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jornalismo digital

O ecossistema informativo nacional no governo Lula

O governo brasileiro que assumiu há poucos dias terá pela frente um desafio inédito na política nacional, porque seu sucesso dependerá mais da forma pela qual vai se comunicar com a população do que pela realização de projetos e obras. Parece um absurdo, uma incongruência, mas é uma realidade nova que reflete as mudanças em curso no modo como a informação e a comunicação passaram a ser preponderantes na política brasileira e mundial. A principal mudança na gestão do país parece ser a de que os chefes de poderes executivos nacionais, estaduais e municipais terão que se comunicar mais com a população do que assinar papéis e negociar com políticos e empresários. É que na era digital, a sustentabilidade política de um governo passou a depender, fundamentalmente, da forma como um presidente é percebido por milhões de pessoas que frequentam as redes sociais. A percepção política integra o que os especialistas em comunicação chamam de ecossistema informativo, ou seja, o conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e tecnológicos que condicionam a maneira como as pessoas desenvolvem o seu conhecimento do mundo em que vivem. Até agora as percepções envolviam dois tipos de conhecimento sobre fatos, dados e eventos noticiados pela imprensa: o conhecimento de alguma coisa e o conhecimento sobre algo. No primeiro caso, temos o puro registro de uma novidade, como por exemplo, quando lemos uma manchete de jornal. Sabemos o que aconteceu, mas ignoramos porque, como, os antecedentes e as consequências de uma notícia. A opinião pública na era digital não é mais formada a partir da lógica, causalidade e reflexão. O volume, diversidade e a velocidade com que as informações são jogadas no meio social impedem as pessoas de raciocinar como antes. Estamos na era do impacto informativo, onde as percepções são formadas a partir do acúmulo de notícias, dados, fatos e eventos, ou seja, através do bombardeio informativo nas redes sociais e em veículos convencionais como os canais noticiosos em redes fechadas de TV. A estratégia informativa do impacto é a responsável pelo fato de tantas pessoas acabarem ignorando a lógica e o chamado bom senso. Bolsonaro usou esta técnica para criar percepções distorcidas em suas lives das quintas-feiras, cujo conteúdo era depois reforçado pela reprodução em massa da mesma mensagem, numa operação coordenada pelo chamado gabinete do ódio, instalado no Palacio do Planalto. Ferramenta obrigatória O uso, durante a última campanha eleitoral, da técnica de acumulação de postagens impactantes através das redes sociais, conseguiu inclusive compensar as resistências da grande imprensa nacional à campanha de reeleição do presidente Bolsonaro. No passado, o apoio de grandes jornais e redes de televisão era um elemento decisivo para a viabilidade eleitoral de candidatos e para a sustentabilidade política de presidentes, governadores e prefeitos. Agora, a grande imprensa dedica boa parte de sua agenda noticiosa a repercutir postagens impactantes, boa parte delas fake news, produzidas nas redes sociais. A comunicação com a massa de usuários de redes sociais transformou-se numa ferramenta obrigatória para quem está no poder ou aspira a ele. O presidente eleito terá que adotar uma comunicação permanente com a população para buscar apoio para seus projetos, especialmente na primeira fase do seu governo, por conta da trágica herança financeira e administrativa deixada pelo seu antecessor. Lula não terá dinheiro suficiente para cumprir várias promessas eleitorais e precisará convencer seus seguidores a serem pacientes até que os problemas mais graves sejam resolvidos. O apoio da opinião pública é a única opção disponível para o novo chefe de governo, já que ele não conta com maioria efetiva no congresso nacional, dispõe apenas de uma temporária simpatia da grande imprensa, enfrenta resistências nas Forças Armadas e no setor empresarial privado. Esta conjuntura política e as novas condições criadas pelos impactos informativos na formação da opinião pública nacional aumentaram a importância que as estratégias de comunicação passam a ter nas prioridades governamentais. As armadilhas políticas das fake news Nós, jornalistas, temos uma dívida com Bruno e Dom Jornalismo e imprensa não são sinônimos

