Zona Curva

mulheres libertárias

A luta de Harriet Tubman contra a escravidão nos Estados Unidos

por Elaine Tavares Harriet Tubman – Era uma dessas desgraçadas noites de senzala no ano de 1819. Uma negra escrava, entre dores, dava à luz a uma menina. Seus dedos magros a acolheram e apertaram. Mais uma para sofrer. Mas, naquela madrugada, no pequeno condado de Dorchester, no estado de Maryland, Estados Unidos, a menina que arejava os pulmões com gritos fortes não carregaria o peso da dor. Ela seria uma libertária, uma dessas loucas, nojentas, que nada dobra e, anos depois, se tornaria uma das mais importantes “condutoras” de negros para a liberdade. O nome dado pela mãe foi Aramita Ross. Mas muito pouco conviveu com quem lhe deu à luz. Ainda garotinha foi levada para a plantação e ficou sob os cuidados da avó. Com seis anos de idade já estava no trabalho de uma casa branca. Apanhava muito. Uma vez levou uma surra só porque comeu um cubo de açúcar. Ela ruminava a dor e sentia que a vida lhe pesava. Quando completou 11 anos, passou a usar uma bandana na cabeça, indicando que saíra da meninice. Foi aí que mudou de nome. Virou Harriet e já tinha nos olhos o ar da rebeldia. Não foi à toa que quando viu um capataz pedindo ajuda para segurar um negro fujão, se recusou a fazê-lo. Por isso levou um golpe na cabeça e sofreu a vida toda as conseqüências. Conheça outra guerreira das Américas, a peruana Micaela Bastidas. Harriet cresceu ali, na plantação, a matutar. Nunca passou do 1m50. Era pequena, de olhos penetrantes e cheia de ideias de liberdade. Não ia morrer escrava. Quando tinha 25 anos casou-se com um negro livre, John Tubman, e vivia a pensar em planos de escape. Coisa que não achava eco junto ao marido. Ele não compartilhava das loucas ideias que ela sussurrava nas noites de inverno. Mas ela queria ir para o norte, fugir, ser livre também. Aguentou cinco anos e, numa destas noites, escapou no rumo da Filadélfia. Sua fuga foi digna de filme. Ajudada por uma família branca, foi colocada dentro de um saco, num vagão, até estar segura nas casas dos abolicionistas que revezam na rota de fuga. Chegou inteira e logo começou a trabalhar. Do dinheiro que ganhava, guardava uma parte que usava para libertar outros negros. Mas, para Harriet, dar dinheiro não bastava. Aquela alma atormentada precisava agir, e ela decidiu liderar as tropas de negros e brancos que marchavam para as fazendas e libertavam os negros. Fez muitas dessas incursões. Em uma delas, no comando, chegou a libertar 750 negros de uma só vez. Tudo isso já bastaria para tornar Harriet uma lenda, mas ela ainda iria mais longe. Como não era mais uma jovenzinha, decidiu abandonar o comando das tropas e passou a atuar como “condutora”, no que ficou conhecida como a “estrada de ferro subterrânea”. Esta estrada de ferro não era uma estrada de verdade, mas o nome dado à rota de fuga de milhares de negros em todos os Estados Unidos. Uma rede muito bem urdida de estradas, rotas e casas, as quais os negros percorriam e se abrigavam durante a grande travessia para a liberdade. Essas rotas eram pronunciadas junto aos negros sempre com os jargões da estrada de ferro, para que nenhuma suspeita fosse levantada e, justamente por isso, foram chamadas assim. Nesse processo de fuga a figura do “condutor” era, sem dúvida a mais importante. E Harriet se fez um deles. Foi a mais famosa e a mais eficiente. Armada de revólver e da sua atávica coragem ela chegou a carregar mais de 300 pessoas para os estados em que a escravidão já estava abolida. Nunca perdeu qualquer passageiro. Ficou conhecida também a frase que dizia aos seus conduzidos quando empreendiam a caminhada rumo ao norte: “Serás livre ou morrerás”. E foi com essa bravura que também carregou para a liberdade seus irmãos de sangue e seus pais, esta última uma viagem espetacular. Não foi à toa que ficou conhecida como “o Moisés” de seu povo. Harriet era mestra na arte da fuga e do disfarce. Graças a isso entrava e saia do sul escravista a qualquer hora. Em 1857 sua cabeça valia o prêmio de 40 mil dólares. Nunca foi pega. Durante a guerra civil estadunidense ela, já entrada nos anos, ainda serviu como enfermeira e espiã das forças federais. Seu nome é reverenciado até hoje por todos os negros e negras daquele país como uma mulher que não aceitou a sua condição e, generosa e solidária, deu sua vida para garantir a liberdade dos negros. Morreu velhinha, em 1913, considerada uma heroína nacional. Mesmo assim, foi só em 2003 que o estado instituiu o dia 10 de março (dia de sua morte) como o dia de Harriet Tubman, a Moisés do povo negro estadunidense, a condutora, aquela que nunca abriu mão da liberdade. “Há duas coisas que tenho direito: a liberdade ou a morte. Se não tiver uma, tenho a outra. Nenhum homem neste mundo vai me tomar a vida”. E assim foi. Hoje, contam os negros, quando apita um trem lá para os lados do sul, todo aquele que sofre alguma prisão, seja física ou espiritual, sente um arrepio. É Harriet, a condutora, chamando para a grande travessia. E sempre há quem se levante e encontre o caminho. Publicado originalmente no blog Palavras Insurgentes.   Violência contra pessoas negras denuncia a gravidade do racismo Viva Pagu

