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Nelson Rodrigues, o maior craque da crônica de futebol

Ele na crônica escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos. Nelson Rodrigues foi, de longe, o maior e melhor excelso gênio da literatura de futebol no Brasil. Disse tudo? Não, disse menos. Quero dizer: o sonho de todo escritor, o de ser lido pelas massas, discutido por elas, sem cair um só milímetro da sua dignidade artística, o sonho de escrever para todos, esse possível um dia Nelson Rodrigues conseguiu. Disse tudo? Menos ainda, porque devo dizer: não conheço, na literatura mundial, alguém que tenha sido tão magnífico quanto Nelson Rodrigues na crônica esportiva.

Nelson Rodrigues: o reacionário da boca pra fora

Nos textos que publicava na imprensa durante a ditadura, eram impagáveis as suas caricaturas contra ídolos da esquerda brasileira, até o dia em que prenderam o seu filho Nelsinho como terrorista. Nelson Rodrigues, conhecido como “o dramaturgo carioca”, é o recifense que os cariocas querem naturalizar. Não digo isso por gosto da frase ou provocação. A justificativa para o deslocamento da identidade é o seu teatro, que retrataria a sociedade do Rio de Janeiro. Acredito que isso geraria uma boa discussão na Bodega de Véio, no Recife. Mas vamos a um ou dois argumentos. O recifense Nelson Rodrigues, desde o nascimento em 23 de agosto de 1912, uma sexta-feira, atravessou muitas vidas, rostos e as mais diversas contradições. Entre muitas, falam sempre de Nelson como um escritor do Rio pelos temas e pela formação. De passagem, olhemos a referência mais ressaltada de Nelson Rodrigues: a obra teatral. Ora, o seu teatro exigiria um estudo além da frase exterior no palco, além da paisagem, do “óbvio ululante”, como ele diria. Penso que o seu teatro vem de certo e tenebroso Pernambuco. Aqueles delírios patológicos dos personagens, aqueles conflitos profundos que sobem à cena, fazem parte da repressão sexual da casa-grande de Pernambuco. Das sinhazinhas e senhores escravocratas vêm aqueles incestos, paixões impossíveis dentro do lar mais suburbano. Aqueles devaneios à margem da sala de visitas não são bem a escolha de um escritor carioca à procura da originalidade. Vêm antes de uma herança espiritual de senhores de engenho que se espraiou pela gente do Recife. De um ponto de vista factual e do ser, a opressão dos engenhos acompanhou a família pernambucana de Nelson Rodrigues até o Rio de Janeiro, como ele próprio confessou numa entrevista ao psicanalista e escritor Hélio Pellegrino: “Eu tenho uma experiência, aliás, já citei isso. A minha primeira experiência erótica é anterior à minha memória. Eu não me lembro de nada e este fato só foi referido muito posteriormente. Um dia apareceu lá em casa uma santa senhora, vizinha, mãe de uma menina de uns quatro anos, para dizer que qualquer filho de minha mãe poderia entrar na casa dela, menos eu. O negócio teve um tal toque de inocência e de pureza que eu não me lembro de nada. De vez em quando faço um esforço, começo a escavar na memória e não tenho a menor noção do que eu teria feito para justificar a ira da santa senhora. O meu ambiente familiar era, sob este aspecto erótico, de um grande rigor. Eu disse o meu primeiro palavrão aos doze anos de idade”. Isso posto, mal posto, já se vê, porque somos breves, passemos a seu reacionarismo. Depois do golpe de 64, em muitas oportunidades defendeu amigos comunistas, inclusive João Saldanha. Mas nos textos que publicava na imprensa durante a ditadura, eram impagáveis as suas caricaturas contra ídolos da esquerda brasileira. Sobre Mao Tsé-Tung, ele escreveu que o grande chinês não poderia nadar, porque tinha uma barriga insubmersível. Sobre Dom Hélder Câmara, dizia que o extraordinário arcebispo se defendia na batina, mas queria mesmo era vê-lo na praia de Ipanema com short de bolinhas. Sobre Antônio Callado, repetia ao infinito que o romancista e jornalista era o único inglês do mundo real. E haja gozações contra os estudantes que militavam contra a ditadura. Mas isso foi até o dia em que prenderam o seu filho, Nelsinho, como militante que foi torturado, o que era hábito dos militares na época. Mais adiante, o genial teatrólogo e cronista se integrou à luta pela Anistia. Na obra, o teatro Nelson Rodrigues, o mais importante da sua permanência, destrói o reacionarismo declarado pelo autor. Nada nele fala aos valores proclamados pela santa família brasileira, moral, costumes, rigor da religião, tão ao gosto da direita nacional. Pelo contrário, os incestos e traumas familiares pululam nas tragédias. Em “Beijo no Asfalto”, um homem beija a boca de outro e nisso se faz o maior escândalo na imprensa marrom retratada na peça. Mas prefiro ir agora às sua crônicas revolucionárias sobre o futebol brasileiro. Retiro alguns trechos da homenagem a ele no Dicionário Amoroso do Recife. Para mim, Nelson Rodrigues foi, de longe, o maior e melhor e excelso gênio da literatura de futebol no Brasil. Disse tudo? Não, disse menos. Quero dizer: o sonho de todo escritor, o de ser lido pelas massas, discutido por elas, sem cair um só milímetro da sua dignidade artística, o sonho de escrever para todos, mas sem as quedas demagógicas de baixar o nível para falar aos trabalhadores, que nem servem ao povo nem à literatura, esse possível um dia Nelson Rodrigues conseguiu. Disse tudo? Menos ainda, porque devo dizer: não conheço, na literatura mundial, alguém que tenha sido tão magnífico quanto Nelson Rodrigues na crônica esportiva. Se pensam que me engano, olhem e amaciem na boca feito fruta rara o que Nelson Rodrigues escreveu sobre um jogo de Pelé, antes de começar a Copa do Mundo de 1958. Para não dizê-lo um profeta, devo dizer: a sensibilidade, a genial arte de um escritor, descobriu e revelou um fenômeno: “Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo como uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: