Zona Curva

literatura

Hilda Hilst: a obscena senhora silêncio

A busca de uma trincheira em que se viva literatura. Além de seus livros, sempre me fascinou a atitude de Hilda Hilst, que, aos 33 anos, abandonou Sampa e rumou para sua Casa do Sol, há 10 quilômetros de Campinas, um verdadeiro refúgio para a criação artística como profissão de fé. Hilda viveu lá por décadas rodeada por 30 cachorros e gatos e recebendo a visita de amigos como o escritor Caio Fernando Abreu (que até morou por lá um período), o grande crítico Leo Gilson Ribeiro, a escritora Lygia Fagundes Telles, entre outros. Recentemente, o imóvel foi tombado, conforme informa o site da prefeitura de Campinas. “Hoje, a “Casa do Sol” atua como difusor de produções culturais, hospedagem de estudantes bolsistas que desenvolvam projetos cuilturais e guarda o acervo pessoal de Hilda Hilst”, informa o site. O curta A obscena senhora silêncio (2010), de Alexandre Gwaz e Leandra Lambert, mostra um pouco do cotidiano na Casa do Sol, os contatos de Hilda com discos voadores (é isso mesmo) e figuras imaginárias. Tudo embalado em uma atmosfera sombria ao som de Debussy e Satie. Hilst morreu em 2004 antes de completar 74 anos. Conhecida pela sua produção poética, Hilst também publicou crônicas no jornal campineiro Correio Popular. Numa delas, Hilst mostra seu ativismo único sobre o escândalo da hora (estávamos em 1993): o deputado Inocêncio de Oliveira e suas maracutaias. No texto, ela convoca “várias senhoras da terceira idade, eu inclusive…” à criação do EGE (Esquadrão Geriátrico de Extermínio), em que munidas de bengalas com estiletes na ponta besuntadas de curare, veneno usado pelos indígenas nas pontas de flechas, espetariam no “distinto buraco malcheiroso desse vilões” (políticos). Toda mulher é meio Leila Diniz* Na mesma crônica, Hilst dispara o seguinte poema, publicado originalmente em seu livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, de 1974: de cima do palanque de cima da alta poltrona estofada de cima da rampa olhar de cima LÍDERES, o povo Não é paisagem Nem mansa geografia Para a voragem Do vosso olho POVO. POLVO UM DIA. O povo não é o rio De mínimas águas Sempre iguais Mais fundo, mais além E por onde navegais Uma nova canção De um novo mundo E sem sorrir Vos digo: O povo não é Esse pretenso ovo Que fingis alisar, Essa superfície Que jamais castiga Vossos dedos furtivos POVO. POLVO. LÚCIDA VIGÍLIA. UM DIA. (extraído do livro Cascos & Carícias, Nanquim Editorial, 1998, página 36)

Acorda, Paraty na Flip 2013

No dia 6 de julho (sábado), penúltimo dia da Flip (Festa Literária de Paraty), o povo da pequena cidade fluminense acordou. O movimento Acorda, Paraty mobilizou cerca de 200 moradores e interditou a ponte sobre o rio Perequê-açu, que liga a festa ao centro histórico, por 30 minutos. Os paratyenses aproveitaram a presença da mídia grande por lá como os jornalões O Globo e a Folha de São Paulo, e a TV Globo, além de milhares de turistas que lotam a cidade, para mostrar sua indignação contra a precariedade dos serviços públicos. As faixas do protesto pediam melhorias, principalmente, na segurança, educação e transporte público. Segundo os moradores, somente nesse ano, foram 31 assassinatos na cidade de 35 mil habitantes. Durante a manifestação, foi lida uma pauta com diversas reivindicações como a efetivação de professores aprovados em concurso e a preservação de áreas de mangue. Segundo moradores da cidade entrevistados pelo Zonacurva, há constantes faltas de luz e água na cidade e o saneamento básico é precário. “Após trabalhar nos restaurantes e pousadas, voltamos para a Ilha das Cobras e o Campinho (bairros periféricos da cidade) em que a realidade é outra, por lá, só tem violência e tristeza”, afirmou manifestante que não quis se identificar. Mais fotos do protesto:

