esperneiam. Alguns tem muita razão, outros muito mais. A maioria que não tem tanta razão assim assiste boquiaberta ao teatro de quinta categoria, mas as otoridades continuam protegidas na bolha dessa realidade paralela.

Polyana investigadora

por Guilherme Scalzilli Dá para imaginar o escândalo que haveria se o juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato fizessem cursos e reuniões na Rússia ou na Venezuela antes de arrasarem a Petrobras. Gigantes petrolíferos ajudando a destruir a concorrência brasileira? Então. Com os EUA é “cooperação internacional”. Espionagem? Conspiração? Depende da maneira como definimos tais atividades. Ou melhor, do grau de credulidade que abraçamos para embalar nossa ilusão de autonomia e segurança. Quase toda ação escusa tem uma fachada legítima que satisfaz os ingênuos. Claro, soa insensato embaralhar os verdadeiros deslizes éticos de Moro com suspeitas afins. No imaginário diplomático, ele seria um péssimo candidato à cooptação. Além de excessivamente visado, nutre visão messiânica e idealista do seu papel. E tem motivações ideológicas já alinhadas à agenda estadunidense. Ao mesmo tempo, é muita ingenuidade ignorar os elos geopolíticos da desmoralização de algumas das maiores empresas do país, com negócios planetários em áreas estratégicas para as potências financeiras. E é simplesmente estúpido achar que desmontes desse tipo são fenômenos gratuitos no inescrupuloso universo do empresariado transnacional. Podemos até acreditar que a Lava Jato serve “apenas” como instrumento manipulado por interesses poderosos, em troca do seu próprio sucesso no âmbito doméstico. O problema está no pacote de versões oficiais, bem menos convincentes, que dão suporte à hipotética inocência dos nossos berlusconis. Por exemplo, a tese de que o profissionalismo, a força material e o respaldo midiático do movimento pelo impeachment nasceram de ações espontâneas e desarticuladas, embora seus líderes tenham ligações com obscuras companhias norte-americanas. Também a de que o cargo de ministro das Relações Exteriores de José Serra não tem nada a ver com seu projeto que abre o pré-sal à exploração estrangeira. Ou com os policiais federais que vazaram os sigilos da Lava Jato. Será que as teorias conspiratórias nascem da quantidade de coincidências estranhas em torno do mesmo fenômeno, ou do desprezo geral por esses sinais? Precisaríamos mesmo de documentos governamentais para saber que os EUA participaram do golpe militar de 1964? Sem o Wikileaks ninguém imaginaria que a Casa Branca espiona mensagens eletrônicas de governos, empresas e cidadãos? A lista dessas “descobertas” tardias ocuparia compêndios. As nódoas comuns a todos os seus episódios são a covardia da imprensa dita investigativa e o descrédito público dos paranoicos que levantaram as perguntas que ninguém ousava formular Publicado no JusBrasil. 

A palavra proibida

por Guilherme Scalzilli Elio Gaspari admitiu na Folha de São Paulo que há um golpe em curso. Mas “golpe”, veja bem, no sentido democrático, mero jogo sujo dos parlamentares malvados. Eis outro típico reboleio semântico de quem se envergonha de ter apoiado o impeachment. Doravante choverão análises parecidas, tardias e eufemísticas, em busca de um lugar confortável na posteridade. Foi assim com as reações às ilegalidades de Sérgio Moro e ao banditismo do governo interino. Será assim com a pizza da Lava Jato e a destruição política de Lula. Debaixo da retórica boazinha, porém, esses remendos escrupulosos preservam as suas falácias originais, como caroços opinativos inquebráveis que não podemos refutar. Moro é imparcial. Dilma mereceu. O impeachment segue a Constituição. Percebemos o cinismo dos apologistas daquilo-que-seria-golpe-se-golpe-fosse quando eles qualificam o fenômeno: é do “conluio de bandidos” para baixo. Ou seja, tem cheiro de golpe, cara de golpe, discurso de golpe, mas… golpe? Não, não é. Afinal, o que falta ao impeachment para merecer a alcunha maldita? Ruptura institucional? Violação das regras? Mas isso aconteceu em 1964? O STF não acatou a deposição de João Goulart e a eleição indireta de Castelo Branco? Não foi tudo dentro da tal “constitucionalidade”? A questão central aqui é que não se trata de diletantes desinformados das redes sociais. Gaspari, por exemplo, estudou profundamente a ditadura militar. E muitas das pessoas que repetem seus argumentos possuem sólida formação acadêmica, tanto que recorrem a teorias muito bem elaboradas para rechaçar o conluio do PT com as elites. Então vemos especialistas ignorando fatos históricos para endossar suas posições partidárias. E progressistas foucaultianos aplaudindo togados e meganhas como heróis nacionais. E a cúpula do Judiciário repetindo os notórios erros dos antepassados. Por isso acho meio pueril festejar o recuo estratégico de Gaspari e de outros analistas. A natureza do impeachment não depende dos seus juízos clarividentes e seletivos. O problema de apoiar um golpe é deles e do próprio STF. Usem a palavra que preferirem. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.