Sem mais frutas estranhas

Nos anos 30, o professor e poeta Abel Meeropol lecionava na Dewitt Clinton High School em Nova Iorque e não conseguia esquecer a foto de Thomas Shipp e Abram Smith, dois jovens negros linchados e dependurados em uma árvore no estado de Indiana. Com a imagem na cabeça, Meeropol escreveu o poema “Strange Fruit”, que foi publicado no jornal do colégio. Anos mais tarde, a cantora Billie Holiday imortalizou seu poema. O poema revoltado do professor judeu de Nova Iorque (Meeropol) entoado pela força existencial e musical de Billie Holiday, uma cantora negra da Filadélfia, fez surgir um hino pela luta por igualdade dos negros nos bicudos tempos da segregação racial. Os estranhos frutos (“black bodies swinging in the southern breeze”) brotavam da cultura da intolerância e do racismo de Estado, em particular no sul dos Estados Unidos. Billie Holiday interpreta “Strange Fruit”: Foi o saxofonista Lester Young que apelidou Billie de Lady Day. Amigos, eles formaram um dos mais talentosos duos da história da música. Lester morreu poucos meses antes de Billie, em 1959. Saiba mais. Eleanora Fagan, conhecida como Billie Holiday, nasceu há 100 anos na Filadélfia em 7 de abril de 1915 e morreu em Nova Iorque no dia 17 de julho de 1959.  Em entrevista ao jornal Pasquim em julho de 1972, o escritor negro James Baldwin ressalta a importância da música negra norte-americana: “nós [os negros] demos o que essa cultura que você [o entrevistador Paulo Francis] insiste em chamar de americana tem de melhor, de mais aceita no mundo inteiro, a música”. Depois de ouvir Billie Holiday, quem ousa discordar de Baldwin. Billie sobreviveu a vários perrengues. Filha de pais adolescentes, abandonada pelo pai ao nascer, vítima de tentativa de estupro por um vizinho, prostituta aos 13 anos e viciada em drogas e álcool, Billie começou sua carreira imitando a cantora Bessie Smith, que idolatrava, em bares de Nova Iorque. Ela retirou seu nome artístico de seu pai, o músico Clarence Holiday, e da atriz Billie Dove, que admirava na infância. Billie se arriscou apenas uma vez no cinema. Em 1947, interpretou uma empregada doméstica, reflexo do preconceito existente na indústria cinematográfica à época, no filme New Orleans. Com talento para cantar, a personagem de Billie se envolve com um músico famoso, interpretado Louis Armstrong. Billie foi perseguida por anos pelo chefe do Departamento Federal de Narcóticos, Harry J. Anslinger, que colocava agentes no encalço da cantora. O policial Anslinger odiava jazz e acreditava que o ritmo não passava de “sons de uma noite na floresta”. Após algumas detenções, Billie foi internada no Hospital Metropolitano de Nova Iorque em maio de 1959 com problemas no fígado e coração. No hospital, recebeu voz de prisão e morreu aos 44 anos em 17 de julho de 1959 sob custódia policial no hospital, inclusive com agentes até dentro do quarto. Billie Holiday em “Please Don´t Talk About Me When I’m Gone” (1959) em sua última apresentação ao vivo: Em “Fine and Mellow”, de 1957, Billie canta acompanhada de uma espetacular banda com Gerry Mulligan, Coleman Hawkings e Ben Webster nos saxofones e outros talentosos músicos: “Crazy he calls me” (1949): Fonte usada: Open Culture. A revolta do escritor Lima Barreto contra o racismo Embarque no sax de John Coltrane