Disneylândia para intelectuais na Flip 2013

O exemplar de Eduardo Galeano descansa solitário na pilha errada na Livraria da Travessa da Flip, a mais cheia que conheci na vida. Duas de óculos o encontram e o disputam. Risadinhas amarelas. “Nossa, aqui é a nossa Disneylândia”. O Galeano volta para a prateleira. Ao contrário dos personagens de Disney, a lista daqui é multifacetada: artistas de rua, intelectuais de barba, hare krishnas em cantoria, séquito para leitora de poesia em barco no rio Perequê-açu (segundo o aviso, o passeio dura 50 minutos), descolados de plantão, vendedores de cordel caracterizados, e mais, como diz o outro, o público em geral. Na 11ª Flip (Festa Literaria de Paraty), engana-se quem acredita que os escritores e professores de blasers escuros são os protagonistas. A professora de português anônima está em todas as partes. A intelectual caminha cambaleante em dupla ou em pequenos grupos com sede por novidades pelas pedras de Paraty. A idealizadora da Flip, a inglesa Liz Calder foi ‘gênia’ ao bolar a festa. Não existe cenário melhor para o deleite intelectual do que Paraty. Em devaneio, imagino dois dos melhores escritores brasucas vivos, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, abandonando a toca e circulando tranquilamente pelas mesas do evento. Devaneio ainda mais: ambos papeando por horas com a longa fila de jornalistas. Muita coisa acontece por aqui ao mesmo tempo. Ao entrar para ver as fotos do fotógrafo americano apaixonado pelo Brasil, David Drew Zingg, dos bambas da MPB, fui surpreendido com as divagações certeiras do escritor Bráulio Tavares sobre Lugar Público, obra de 1965 do maldito José Agrippino de Paula para a Rádio Batuta do IMS (Instituto Moreira Salles). Lembrei do lançamento pela Editora Papagaio há mais de 10 anos do livro mais conhecido de Agrippino, Panamérica, publicado originalmente em 1967, e que fez a cabeça da galera da Tropicália. Para arrematar o primeiro dia, vi cena que seria inspiradora para as trips literárias de Agrippino: cercado por duas dezenas de ‘fãs’, o popstar Gilberto Gil incólume em seu carro com insufilm nos vidros fechados, guiado por motorista-segurança em terno preto. A menina de uniforme escolar e bloquinho na mão vibrou: “eu vi ele, eu vi ele”.

Fonseca romântico

Garoto idiossincrático esse José. Do mundo dos livros tira o alimento para sua realidade. A Paris de vielas estreitas transforma-se no mundo ‘real’ em que vive seus primeiros oito anos de vida, a lembrança da rotina na pequena e ‘irreal’ cidade mineira é nebulosa e episódica. Em tenra idade, lá pelos 9, já no Rio de Janeiro, José começa a deliciar-se com o footing das elegantes ladies da confeitaria Colombo e das mulheres de vida fácil da Lapa. Sem UPPs e capitão Nascimento, José delicia-se com a atmosfera dos cafés, os encantos das ruas de João do Rio e seus carnavais ingênuos. Mesmo assim, vaticina, ao contrário de muitos escritores inspirados na observação cotidiana: “a melhor inspiração do escritor é sempre encontrada nos livros.” Cafetões munidos de navalhas e o assustador Madame Satã, que peitava a polícia em míticas brigas, compunham o lado B da cidade. Talvez aí o único momento em que Fonseca visita a fauna de desajustados que povoa seus outros livros. Em José, o livro, não há espaço para violência e revolta, nele encontramos um Fonseca romântico e passadista do alto de seus 86 anos. Já em Axilas e outras histórias indecorosas, livro lançado em 2011 junto com José, personagens característicos de Fonseca dão vida a contos curtos e diretos. Em um misto de autobiografia velada (“todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras”) e Bildungsroman, Fonseca amolece e canta o Rio de Janeiro como um Tom Jobim. Outras épocas em que as drogas praticamente inexistiam. O único cocainômano era uma lenda apontada nas ruas. Mais, a cocaína e a maconha não eram proibidas. Sem luxos, José trabalhou a partir dos 12 anos, refrigerante era água com pasta de dente diluída. A imaginação do menino o leva a ser escritor quando adulto. Apesar que José prefere ser entregador, “entre as muitas ocupações que José teve em sua vida essa de entregador foi a mais agradável de todas, certamente mais prazerosa que a de escritor”. Rubem Fonseca e o silêncio que não apaga o passado Vizinho da Biblioteca Nacional, José lia e lia e os pockets books policiais que a tia Natália comprava nos sebos podem ter levado o José escritor a escrever seus contos repletos de crimes e figuras detetivescas como Mandrake. Se é Rubem Fonseca inteiro ou em partes o que lemos nas páginas de José, não saberemos já que o autor recluso não tolera entrevistas. O que surpreende é o autor de contos crus e perversos como O Cobrador desnudar-se em sua porção leve e poética. Relatos sobre o amor extremo e seus avessos