Meu fio de esperança

por Frei Betto Sou vivido. Vi o Brasil passar por muitas crises. O suicídio de Vargas, em agosto de 1954, estragou meu aniversário de 10 anos. JK soube, em 1956, contornar a rebelião militar de Jacareacanga. A renúncia de Jânio, em 1961, me levou às ruas pela primeira vez, em defesa da democracia. O golpe militar de 1964 me arrancou da faculdade de Jornalismo para atirar-me nas masmorras do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). O AI-5 me desempregou do jornal e, meses depois, me conduziu a quatro anos de prisão. Autocrítica da esquerda   Meu sonho, ainda hoje, é o socialismo. Fora da Igreja há salvação. Mas não há salvação para a humanidade fora de um sistema no qual haja partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, e onde os direitos humanos estejam acima dos privilégios do capital. Para um sonho se tornar realidade são necessárias mediações. Busquei-as na Ação Católica. Os bispos, pressionados pela ditadura, a desmantelaram. Apoiei organizações revolucionárias contra a ditadura. A repressão as derrotou. Tornei-me eleitor do PT. O partido se deixou contaminar pelo elitismo e a corrupção, em treze anos de governo não promoveu nenhuma reforma estrutural, e calou-se quanto ao socialismo. Hoje, voto PSOL. Meu fio de esperança se prende aos movimentos sociais. Não são perfeitos. Neles há também oportunistas e corruptos. Mas estes são exceções. Porque a base da maioria dos movimentos é a gente pobre que luta com dificuldade para sobreviver. Essa gente costuma ser visceralmente ética. Não acumula, partilha. Não se entrega, resiste. Não se deixa derrotar, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Não sei o que será do nosso Brasil nos anos vindouros. Sei apenas que fora dos movimentos sociais a nação não tem salvação. O PT tentou e se deu mal. Em uma sociedade tão marcadamente dividida em classes sociais, somente o vínculo orgânico com os pobres nos mantém com os pés no chão, a alma repleta de fome de justiça e a cabeça fiel à utopia socialista. A democracia é uma senhora muito ciosa de suas origens. Todas as vezes que tentam prostituí-la, sequestrá-la, corrompê-la, reage e desmascara seus algozes. Ela prefere sempre se abrigar em seu ninho: o protagonismo popular. O capitalismo tenta nos ludibriar, convencer-nos de que democracia é sinônimo de rotatividade eleitoral. Ora, a verdadeira democracia se apoia na economia, na partilha das riquezas; na ecologia, ao cuidar da proteção ambiental; na cultura, ao assegurar a todos o direito de criar e se expressar; e na política, ao dotar todos os cidadãos e cidadãs de poder para monitorar os rumos do Estado e, portanto, da sociedade. Nenhuma esquerda ideológica se sustenta por muito tempo sem este respaldo fisiológico: o contato direto com os movimentos nos quais os pobres se organizam e lutam por seus direitos.  Publicado originalmente no Blog da Cidadania.