O jornalismo diante de um “divórcio” complicado

A relação do jornalismo com as elites políticas e empresariais entrou num período de turbulência em quase todo mundo, sinalizando a possibilidade de ruptura de um modelo vigente há mais de um século na imprensa. A turbulência surgiu a partir da divisão entre liberais democráticos e conservadores autoritários nas várias esferas do poder bem como no mundo corporativo. O caso brasileiro permite visualizar com mais clareza esta ruptura na classe dirigente à qual a imprensa e parte considerável do jornalismo sempre estiveram vinculados. Temos o segmento conservador autoritário aglutinado em torno do presidente Bolsonaro e o setor liberal democrático que reúne lideranças de partidos tradicionais e dirigentes de grandes corporações privadas. No empresariado, há os grupos como o Itaú, liberal na política, mas ortodoxo nos negócios, enquanto o grupo Havan segue o populismo corporativo, no mais estrito senso. O surto de desinformação e notícias falsas que tira o sono dos jornalistas e provoca insegurança em toda a sociedade tem uma de suas origens na divisão surgida dentro das elites. A manipulação de informações não é um fenômeno novo, mas adquiriu uma relevância crítica quando o segmento conservador autoritário do establishment passou a enviesar, descontextualizar e falsificar notícias para favorecer seus interesses. Se antes a desinformação era minimizada, o racha nas elites escancarou divergências na luta pelo poder e colocou o jornalismo numa situação muito difícil porque compromete a confiabilidade nas notícias publicadas pela imprensa. Divergências na elite sempre existiram, mas o que se nota agora é que o pacto de cavalheiros, vigente há décadas, começa a ser rompido a partir dos Estados Unidos, com a extrema direita de Donald Trump e grupos também extremistas na Alemanha, Espanha, Itália, França, Hungria, Polonia e Ucrânia, só para citar os exemplos mais em evidência. Na esmagadora maioria destes países, a divisão no establishment acontece entre um setor tradicional, de tendência liberal, intimamente conectado aos grandes interesses empresariais, e uma fração ultraconservadora reunindo políticos que se aproveitam do descontentamento de setores da população e tem o apoio de empresários preocupados em ascender financeira e socialmente. Historicamente, a maioria da imprensa mundial manteve uma relação preferencial com as elites políticas e empresariais porque ambas forneciam as condições institucionais e financeiras que chegaram a gerar lucros anuais de até 30% aos donos de jornais, editoras, emissoras de rádio e TV. Esta relação criou uma dependência dos poderosos que acabou condicionando um discurso, rotinas, regras e valores bastante diferentes daqueles que Bill Kovac e Tom Rosenstiel consagraram em seu livro Elementos do Jornalismo: “O objetivo primário do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações que eles precisam para serem livres e autogovernados” (*). A sobrevivência da imprensa A relação preferencial com as elites tornou-se inevitável pela necessidade de investimentos vultuosos para criar um jornal, uma revista ou telejornal. Além disso, a publicidade paga que viabilizava a sustentabilidade da imprensa era baseada em anúncios voltados para consumidores das classes média e alta, o que acabou levando o jornalismo a se preocupar, majoritariamente, com o segmento social com maior poder aquisitivo. Quando surgiram a internet e as redes sociais, o jornalismo foi apanhado no contrapé, porque as pessoas se tornaram protagonistas na produção de notícias e a imprensa começou a perder relevância para a grande massa da população. As redes sociais, em particular, abriram espaço para iniciativas populistas no terreno informativo, que se aproveitaram da ausência de regras para enveredar pelo terreno da desinformação e do sensacionalismo. Isto acabou contribuindo