Toda mulher é meio Leila Diniz*

Bem-vindo ao Fatos da Zona, em que adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. Neste vídeo, visitamos emocionados a memória da grandiosa Leila Diniz. Abordamos a história dessa figura icônica que enfrentou os costumes impostos pela ditadura e reformulou o que era esperado das mulheres de sua época.     1969 – Hermelina, Hermé para os mais chegados, casou virgem. Impaciente, ela aguarda seu marido no sofá da sala com o jantar servido na mesa, levanta, desliga a TV e volta a se sentar com o abusado hebdomadário Pasquim nas mãos. Na capa, a foto da atriz da última novela que assistiu com uma toalha na cabeça. Hermé lê a entrevista da atriz, sente um comichão, deixa um bilhete para o marido esquentar o jantar e vai dar uma volta na praia. Por lá, encontra amiga enfurecida com aquelas bobagens que aquela ‘atrizinha metida e prafrentex’ vinha falando. Para as mulheres do final dos anos 60, não havia alternativa, ou se tinha comichão ao ouvir o que pensava Leila Diniz ou raiva, muita raiva. Libertária, desbocada e dona de uma sensualidade cultivada em horas e horas de praia, Leila Diniz chutava o balde das carolas e caretas da época. O poeta Drummond resumiu o que ela representou pra sua geração: “Sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão”. “Casos mil; casadinha nenhuma. Na minha caminha, dorme algumas noites, mais nada. Nada de estabilidade”, Leila Diniz, em entrevista ao Pasquim. Se estivesse viva, Leila Diniz completaria 70 anos no dia 25 de março deste ano. Aos 24 anos, Leila foi entrevistada pela trupe do Pasquim, alguns deles seus amigos. A entrevista foi publicada no número 22 em 15 de novembro de 1969. Os 71 palavrões que Leila soltou durante a gravação foram substituídos por asteriscos. Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Luiz Carlos Maciel e Paulo Garcez foram os entrevistadores. Obviamente os militares não gostaram da entrevista e baixaram decreto de censura prévia à imprensa que ficou popularmente conhecido como Lei Leila Diniz. Em programa da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, comandado por Joaquim Ferreira dos Santos, autor do livro “Leila Diniz: uma revolução na praia”, podemos ouvir trechos da lendária entrevista. “É gozado: meu pai, por exemplo, não fala palavrão. Lá em casa não se dizia nem cocô: a gente falava fezes. Tinha de ser tudo naquela base, que são palavras muito mais feias do que os palavrões. Mas o palavrão virou realidade em mim e quando as coisas são de verdade, as pessoas aceitam”, Leila ao Pasquim. Leila apaixonou-se pelo diretor de cinema Domingos Oliveira com apenas 17 anos. Já separados, em 1967, ela estrelou “Todas as Mulheres do Mundo”, filme de Oliveira.  Foi dirigida novamente pelo ex-marido em Edu, Coração de Ouro, em 1968. Antes, a atriz formou-se no magistério e dos 15 aos 17 anos de idade foi professora do maternal e jardim de infância no subúrbio carioca. Leila tornou-se um rosto conhecido ao participar das primeiras novelas da Rede Globo como Eu Compro Esta Mulher (1966) e O Sheik de Agadir (1966/1967), ambas de Glória Magadan, autora cubana radicada no Brasil. Leila atuou em 14 filmes e 12 novelas na TV. Não gostava muito de atuar no teatro: “acho teatro chato: aquela coisa de fazer toda noite a mesma coisa”. Em novembro de 64, teve um pequeno papel na peça O preço de um homem, de Steve Passeur, ao lado da atriz Cacilda Becker. Nascida em Niterói, Leila vivia entre Ipanema e Copacabana. Filha de Newton Diniz, dirigente do Partido Comunista, foi criada pela madrasta e pelo pai. Grávida de Janaína, de seu relacionamento com o cineasta Ruy Guerra, a atriz foi à praia por recomendação médica, que havia aconselhado banhos de sol para o bebê. Involuntariamente, Leila e sua barriga de oito meses nas areias do Rio simbolizaram a busca pela liberdade feminina em um país que vivia a opressão política e tentava se libertar da ignorância e do preconceito. Quando Janaína nasceu, Leila a amamentava em público. Na época, as feministas acharam Leila só uma porra-louca e a mulherada de direita “apenas mais uma mulher desfrutável”.  “Acho que cada um deve fazer o que lhe faz bem. Se você fumar maconha e achar que isso lhe cura, acho ótimo. O importante é amar as pessoas e sentir uma certa felicidade, apesar da zona ao seu redor”, Leila Diniz ao Pasquim. Além dos militares, a atitude libertária de Leila não agradava a cúpula das emissoras de televisão e ela passou a ser mais chamada com menos frequência para trabalhar na TV. Com isso, passou a participar de filmes de diretores que eram seus amigos como Nelson Pereira dos Santos, com quem filmou “Fome de Amor” em 1968. Sobre esses diretores, Leila disse: “a gente vai fazer cinema com quem a gente gosta… essa patota não tem dinheiro”. Com a grana curta, Leila chegou a abrir uma loja de batas indianas, moda na época. Leila morreu com apenas 27 anos em 14 de junho de 1972, quando retornava de um festival de cinema na Austrália, onde ganhou o prêmio de melhor atriz pelo filme Mãos Vazias. O DC-8 da Japan Airlines caiu no momento que sobrevoava a Índia. Sua filha Janaína tinha apenas sete meses.  “Eu espero amar ainda muitos homens na minha vida. Vou amar sempre… Você pode amar muito uma pessoa e ir pra cama com outra. Isso já aconteceu comigo”, Leila Diniz ao Pasquim.  Dalva de Oliveira canta e Leila dança:   “Eu estava dizendo que sou uma pessoa sem sentido porque meu sentido é esse: eu gosto de me divertir, pô”, Leila Diniz, em entrevista ao Pasquim. Fontes usadas: Livro O Pasquim, antologia volume 1 e Rádio Batuta. * Título retirado da música “Todas as mulheres do mundo” de Rita Lee. Documentário sobre Leila Diniz apresenta atriz para os jovens Viva Pagu A valorização da mulher numa campanha eleitoral mais preocupada com o passado