O Brasil vai vivendo o golpe

por Elaine Tavares Desde o dia em que o Senado aprovou o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, sem contar com qualquer comprovação de ilegalidade ou corrupção, que uma boa parte das forças vivas da política popular, sindical e comunitária não sai das ruas. Em todos os cantos do país, nas cidades grandes, nas pequeninas, nos cantões mais retirados há alguma passeata, uma marcha, uma manifestação. Muito dessa gente que tem saído para as ruas não apoiava o governo petista, mas entende que o que acontece no país é um golpe, um rompimento da Constituição e, no melhor estilo liberal, defende que a carta magna seja respeitada. É sabido que no mundo ocidental, moderno, o que mantém um pouco de coesão social é a lei. Normas e regras – decididas pela classe dominante, é claro – que aparentemente tornam todas as pessoas iguais. No imaginário popular esse é um mito que ainda funciona, embora o cotidiano nos mostre que não é bem assim. De qualquer forma, se um povo é levado a crer que deve respeitar sua Constituição, esse mesmo povo obviamente vai se levantar se a carta for rasgada. E esse é um pouco do sentimento que acompanha muitos dos que marcham pelo “Fora Temer”. Para eles, o presidente interino está ilegítimo, é fruto de um golpe, de uma traição. E claro, os demais marcham porque apoiam e acreditam no governo petista como uma opção melhor para o país. De toda forma há que matizar o debate sobre a lei. A tão incensada Constituição de 1988, que tem lá os seus avanços, já foi retalhada inúmeras vezes pelo Congresso Nacional, com a votação de inúmeras emendas que retrocederam direitos. Uma boa olhada na Carta Magna e veríamos que já está mais do que na hora de uma Constituinte, capaz de espelhar novas lutas e novas demandas. No caso do Judiciário – que é o poder parceiro do legislativo na lógica do golpe – as coisas ficam ainda mais confusas. As gentes comuns, o povo empobrecido, sabe muito bem que a lei não lhe serve. Ao contrário: o positivismo que existe na conformação do Direito torna o mundo uma coisa imóvel, aparentemente igualitária, só que não. Na prática todo mundo sabe que quem rouba uma manteiga no supermercado pode ir presa por anos, mas quem lesa milhares de famílias com a venda de um prédio inacabado segue vivendo nas altas rodas sem sofrer qualquer penalidade. Bons advogados fazem malabarismos com a lei. E bons advogados custam caro. Logo, os empobrecidos não têm qualquer chance. No golpe em curso a lei se mostrou implacável com a presidenta da nação. E, de repente, na tela da TV, a população que sofre as penas da lei no dia-a-dia se deu conta de que o judiciário não é mesmo neutro. Que ele pode tender para um lado ou outro, mesmo dentro do seu próprio grupo de poder. Assim, aquilo que parecia ser um destino apenas dos pobres – o braço firme e injusto da lei – caiu sobre os poderosos. Mas não qualquer poderoso. Era um grupo até então identificado com os trabalhadores que, por vias de acordos e conciliações, havia chegado ao governo do país. Para boa parte das pessoas que assistem a vida passar pela televisão, as coisas apareciam bem claras. Aos trabalhadores, não basta estar em altos cargos. Se estiverem aliados com o poder real, os grandes, os graúdos, e se a esses não interessar mais a aliança, aquilo que é uma prática corrente na vida deles pode acontecer. Ou seja, serão derrubados, presos, achincalhados e tudo mais. O governo petista prova um remédio amargo. Aliou-se aos grandes, rendeu-se aos graúdos, esqueceu boa parte de seu programa original. Não bastasse isso, muitos de seus integrantes foram tocados pela mosca azul, pela ganância, pela vertigem do poder. Pagam por isso agora. Haveria muito mais que falar das retiradas de direitos, das alianças com o agronegócio, da surdez às demandas indígenas e tantas coisas mais. A boa e velha crítica que estivemos fazendo desde o terceiro mês do governo Lula, quando ele iniciou a reforma da Previdência. Mas, o momento é de golpe. E isso tem de ser combatido. Há quem diga que dizer “Fora Temer” é aliar-se ao “Volta, querida!” e sim, isso é verdade. Mas, o “volta, querida!” pressupõe justamente esse sentimento de retomada do rumo constitucional, essa “legalidade” por vezes confusa e contraditória do mundo liberal. Uma certa esperança – ingênua, talvez – de que a volta possa trazer um governo disposto a fazer uma mudança de rumo. Afinal, o governo de Dilma apontava ajustes neoliberais cada vez mais profundos. Estaria disposta a presidenta a girar o leme? Numa entrevista concedida ao jornalista Luís Nassif,  Dilma Rousseff apontou um caminho. Caso seja reconduzida ao governo, sabe que não será fácil consertar o tanto de destruição que vem sendo promovido pelo governo interino. Por isso diz que chamará um plebiscito para que a população decida se quer uma nova eleição e outro pacto. Desafortunadamente a presidenta não disse qual seria sua proposta de trabalho numa possível volta. Seguiria fazendo o que vinha fazendo? A população, ao escolher se quer uma nova eleição ou não, saberá qual é o rumo proposto pelo governo petista, caso decida mantê-la? Isso não ficou claro. São tempos tumultuados e cheios de vida. A rua – governista ou não – está cheia de gente disposta a apresentar suas pautas e isso já é revigorante. Para um país que viveu um longo tempo de adormecimento das grandes mobilizações sociais, o que se vê nesses dias que correm é bonito e pedagógico. Nunca se sabe o que pode surgir e, por isso, a necessidade de seguir fortalecendo os grupos organizados para que estejam preparados para o devir. Mulheres, velhos, crianças, jovens, petistas, não petistas, gente de todas as cores acorrem às ruas contra o golpe, escrevendo mais uma página na difícil política brasileira. Oxalá o país saia melhor de tudo isso. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes. Independência ou golpe!