para semear a insegurança informativa no público dos veículos jornalísticos tradicionais. O dilema da imprensa se tornou ainda mais crucial quando a divisão na elite agravou a vulnerabilidade financeira e institucional dos conglomerados midiáticos, já que a maioria das empresas tradicionais migrou sua publicidade para a internet. A queda no faturamento provocou demissões em massa de repórteres, editores, técnicos e pessoal administrativo, colocando o jornalismo diante do desafio de romper, ou pelo menos, revisar a aliança preferencial com as elites governantes, aqui no Brasil, e em boa parte do mundo. Esta é uma escolha que muitos rotularam de ideológica ao tentar situá-la dentro do contexto da polarização entre o setor liberal democrático e o conservador autoritário. Mas, por sua natureza, é uma decisão essencialmente profissional, pois a internet deu ao jornalismo a possibilidade de produzir e disseminar notícias sem a dependência obrigatória de grandes empresas. Além disso, a profissão de jornalista tornou-se essencial para a orientação do público num contexto informativo marcado pela desinformação e pelas notícias falsas. Nestas condições, o “divórcio” entre jornalismo e elites poderia marcar uma nova inserção da profissão na sociedade da era digital. A manutenção do modelo atual de aliança estratégica com o establishment agrava a tendência à irrelevância do jornalismo no conjunto da sociedade, porque o afasta gradativamente dos segmentos da população que estão ganhando protagonismo político, econômico e social, através da ocupação gradual de mais espaços no ambiente digital. (*) https://www.amazon.com.br/Elementos-Jornalismo-Kovach-Bill-Rosenstiel/dp/8575090739 pag 12 O futuro do jornalismo depende da sua sustentabilidade financeira O que é ser jornalista hoje? O apoio da grande mídia ao golpe de 64 Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo? O jornalismo atual usa rótulos velhos para uma nova realidade

Jornalismo e imprensa não são sinônimos

Para a maioria dos jornalistas, uma afirmação como esta soa como um paradoxo ou, no mínimo, uma heresia. Mas agora, na era do jornalismo digitalizado, ela corresponde a uma realidade que aos poucos começa a se tornar mais clara. A principal consequência da diferenciação entre jornalismo e imprensa está na separação entre produção de notícias (uma profissão) e a comercialização da notícia (um negócio chamado imprensa), duas atividades com natureza e objetivos distintos. Até agora, a produção e o negócio se confundiam porque a veiculação de notícias dependia de estruturas, tecnologias e organizações cuja existência e desenvolvimento apoiava-se em investimentos financeiros. As empresas se apropriaram do conceito de jornalismo logrando com isto minimizar o lado comercial da sua atividade. Com isto surgiu um discurso corporativo que usa valores jornalísticos como objetividade, independência, imparcialidade, isenção e liberdade de informação para encobrir a elitização informativa e o atrelamento do noticiário aos interesses empresariais. O direito à liberdade de informação acabou se confundindo com o conceito de liberdade empresarial, embora ambos sejam conceitualmente distintos. O jornalismo na era digital deu aos profissionais e praticantes de atos jornalísticos (também conhecidos como jornalistas amadores) a possibilidade de publicar notícias sem necessidade de grandes investimentos, como mostram fenômenos como blogs pessoais, redes sociais virtuais e mais recentemente as newsletters independentes disponibilizadas através de assinaturas pagas. É uma revolução editorial ainda em desenvolvimento e que tem um pé no passado e outro no futuro da produção noticiosa. Mas seu principal mérito atual é o de permitir clarear a confusão entre o que é produzir notícias e o que é comercializá-las. A produção de notícias jornalísticas tem como objetivo primário fornecer às pessoas dados, fatos, eventos e ideias devidamente contextualizados por meio da agregação de significados como relevância, pertinência, exatidão, confiabilidade e atualidade, visando contribuir para o desenvolvimento integral de pessoas e comunidades