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Pasolini

Quando Fellini sonhou com Pasolini

por Roberto Acioli de Oliveira “Desse ponto em diante,  podemos dizer que para Fellini a vida é sonho” Tullio Kezich, a respeito da influência de Jung sobre o cineasta (1). Súbito Vazio Psíquico Fellini e Pasolini – O ano era 1954, restavam apenas vinte dias para a conclusão das filmagens de A Estrada da Vida (La Strada). Federico Fellini mergulhou numa profunda depressão que descreveria mais tarde como uma explosão, um súbito vazio psíquico. Anos depois, Fellini ainda se referia ao episódio como “uma espécie de Chernobyl psíquico”. Subitamente, todas as ansiedades dos tempos de criança reaparecem. Na época Fellini escondeu o fato, temendo que Dino De Laurentiis, o produtor do filme, cancelasse todo o projeto. Giulietta Masina, sua esposa, percebeu o que estava acontecendo mesmo que Fellini tenha tentado esconder dela também. Muitas noites de insônia passaram a povoar o cotidiano do cineasta, que vivia em constante temor do colapso total. Giulietta chamou um psicanalista. Na primavera de 1954, a chegada de Emilio Servadio na casa de Fellini marca a entrada oficial da psicanálise no mundo do cineasta italiano. “É como se alguém, sem qualquer aviso, apagasse as luzes subitamente”  Federico Fellini sobre depressão (2). A psicanálise, conclui Tullio Kezich, crítico de cinema do jornal Corriere della Sera, entra na vida de Fellini como um pronto-socorro, não como um interesse intelectual. Servadio sugere que o cineasta se acalme e siga com as filmagens, terminar o filme era essencial. Fellini iniciou o tratamento após a estreia de A Estrada da Vida, mas disse que só compareceu a duas sessões e não gostou da relação entre paciente e analista. O som do relógio que marcava o final de cada sessão era como um regulamento burocrático e achou o divã sufocante. Certo dia, Servadio vê seu paciente correr para a janela do consultório à procura de ar. A tempestade de verão que desabava lá fora foi a desculpa do cineasta para escapar. Muito tempo depois, Servadio questionou a versão dos fatos fornecida por Fellini. Foram mais de duas sessões, e não foram inúteis. Não havia uma tempestade naquele dia, embora tenha ocorrido algo realmente importante: Fellini era um caso clássico de “fuga para a cura”(3).  O Insaciável Dragão de Fellini “Uma mulher possui uma mensagem, e o prazer da vida está na espera  pela  mensagem, não pela mensagem propriamente dita” Fellini (4). Fosse real ou imaginária, o que aconteceu durante essa tempestade? Fellini disse que se refugiou numa árvore, quando surgiu uma lindíssima mulher com um guarda-chuva oferecendo abrigo. Ela parecia ter saído de uma revista de moda! Ela passará a ser identificada como a “mulher felliniana” por excelência. Depois da chuva, o casal continuou a se encontrar e separar durante alguns anos. As mulheres sempre foram importante assunto na vida de Fellini. Ele estava sempre fazendo piadas sobre sexo e considerava o amor uma “feliz obsessão”. Vivia desenhando cenas eróticas e pornográficas em guardanapos de papel, mas seus amigos costumavam dizer que Fellini “fala muito e faz pouco”. O cineasta respondia ameaçando expor seu “insaciável dragão” escondido dentro da calça! Ainda assim, Kezich garante que nada seria capaz de abalar os laços de seu casamento com Giulietta Masina (5). “A traumática iniciação sexual do jovem Fellini foi num bordel e teria gerado  uma intratável “ansiedade em relação ao sexo” (6). De acordo com Kezich, Fellini só foi infiel a Giulietta Masina duas vezes: com Lea Giacomini e Anna Giovannini. Lea chegou a ameaçar o casamento, ele não resistia à sensualidade dela. Baseado em conversas e meias confissões que obteve, Kezich sugeriu que Lea inspirou a criação de Emma – a namorada de Marcello Rubini, em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959). Insegura ao extremo, Marcello se vê obrigado a provar incessantemente que a ama, embora não aprove a concepção que ela tem de um relacionamento afetivo. Emma tentará se suicidar. Kezich definiu Lea como uma “personalidade difícil”. Alguns sugerem que a cena em que (para variar) o casal estava brigando teria sido baseada em fato real. Marcello acaba mandando ela embora numa estrada deserta. Em seguida, a chama de volta, ela não quer voltar para o carro. Mas então volta, e aí começa outra discussão. Desta vez Marcello a expulsa de vez do carro. É quase dia quando ele volta para buscá-la. Os dois, este é o ponto, são irredutíveis. Para cada um, apenas a fantasia do outro é que é uma fantasia! O detalhe é que os gritos e argumentos de Emma não teriam sido nada perto da reação violenta de Lea – que apedrejou o carro de Fellini. Marisa, o “trem sexual” de A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990), também parece ter sido inspirada pela exuberância de Lea – ainda que nessa época ela já tivesse morrido num hospital psiquiátrico. Segundo Kezich, os únicos rastros conhecidos de Lea são alguns desenhos feitos por Fellini. Lea era passional e violenta. Fellini reagiu da única forma que sabia, criou Emma, uma personagem de A Doce Vida, insegura ao extremo e suicida. O caso com Anna Giovannini seria ainda mais intenso e longo. Fellini a chamava de la Paciocca – uma pessoa carnuda e animada. Foi em 1957, e ela largou seu emprego de caixa numa farmácia a pedido dele – para ficar disponível. Kezich afirma com certeza que Anna e sua voluptuosa figura foram o modelo para Carla, a espirituosa e charmosa amante de Guido Anselmi em Fellini 8½ (Otto e Mezzo, 1963). Apesar da intensidade do caso, Anna nunca ameaçou o casamento do cineasta, mesmo que Giulietta – alertada por almas bem-intencionadas de plantão – estivesse enciumada. Existe até uma referência ao caso em Julieta dos Espíritos (Giulietta Degli Spiriti, 1965), na cena em que Giorgio, o marido infiel, é seguido e filmado por um detetive. Anna inspirou a criação de Carla, que parecia mais independente do que ela. De acordo com Anna, em nome de seu amor Fellini a “rodeava com nada” (7). Fora Lea e Anna, Kezich disse que a vida secreta do cineasta estava mais para o cômico. Disse também que Fellini adorava “atuar” em seus flertes como o grande sedutor – que ele