A hora de Dilma

por Carlos Fico A gravidade do momento atual impõe a necessidade de solução que represente, para a população, a recriação do sistema político nacional. Isso tem de ser feito sem o recurso a fórmulas que contornem a Constituição, como é tradição da cultura política autoritária brasileira (golpes, contragolpes, emenda parlamentarista, prorrogação de mandatos ou eleições fora do calendário). Nesse sentido, ou ficamos com Temer ou Dilma volta ou Dilma não volta e Temer também cai. No momento em que escrevo, o vice-presidente no exercício da Presidência mostra-se líder desastrado e com os principais chefes de seu partido ameaçados de prisão. Tampouco a ninguém escapa o esforço de alguns setores (mercado financeiro e certo jornalismo à frente) no sentido de produzir “boas notícias” que apenas sublinham pateticamente o desespero dos que se encontram no poder. Esses sintomas da fragilidade de Temer associam-se à legitimidade pelo menos discutível de seu governo, haja vista as irregularidades que cercaram a etapa inicial do processo de impeachment. Dilma não foi afastada por supostamente ter cometido crime de responsabilidade. O esgarçamento paroxístico da política que se verificou (e se verifica) foi motivado por ela própria, pela Operação Lava Jato e pelo esgotamento do modelo político. Não houve golpe. A bandeira “não vai ter golpe” foi inadequada; a persistência dos discursos de denúncia do “golpe” impede ação política consequente. Nada há de semelhante entre 1964 e 2016. A possibilidade do retorno de Dilma Rousseff depende em grande medida da própria presidente afastada: por que os senadores deveriam votar em seu favor? Ela acusa a maioria do Congresso Nacional de golpista. A presidente deveria parar de falar em golpe. Deveria dirigir-se à nação reconhecendo o grave erro que cometeu ao prometer, na campanha eleitoral de 2014, aquilo que não poderia cumprir e, sobretudo, ao tentar fazer no governo o que acusara seu oponente de planejar fazer. Deveria desculpar-se. Deveria explicar porque foi levada a esse erro. Também deveria dizer o que pretende fazer caso o Senado a livre do impeachment. Ela mesma, em junho de 2013, propôs um plebiscito que autorizasse processo constituinte específico para fazer a reforma política. A fórmula é juridicamente problemática, mas pode ser aprimorada por pessoal qualificado. É indispensável que haja reforma política para a melhoria do sistema político brasileiro antes das próximas eleições gerais. Há distorções graves, amplamente diagnosticadas. Dilma deveria, inclusive, apresentar sua proposta de reforma política. A presidente afastada também deveria buscar justificar seu retorno à Presidência da República anunciando previamente programa econômico condizente com as necessidades de ajuste fiscal e, na medida do possível, preservando programas sociais – mas sem promessas demagógicas. Esse é um problema de difícil solução que, por isso mesmo, não pode ser entregue a técnicos supostamente neutros que implementariam soluções “isentas” a partir de diagnóstico tido como indiscutível segundo o qual os gastos decorrentes dos direitos sociais provenientes da Constituição de 1988 não caberiam no orçamento. Do mesmo modo, a superação do impasse econômico não pode ser impedida pelo discurso fácil de parte da esquerda que parece entender o Estado como fonte infinita de recursos. A solução é política e deve ser negociada com a sociedade, claramente, sem subterfúgios. A população merece ser tratada com sinceridade. Está na hora de os políticos brasileiros abandonarem a concepção que marcou a ditadura militar segundo a qual os brasileiros seriam “despreparados”, isto é, incapazes de compreender os problemas e de enfrentar soluções amargas. Também creio que Dilma deveria sinalizar no sentido de romper com o fisiologismo do chamado “presidencialismo de coalizão” anunciando previamente os nomes que comporiam um ministério pequeno, formado por pessoal qualificado. É indispensável reduzir o número de ministérios, reduzir ainda mais o número de cargos comissionados e não repetir a entrega de ministérios com “porteira fechada” a partidos. Atitudes como essas talvez frustrassem parte dos que apoiam Dilma Rousseff, mas eventualmente a aproximariam de muitos que se sentem perplexos com a gravidade da crise e com a ausência de propostas factíveis que tenham em vista o interesse nacional. O debate político está quase inteiramente marcado por clivagens partidaristas simplórias, sobressaindo o azedume das defesas apaixonadas daquilo que é indefensável. Dilma já deu mostras de ser bastante forte. Certamente não é indiferente ao sofrimento, mas consegue se manter impassível em momentos críticos. Deveria reunir suas melhores energias e dizer a que veio. Nessa hora tão grave, ela pode fazer a diferença se tiver coragem de se apresentar diante da nação com propostas claras, factíveis, compreensíveis, verdadeiras. Até porque não tem nada a perder. É atitude muito difícil de sustentar e que facilmente poderia resultar em fracasso, sobretudo em terra na qual a política foi transformada em especialidade de espertalhões notabilizados por levar vantagem em tudo e em habitat de bandidos notórios que se mantêm livres escarnecendo de todos. Mas seria gesto marcado pela dignidade e elevação  – que tanta falta fazem nesse momento. As pautas e os ecos de Junho de 2013