de pessoas. O jornalismo, obviamente, necessita de meios para materializar este objetivo como imprimir em papel, transmitir por áudio ou imagens, ou ainda por meio da digitalização. A mimetização jornalismo/imprensa As empresas jornalísticas têm como objetivo gerar receitas financeiras capazes de cobrir as despesas operacionais, pagamento de salários e remuneração de investidores através de um sistema de produção industrial que usa como matéria prima as notícias produzidas por jornalistas profissionais e amadores. Fica claro, portanto, que jornalistas e empresários dependem um do outro para atingir seus objetivos específicos. Mas o que se perdeu com o tempo, é a diferença fundamental entre ambos. O jornalismo tem um objetivo social, enquanto as empresas visam um lucro repartido individualmente. Os jornalistas precisam resgatar a caracterização fundamental de sua atividade para evitar que ela seja contaminada pela crise no modelo de negócios das empresas Os jornalistas precisam estabelecer uma clara diferenciação entre a produção de notícias socialmente relevantes e a função empresarial para evitar serem atropelados pela crise que afeta o modelo de negócios das corporações jornalísticas. Os jornais, por exemplo, sofreram uma forte perda de publicidade para a internet, o que gerou enormes desequilíbrios na receita empresarial. Já o exercício do jornalismo enfrenta um dilema diferente, o desenvolvimento de uma nova monetização da produção de noticias, algo totalmente diferente a queda da lucratividade nas organizações da imprensa. A crise das empresas é estrutural, ou seja, elas terão que achar outro modelo de negócios para sobreviver, enquanto a crise do jornalismo é conjuntural, pois trata-se da adaptação de um modo analógico de produzir notícias para um modo digital. O jornalismo continua o mesmo, só com novos procedimentos, regras e valores. Na medida em que ambas as partes logrem resolver os problemas criados pela digitalização informativa, surgirá um novo tipo de relacionamento que inevitavelmente terá como norma básica o o fim do mimetismo entre o jornalismo e a imprensa. Publicado originalmente no Medium de Carlos Castilho. Era pós Trump põe a imprensa diante de novos desafios editoriais Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo? https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-jornalismo-vive-o-conflito-entre-novas-tecnologias-e-velhos-valores/ O discurso jornalístico e as fake news Jornalismo para ou com o leitor? As armadilhas ocultas na narrativa jornalística online O jornalismo, a mentira e as redes sociais Os muitos dilemas da imprensa no governo Bolsonaro A batalha pelo controle do fluxo de notícias Como as novas tecnologias e as notícias falsas impactam o jornalismo O jornalismo no salve-se quem puder da desinformação em escala planetária Em busca do jornalismo perdido

Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo?

O jornalismo nunca foi e nem pode ser 100% isento ao produzir uma notícia. A afirmação pode chocar muita gente, inclusive profissionais do jornalismo, mas ela espelha uma realidade que raramente é levada em conta no julgamento de uma informação. Isto porque o uso de processos digitais no jornalismo relativizou o conceito de isenção permitindo uma maior diversificação nas notícias, o que ampliou muito o universo informativo das pessoas.  ideia de que o jornalismo é, por princípio, isento foi construída a partir de uma motivação financeira que nada tem a ver com o exercício da profissão. No final do século XVIII os grandes barões da imprensa norte-americana, Joseph Pullitzer e Randolph Hearst distorciam e falsificavam notícias com o objetivo de conquistar leitores numa guerra feroz por audiências e por faturamento em publicidade. Foi o período áureo da chamada “imprensa marrom” ou sensacionalista, que após 20 anos deixou como saldo uma desconfiança generalizada de parte do público norte-americano em relação aos grandes jornais. A queda dos índices de leitura assustou tanto Pullitzer como Hearst, bem como os donos de outros jornais e até mesmo os políticos, o que levou a imprensa a tentar reverter a situação