A realidade da renda básica no Brasil pós-Lula
por Giuseppe Cocco e Silvio Pedrosa É bem difícil iniciar um balanço das políticas sociais dos quatro governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil (dois governos de Lula, de 2003 a 2011, e dois de Dilma Rousseff, de 2011 a 2015) neste momento em que o mandato em curso enfrenta não somente uma contestação popular maciça, mas também uma dramática depressão econômica, um gigantesco escândalo de corrupção e um processo de impeachment recente. Apesar disso, essa situação realmente catastrófica não impede que as políticas sociais do governo Lula tenham legitimado socialmente um poder que poderia ter perdurado, uma vez que o PT planejava a recandidatura de Lula em 2018. Ao mesmo tempo em que o poder do PT desmorona, suas políticas sociais e, sobretudo, o programa mais popular, o Bolsa Família, são objeto de consenso. Ninguém ousaria, hoje, querer reduzi-las, reformulá-las ou extingui-las. No entanto, trata-se de um consenso paradoxal, no momento em que essas políticas sociais são abaladas por três processos. Primeiramente, a violenta recessão associada à inflação muito elevada dos últimos anos reduzem progressivamente essas políticas sociais: tanto a seleção dos beneficiários quanto o montante dos repasses estão atualmente congelados, sem acompanhar a enorme inflação. Além disso, enquanto os programas minguaram nos últimos dois ou três anos, as populações a serem beneficiadas aumentam constantemente. Por fim, o Brasil, assim como toda a América do Sul, retorna a políticas neoliberais, de modo que o segundo governo de Dilma Rousseff começou a implantá-las já desde sua ilusória vitória eleitoral. O PT e seus aliados não só efetuaram cortes drásticos nas despesas públicas e na proteção social (seguro-desemprego para os mais jovens, proteção dos pescadores e pensão por viuvez), mas também trabalharam para reformar especialmente o sistema de aposentadorias. Qualquer seja o cenário político institucional de saída da crise atual, até mesmo no caso – muito improvável – de sobrevivência do PT e de Lula, as aposentadorias permanecerão reduzidas com a adoção das receitas neoliberais. No entanto, veremos mais adiante que as aposentadorias constituem, junto com o salário mínimo instaurado já em 1938 pelo regime Vargas para o trabalho assalariado, o dispositivo fundamental de proteção social no Brasil. Hoje, portanto, o destino do Brasil, “país do futuro”, é muito imprevisível, e a evolução em curso suscita um pessimismo generalizado. Nessa extrema incerteza, as mobilizações da esquerda residual, que defende o governo, desempenham um papel extremamente perverso, correndo o risco de abrir caminho para um “lepenismo” tropical. Ao mesmo tempo, o vazio deixado pela derrocada do PT e da esquerda também pode transformar-se em brecha para a radicalização de certas experiências positivas dos últimos vinte anos, como ocorreu em junho de 2013. Este artigo tem como objetivo avaliar o alcance das políticas sociais realmente existentes no Brasil no período Lula do ponto de vista do debate geral sobre a Renda Básica de Cidadania. Ele inclui duas questões: 1. Essas políticas sociais – sobretudo os repasses monetários – foram pensadas na perspectiva de uma renda mínima? 2. A renda mínima poderia funcionar como vértice privilegiado de reorganização e integração dessas políticas sociais? Podemos adiantar nossas respostas: as diferentes políticas de repasses monetários não foram concebidas na perspectiva da renda mínima (nem de qualquer outra forma de renda garantida). Elas são o resultado imprevisto de uma hibridação de três dispositivos diferentes: o sistema de aposentadorias, proveniente do Estado corporativo e autoritário; o sistema de seguro-desemprego como elemento tardio do Welfare fordista articulado com o emprego formal; e, por fim, os repasses monetários de assistência social. Estes últimos reúnem os programas do Benefício de Prestação Continuada, instaurado em 1995, e do Bolsa Família, implantado em 2004 no âmbito do “combate à extrema pobreza”. Nossa análise seguirá dois eixos: a evolução dos debates em torno dessas políticas e a descrição das políticas de distribuição de renda. Esses dois eixos serão divididos em três fases: primeiramente, a realização do programa Bolsa Família, durante o primeiro governo Lula (2003-2006), a qual chamaremos de fase “católica” ou “esquerdista residual”; a segunda fase “lulista”, do segundo governo Lula e dos dois primeiros anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (2007-2012); e o “Lulismo selvagem” da guinada para os protestos de junho de 2013. A dívida de FHC e Lula “Lulismo selvagem” Os protestos de junho de 2013 puseram fim ao Lulismo enquanto dinâmica vinda não de fora, mas da outra face do conjunto das políticas sociais dos governos do PT. Porque o fenômeno do “populismo” (positivo ou negativo) e o apoio passivo ao líder carismático ocultavam uma dinâmica selvagem de produção de subjetividade no cerne das políticas sociais de Lula, bem como para além delas. O movimento de junho de 2013 foi a explicitação dos limites não somente do Lulismo (sociológico ou político), mas também, e sobretudo, das diferentes críticas externas e internas dirigidas contra ele. As políticas sociais (e o governo de modo geral) não podem ser avaliadas em si mesmas, de acordo com a coerência interna de sua concepção e execução, tampouco conforme seus discursos sobre a emergência de uma nova classe média. E muito menos segundo a crítica que as acusa de oferecer apenas uma inclusão pela integração no grande consumo. O que é preciso entender são os processos de subjetivação que se afirmam no e além de seu horizonte. Nas políticas públicas, o que importa não é tanto saber se elas podem “resolver” uma determinada situação (por exemplo, a extrema pobreza, a desigualdade), mas se elas dão acesso e se estão abertas às dinâmicas que podem mudar as relações sociais, dinâmicas horizontais e constituintes de mobilizações sociais capazes de transmutar os valores. Enquanto o Lulismo estava totalmente mergulhado na euforia da emergência de um “país sem pobres”, de uma “nova” classe média apta a consumir automóveis e megaeventos da guinada neodesenvolvimentista do governo Dilma, os protestos de junho de 2013 mostravam a formação de uma nova figura social do trabalho metropolitano, totalmente selvagem e irrepresentável. O debate sobre as transferências de renda durante o governo Lula Dois grandes tipos de críticas gerais ou