O rosto no cinema de Ingmar Bergman por Gilles Deleuze
“O quanto se é tentado a se deixar prender aí, a se embalar aí, a se agarrar a um rosto…” Gilles Deleuze e Felix Guattari Mil Platôs, vol.3, p. 56. O que os closes de rostos podem nos mostrar nos filmes de Ingmar Bergman? Pensemos uma articulação entre o rosto e a noção de Corpo sem Órgãos, desenvolvida por Gilles Deleuze e Felix Guattari, a partir de escritos de Antonin Artaud. Alguns elementos do cinema do diretor sueco se apresentam como palco privilegiado para pensar o papel do rosto e do close up na cultura contemporânea. Cultura que centraliza no rosto a potência do falso. Evocando tanto no corpo, como no processo de individuação e na subjetividade, uma sensação de aprisionamento – que chamamos liberdade. “Existem três máscaras: a que pensamos que somos, a que realmente somos, e aquela que temos em comum” Jacques Lecoq A Vida Como Obra de Arte Podemos dizer que o rosto é a única parte do corpo que se afirma e que ajuda a decifrar o Ser e suas ficções. Entretanto, o close no cinema criou uma aura em torno do rosto. O rosto vende. O primeiro plano do rosto parece ser a diferença entre o teatro e o cinema. Toda a questão das máscaras com suas representações de duplos pretenderiam apresentar ou representar-fixar, afirmar um caráter ou um devir a partir da concentração no close do rosto. O rosto é inumano, o close apenas mostra essa característica, não acrescenta nada. Com esta frase, rapidamente concluímos o que pensam Deleuze e Guattari. Na opinião de Deleuze, Ingmar Bergman levou o rosto na direção do vazio. Em Persona (1966), duas mulheres se fundem pelo rosto. Misturam-se… “O cinema de Bergman pode encontrar sua finalidade no apagar dos rostos: ele os terá deixado viver o tempo de cumprir sua estranha resolução, mesmo vergonhosa ou odiosa”. (2) (…). “Em Persona é inútil se perguntar se são duas pessoas que se pareciam antes ou que passam a se parecer, ou, ao contrário, uma única pessoa que se duplica. Não é nada disso. O primeiro plano apenas impeliu o rosto até essas regiões onde o princípio de individuação deixa de reinar. Eles não se confundem porque se parecem, mas porque perderam a individuação, bem como a socialização e a comunicação. É a operação do primeiro plano. O primeiro plano não duplica um indivíduo, assim como não reúne dois indivíduos – ele suspende a individuação”(…)” O primeiro plano é ao mesmo tempo a face e seu apagar.” . (3) Em O Sétimo Selo (1956, imagem abaixo), o cavaleiro que volta das cruzadas onde lutou pela cristandade. Começa, entretanto, a duvidar da existência de Deus, pois tudo é destruição. Defronta-se com a Morte, que veio buscá-lo, e propõe uma partida de xadrez para adiar a efetivação de sua morte. Questiona Deus, procura Deus. Procura o rosto de Deus, já não consegue ver que Deus fez seu rosto a sua imagem e semelhança… Talvez essa a maior destruição de todas. Busca a salvação em Deus quando ela está em fugir dele. A tensão se dá entre rostificação e traços de rosticidade. O cavaleiro parece buscar a rostificação, a territorialização (homogeneização universalizante) do rosto; não suporta a desterritorialização (heterogeneização singularizante) do rosto pelos traços de rosticidade… Ele não suporta se liberar de Deus, da ordem; anseia por uma volta ao estado de fantasma, um duplo decaído de si mesmo, negando a vida enquanto fluxo no acaso. “Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete em meu rosto”.(…)”Quero que Deus estenda as mãos para mim… que mostre seu rosto, que fale comigo !”(4) Jean-Luc Godard, o pierrô? O cineasta sueco Ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918 e morreu em 30 de julho de 2007. Sendo cópia, ele agirá por repetição reativa de Deus e não enquanto repetição ativa de si mesmo. Articulando aqui o conceito nietzschiano de eterno retorno pelo ponto de vista deleuziano, repetir Deus equivale a tornar-se ressentido, um homem pequeno… “O eterno retorno do homem pequeno, mesquinho, reativo, não faz apenas do pensamento do eterno retorno qualquer coisa de insuportável; faz do eterno retorno em si mesmo qualquer coisa de impossível, introduz a contradição no eterno retorno”. (5) Em Gritos e Sussurros (1972), após uma seqüência de situações, o personagem que protagoniza a ação é apresentado em close sobre fundo escuro por alguns segundos – as vezes apenas uma metade do rosto é iluminada. Figuração de uma divisão interna, os personagens não conseguem ultrapassar o jogo da contradição. Não se trata também de ser capaz de unir as duas metades de si – o que ainda seria trabalhar com a contradição. No jogo do eterno retorno, o que retorna não cessa de retornar. Não haveria um momento em que encaixariam suas metades e seriam felizes para sempre. No jogo do eterno retorno, esses rostos pela metade sugerem o retorno do ressentimento. Sugerem a não percepção de que a felicidade está na repetição ativa, não de duas metades, mas da multiplicidade que nos constitui enquanto seres do devir (explodindo o pensamento da contradição). Nesta repetição, retorna a alegria. Retornamos como diferença. Outro momento de Gritos e Sussurros mostra as irmãs se relacionando depois de muitos reencontros abortados (abaixo). Neste ponto Bergman corta o som do diálogo e o substitui pela música de um violoncelo. Elas estão de frente uma para a outra e de perfil para a câmera. Em vez de dois rostos, pensemos num rosto rasgado ao meio. O olho de cada uma sendo parte de um mesmo rosto que agora está de frente para a câmera – da mesma forma, a boca e o nariz. Como num retrato de mulher pintado por Picasso, o rosto não vem já organizado, pronto. Ao contrário, ele vem como é, desorganicizado (pois ele não é organismo) e suplicando para que não o organizem. Talvez, se conseguirmos suportar não organizar o espaço (como tendemos a fazer sempre), possamos captar os elementos do rosto de outra forma. Olhos, narizes, bocas, testas, bochechas e sobrancelhas, enquanto elementos que engendram a sensação de um rosto – mais do que servir de elementos de quebra-cabeças a serem ordenados, organizados, organicizados.