ao levantar a bandeira da imparcialidade nas coberturas jornalísticas. Foi um maciço esforço de marketing corporativo apoiado pelas elites políticas e empresariais, iniciativa que acabou levando a incorporar o tema da isenção nos manuais jornalísticos usados até hoje. Mas com a generalização do uso das tecnologias digitais na produção de informações, surgiu a avalanche noticiosa e com ela a multiplicação de versões diferentes de um mesmo dado, fato ou evento, produzidas por jornalistas e não jornalistas, através de redes sociais. O fato de jornalistas, supostamente isentos, estarem publicando notícias diferentes sobre um mesmo evento tornou evidente algo que os pesquisadores do conhecimento já conheciam há muito tempo. Todo indivíduo capta dados, fatos e eventos da realidade que o cerca através dos seus cinco sentidos. Estes dados são depois inseridos na memória individual onde cada pessoa desenvolve percepções e opiniões, que variam de indivíduo para indivíduo dependendo do seu nível cultural, experiência de vida, grau de informação e situação econômica para citar só os fatores mais importantes. Assim, qualquer notícia é o resultado da recombinação mental de vários dados captados pelo jornalista, dando origem a um conteúdo que incorpora a visão de mundo do profissional. O conceito tradicional de isenção ou imparcialidade no jornalismo foi alterado também por mudanças provocadas pela digitalização no processo de produção das notícias. Até agora, elas resultavam basicamente do trabalho de um grupo restrito de profissionais, mas na era digital o tradicional muro separando o jornalismo da publicidade está começando a cair. Trata-se de uma alteração de rotinas que ainda prevalece nos grandes veículos, mas que aos poucos começa a ganhar espaço na imprensa local e regional. Engajamento, a nova palavra mágica no jornalismo O jornalismo na era digital está incorporando às suas rotinas a preocupação com o engajamento social, ou seja, desenvolver uma crescente relação de interatividade entre jornalistas e o público. Os profissionais já não assumem mais a postura de quem sabe o que as pessoas precisam saber, mas buscam nelas os temas e a orientação sobre o que deve ser noticiado e como. O engajamento é cada vez mais visto como uma ferramenta indispensável na produção de notícias que incorporem diferentes versões e, até mesmo, no desenvolvimento da sustentabilidade financeira de um veículo digital. Este mesmo princípio começa a ser aplicado no relacionamento das redações com um tipo especial de público formado por possíveis anunciantes. No Canadá, Suécia e Austrália já existem jornais locais online que mantêm uma relação permanente de troca de informações com empresários locais, anunciantes ou não. As experiências ainda não permitem avaliações definitivas, mas artigos publicados por revistas acadêmicas revelam que os empresários que aceitaram um diálogo com as redações passaram a contribuir com dados e fatos para conteúdos jornalísticos. Já os jornalistas envolvidos nestas experiências, adotaram a transparência total nos contatos e informações fornecidas por eventuais anunciantes como forma de manter a autonomia editorial sem comprometer a credibilidade junto ao público. É o caso do Sopris Sun, da cidade de Carbondale, no estado norte-americano do Colorado, cuja associação comercial local mantém reuniões mensais com a redação para troca de ideias sobre problemas da cidade e sobre a responsabilidade dos empresários na sustentabilidade do jornal. Na nova realidade digital, a imparcialidade passa claramente a ser vista como uma meta e não mais como um atributo intrínseco de uma notícia. As ciências da cognição, sobre as quais se baseia o contato do jornalista com a realidade, atestam que a busca da isenção e da objetividade são objetivos permanentes, mas inalcançáveis em sua plenitude. Isto muda muita coisa no jornalismo atual. A maior delas é a necessidade de ter que abandonar dogmas como o da isenção no exercício da profissão. https://www.zonacurva.com.br/o-jornalismo-vive-o-conflito-entre-novas-tecnologias-e-velhos-valores/ O discurso jornalístico e as fake news Em busca do jornalismo perdido O jornalismo no salve-se quem puder da desinformação em escala planetária

O jornalismo vive o conflito entre novas tecnologias e velhos valores

A popularização frenética das novas tecnologias digitais na comunicação tornou necessária e urgente uma mudança profunda nos valores que orientam o exercício do jornalismo nos últimos dois séculos. É toda uma cultura profissional consolidada durante quase dois séculos que está sendo submetida a um tratamento de choque. As redações não se discute mais se o computador é melhor ou pior do que a máquina de escrever, nem se o jornalismo online é ou não eficiente na publicação de notícias. Mas em compensação, a maioria absoluta dos profissionais ainda acredita que o jornalismo deve ser imparcial e objetivo, que os conteúdos publicados num jornal, telejornal ou revista são a expressão da verdade. Hoje, a ciência já provou que não existe mais imparcialidade completa, nem objetividade total e muito menos que é possível chegar à verdade absoluta. A avalanche de pesquisas, artigos e debates publicados na internet mostrou a necessidade de relativizar estes valores porque eles já não atendem mais às realidades que motivaram seu surgimento. A imparcialidade, objetividade, isenção e veracidade são valores desenvolvidos pela indústria de jornais e revistas no século XVIII como uma reação de alguns grupos da imprensa contra o chamado “jornalismo marrom” (sensacionalista) que faturava alto ao publicar notícias escandalosas, inescrupulosas ou mentirosas. Foi uma disputa financeira onde grupos midiáticos vinculados às elites sociais apostaram na moralização da imprensa por meio de campanhas contra a imoralidade, mistificação, falsidade e desvirtuamento de dados ou fatos. A imprensa sensacionalista ainda existe em várias partes do mundo, mas ela perdeu o protagonismo de antigamente, porque seus pressupostos perderam validade diante do crescimento de corporações jornalísticas interessadas em participar do jogo político e da luta pelo poder econômico. Os valores da imprensa dos séculos XIX e XX não perderam validade, mas a estrutura de produção sobre a qual se apoia o jornalismo digital do século XXI tornou necessária e inadiável a adoção de novos conceitos e parâmetros ideológicos. O impacto devastador da digitalização Os valores incorporados à atividade jornalística justificam e explicam as normas e rotinas da profissão. Quando se diz que o jornalismo é imparcial, isto justifica a norma de dar espaços iguais aos dois lados de um problema, e a rotina de ouvir todos os protagonistas. Esta atitude igualitária funcionou durante mais de um século como um antídoto ao unilateralismo, sectarismo e partidarismo da imprensa marrom. Serviu também para que a imparcialidade, veracidade e objetividade se tornassem ideias incontestáveis e acima de qualquer questionamento. A digitalização do jornalismo e da imprensa provocou o surgimento de uma nova estrutura de produção de notícias. As empresas jornalísticas entraram em crise por conta da necessidade de buscar outras formas de sustentação financeira porque houve uma migração da publicidade paga para a internet, ao mesmo tempo em que o público passou a preferir publicações online, gratuitas e onipresentes. A crise do modelo convencional de negócios na mídia obrigou as empresas e os profissionais a depender cada vez menos de anunciantes e buscar cada vez mais o apoio financeiro direto de leitores, ouvintes e telespectadores. Isto está obrigando os jornalistas a dialogar com o publico em pé de igualdade em vez da postura de superioridade tradicionalmente adotada pelos profissionais e justificada pela exclusividade no acesso aos tomadores de decisões no âmbito público e privado. A internet quebrou este monopólio na mediação entre autoridades e o cidadão comum, exercida pela imprensa. Agora os presidentes, parlamentares, empresários e até juízes se comunicam diretamente com a população através de redes sociais como o Facebook, Twitter ou canais eletrônicos como WhatsApp. O compromisso com a imparcialidade foi duramente afetado pela avalanche de informações contraditórias publicadas nas várias plataformas de comunicação na internet. Mais do que nunca a metáfora do copo meio cheio ou meio vazio mostrou como existem várias maneiras diferentes de perceber um único fato, dado ou evento. O mesmo fenômeno da diversificação de versões alterou a forma como o jornalismo lida com a questão da objetividade e exatidão de notícias. Ambos os conceitos estão sendo relativizados e é cada vez menor o número de jornalistas que os utilizam no sentido absoluto. Processo similar afeta a questão da credibilidade onde os parâmetros tradicionais estão gradualmente sendo substituídos por processos digitais. Indivíduos e instituições antes tidos como referências obrigatórias em matéria de confiabilidade informativa, cedem espaços para novos paradigmas como os sistemas de reputação baseados em dados estatísticos e em cálculos probabilísticos. A certificação de credibilidade está deixando de ser dicotômica, tipo 100% verdadeira ou 100% falsa, para ser avaliada como mais ou menos próxima da verdade. O desafio do jornalismo de diálogo Todas estas mudanças levam a uma nova conjuntura informativa cujo desdobramento implica o desenvolvimento de novos valores profissionais. O modelo de negócios baseado na publicidade paga está sendo substituído pela participação monetária dos usuários da mídia digital, seja por meio dos chamados muros de pagamento (paywall), seja por doações ou por assinaturas. Todas estas modalidades se baseiam numa estreita relação entre jornalistas e o público. Se antes o jornalista se auto definia como o personagem que “sabia o que as pessoas precisavam saber”, ou seja, as pessoas dependiam dele, agora o profissional é um parceiro em pé de igualdade com o resto da comunidade. Ele depende do conhecimento das pessoas para poder exercer sua atividade como gestor de informações socialmente relevantes para a comunidade. A ideia do jornalismo acima dos problemas ainda é dominante nas redações, especialmente em países como o Brasil. Mas a tendência ao “jornalismo de diálogo” ou “jornalismo cívico” ganha cada vez mais adeptos como mostram os projetos Spaceship Media (https://spaceshipmedia.org) e Engaged Journalism (https://www.engagedjournalism.com) , o primeiro norte-americano e o segundo europeu. Há ainda o projeto Membership Puzzle (https://membershippuzzle.org) cujo objetivo é promover a participação da comunidade na produção de notícias locais por meio de uma colaboração interativa entre moradores e jornalistas. O jornalismo de diálogo é, essencialmente, a reedição ampliada e digitalizada do chamado “jornalismo cívico, dos anos 90, que tentou tirar a profissão de um pedestal para inseri-la no dia a dia dos problemas concretos das comunidades. Apesar de ter recebido um considerável apoio financeiro, o jornalismo cívico

Quanto mais informação, mais dúvidas

Este é o grande paradoxo enfrentado que todos nós começamos a vivenciar na era digital quando nos defrontamos com uma avalanche de versões contraditórias sempre que a imprensa aborda um tema complexo, como por exemplo, a reforma da previdência ou na crise na Amazônia. É um fenômeno que contraria nossa maneira de ver a informação e sinaliza um profundo desajuste em todo o sistema de produção, processamento e disseminação de notícias jornalísticas. A avalanche de dados, fatos, ideias e eventos, publicados na internet, multiplicou também as incertezas sobre quase tudo o que conhecemos sobre a sociedade e o mundo em que vivemos. É que a avalanche informativa ampliou exponencialmente o número de percepções e opiniões tanto sobre o que já sabemos como sobre aquilo que começamos a descobrir. Trata-se de uma mega transformação irreversível em nossa cultura informativa e sobre a qual a grande imprensa mantem um intrigante silêncio. O paradoxo mais informação/menos certezas abala um dos princípios básicos da mídia tradicional que é a ideia da notícia instrumento eficaz na definição do que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. Trata-se de uma percepção difundida massivamente na opinião pública e que viabiliza o negócio da imprensa, quando ela troca noticias para receitas publicitárias. Quanto mais abstratos forem os processos, fenômenos e ideias tratados pelos meios de comunicação, maior a quantidade de dúvidas e inseguranças, fenômeno que acaba alimentando o discurso do ódio porque diante de incertezas as pessoas tendem a agarrar-se ao que consideram seguro rejeitando o que contraria suas convicções. Para ter uma ideia deste fenômeno basta ver a radicalização nas discussões sobre o governo Bolsonaro em redes sociais como Facegbook, Twitter e Whatsapp. A avalanche informativa é um fato concreto e irreversivel. Até 2010, institutos especializados mediam o volume de material inserido em sites da internet, mas a quantidade cresceu tanto que os números se tornaram pouco significativos. O IDC ( International Data Corporation) afirma que até o final de 2020, cerca de 1,7 megabytes de novas informações estarão sendo disponibilizados online por segundo e por ser humano. As estimativas sinalizam que até dezembro do ano que vem, o total de dados digitalizados na web deve atingir os 44 zetabytes, ou 44 trilhões de gigabytes. Trata-se de um volume tão grande que supera em muito a nossa capacidade de imaginá-lo. A era da complexidade O aumento vertiginoso das incertezas no trato diário com a realidade que nos cerca configura aquilo que os especialistas batizaram de era da complexidade. Não há mais coisas simples, tipo preto ou branco. Tudo agora é potencialmente complicado dependendo da intensidade de dois fenômenos conhecidos como visibilidade seletiva (selective exposure) e percepção seletiva (selective perspective), ambos estudados pelos psicólogos norte-americanos Albert Hastorf e Hadley Cantril (*) , a partir da comparação das reações dos torcedores ao resultado de um jogo de futebol americano. A pesquisa mostrou que as pessoas tendem a se informar, preferencialmente, em jornais, revistas, livros, rádio e televisão com os quais possui algum tipo de simpatia política, ideológica, religiosa ou social. A selective exposure, no jargão acadêmico, é uma forma que o indivíduo usa por dois motivos predominantes: sentir-se confortável porque compartilha as mesmas ideias políticas, religiosas, econômicas ou sociais da publicação; e filtrar os conteúdos a que tem acesso para reduzir o índice de complexidade da leitura, audição ou visualização. Já a selective perception é um processo pelo qual as pessoas avaliam um novo dado, fato, evento ou notícia em função daquilo que já sabem ou conhecem. Os dois processos acabam por consolidar opiniões e conhecimentos pré-existentes sendo fundamentais na formação das chamadas “bolhas informativas”, um recurso que a maioria das pessoas usa para evitar a perturbadora sensação de dúvida, incerteza e vulnerabilidade a posições antagônicas. As bolhas informativas estão em rota de colisão direta com a irreversível avalanche informativa na internet. Não é mais possível frear o aumento de dados digitalizados e disponibilizados pela internet, o que gera o também inevitável corolário de que as incertezas também tendem a se tornar mais intensas e permanentes. Tudo indica que já estamos sendo levados a optar entre aderir a alguma das milhares de “bolhas informativas” ou aprender a conviver com a dúvida e a incerteza. A primeira opção é a mais fácil porque não implica grandes dilemas ou conflitos, mas nos coloca num ambiente irreal. Já a convivência com a dúvida altera fundamentalmente a nossa maneira de ver o mundo e as pessoas, porque nos obriga a levar sempre em consideração a possibilidade de que nossas opiniões ou percepções estejam equivocadas. Significa admitir que alguém sabe o que eu não sei, e que a solução de qualquer dilema, ou dificuldade, exige um diálogo. É o mundo das novas tecnologias nos forçando a assumir novos comportamentos, regras e valores. (*) They saw a game; a case study. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 49(1), 129–134. http://dx.doi.org/10.1037/h0057880 Publicado originalmente na página Medium de Carlos Castilho. https://www.zonacurva.com.br/o-discurso-jornalistico-e-as-fake-news/ A nova função da notícia na guerra por corações e mentes Facebook: uma autocracia encurralada Taxação das plataformas digitais já!