O Evangelho segundo Pasolini

Se isso é cinema de poesia, poderíamos dizer que seria também um auto-retrato neurótico? Prenúncio de Uma Revolução? Pasolini – Ao iniciar as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), Pier Paolo Pasolini já havia realizado dois longas-metragens, Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962), e mais um média-metragem, A Ricota (La Ricotta, episódio de Rogopag. Relações Humanas, 1963), havia também elaborado muitos roteiros. Além de uma grande preocupação com a tradição pictórica clássica, seu estilo misturava o interesse pelo real com uma visão crítica em relação ao Neorrealismo. Neste início da carreira de Pasolini como cineasta, Stéphane Bouquet ressaltou uma curiosa hibridação. Os “pobres coitados” (poveri cristi) da periferia de Roma tinham suas vidas contadas através de um estilo com muitas referências à pintura da primeira Renascença florentina (Masaccio) ou aos maneiristas italianos (Pontormo, Rosso Fiorentino). Inicialmente, em O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini pensava utilizar os mesmos princípios: filmar picturalmente as paisagens miseráveis do sul da Itália em busca daquilo que definiu como uma espécie de “sacralidade técnica” (1). O Evangelho Segundo São Mateus não é apenas “mais um filme religioso”, uma espécie de acidente de percurso na obra de um pensador caótico. O título original do filme omite (como o faz o próprio Evangelho) o “São” adicionado na versão norte-americana, uma distorção que desagradava Pasolini (2). De fato, o filme foi incluído na lista de filmes aprovados pelo Vaticano – sendo o primeiro filme italiano a consegui-lo. Pasolini nunca escondeu seu ateísmo e marxismo, embora não fosse ortodoxo em nenhum dos dois casos. A história da produção é complexa. Em outubro de 1962, na condição de convidado em Assis da Pro Civitate Christiana, uma instituição atenta às tendências liberais e de esquerda na promoção da cultura católica na Itália contemporânea, Pasolini leu o Evangelho que encontrou em sua cabeceira. Numa troca de cartas com seu produtor Alfredo Bini e membros da Pro Civitate, Pasolini descreveu sua impressão do texto em termos que conotavam um senso de religiosidade, intercambiável em sua mente com uma revelação estética. Tendo em vista tal entusiasmo por parte de uma figura famosa, ainda que de má reputação, os diretores do escritório de cinema da Pro Civitate, sob consulta de padres, teólogos e especialistas na bíblia (que avaliaram também o tratamento da Crucificação em A Ricota) concordaram em apoiar o projeto de Pasolini. O líder da Igreja Católica de então era o Papa João XXIII, a quem Pasolini dedicou O Evangelho Segundo São Mateus. Tal atitude partindo de um católico não praticante anticlerical evidencia a postura de João XXIII, que se abriu ao anticolonialismo, à esquerda, a cooperação entre as diferentes ideologias, a justiça social e a luta no Terceiro Mundo. A Pro Civitate Christiana financiou uma expedição à Palestina, que resultou no documentário Locações na Palestina (Sopralluoghi in Palestina, 1963-1965) (3). Em relação a seu filme anterior, A Ricota, um conselheiro da Pro Civitate Cristiana confirmou que não manifesta desprezo, mas sim uma séria exploração contemporânea do tema. Na opinião de Noa Steimatsky, de fato apenas uma análise superficial sugeriria que o filme parece “desconsagrar” (profanar, secularizar) (4). A primeira coisa que surge na lembrança dos conhecedores de Pasolini é o conceito de Cinema de Poesia, mas ao que parece poucos sabem que foi em função das filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus que surge a tese. Outro elemento central no pensamento de Pasolini que deve muito ao trabalho neste filme é sua relação com o passado, bastante problematizado pelo cineasta-poeta em sua denúncia da perda dos valores tradicionais na sociedade moderna consumista. Trabalhos como A Ricota (onde um ator faminto, cujo personagem é um dos ladrões crucificados com Cristo, se encontra atormentado pela indiferença da indústria cinematográfica que, mesmo produzindo um filme sobre a Crucificação, não é capaz de perceber a Paixão quando presencia uma) e Teorema (onde o anjo-Cristo passa sua mensagem através do ato sexual) (5) são dois exemplos dos desdobramentos possíveis da mensagem de Cristo segundo Pasolini. Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury O arcaico na modernidade Antes de filmar O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini partiu em busca de locações na terra onde tudo teria acontecido. Pesquisa que foi registrada no infelizmente pouco conhecido documentário Locações na Palestina. Embora não estivesse surpreso, Pasolini ficou desapontado com o aspecto industrial moderno de Israel. Mais impressionante foi sua descoberta das dimensões modestas dos lugares santos – como disse Pasolini na época, tudo cabia na palma de sua mão. A diferença entre o aspecto humilde do local real e a sombra grandiosa do mundo arcaico na Bíblia aprofundou a noção de contaminação, já utilizada por Pasolini: “A contaminação [entre] humildade e grandeza talvez descreva, num nível mais fundamental, a impregnação de restos arqueológicos reais – aparentemente apenas ‘fragmentos miseráveis’ espalhados, poeirentos – por uma carga mítico-visionária cuja pretensão de autenticidade e valor é de uma ordem completamente diferente daquela das próprias ruínas” (6). Na contaminação, uma paisagem de pobreza e ruínas, as suntuosas riquezas da arte cristã, o contemporâneo e o arcaico, o real e o fantasmático, se cruzam e interpenetram sem neutralizarem um ao outro. Em outras palavras, ao invés de utilizar a evidência arqueológica para destruir o dogma teológico, Pasolini abraçou ao mesmo tempo a concretude material dessa evidência e a grande ressonância do mito. Em Accattone -Desajuste Social, Pasolini já havia utilizado a contaminação (quando Accattone luta com o irmão de Ascenza ao som da Paixão Segundo São Mateus, bwv 244, de Johann Sebastian Bach). De acordo com Pasolini, no caso de Locações na Palestina, filmado na Galiléia, Jordânia e Síria, a contaminação é imanente à própria paisagem. A impressão dominante, repetidamente articulada neste documentário que coleciona locações para O Evangelho Segundo São Mateus, é da humildade – este é o termo utilizado por Pasolini – dos locais que o Evangelho determina como o grande palco da pregação e Paixão de Jesus. Do ponto de vista da contaminação, a paisagem pobre e em ruínas se deixa penetrar pelas

As Deusas de François Truffaut

François Truffaut –  “As mulheres, tal como Truffaut as descreve, muitas vezes existem menos como presença (em) (a) (para) si mesmas do que como realização das visões masculinas. Primeiramente, os homens e espectadores percebem a imagem, em seguida a mulher que a encarna” Annette Insdorf (1)   Mais complexas do que alguns homens imaginam Antipáticas e atraentes, destrutivas e aconchegantes, dominadoras e conciliadoras, desesperadamente loucas e desesperadamente apaixonadas. A lista de qualidades das personagens femininas que Annette Insdorf encontrou em filmes de Truffaut sugere que ele foi capaz de compreender que o contraditório é um traço básico que elas compartilham com os homens! (2). Antoine Doinel, personagem/alter ego do cineasta em vários de seus filmes, vivia se questionando e perguntando para todo mundo se as mulheres são mágicas. Insdorf acredita que a esta poderia somar-se pelo menos mais duas perguntas: as mulheres são vulneráveis? Elas são mais complexas do que os homens supõem? Para Insdorf, levando-se em consideração os tipos femininos criados por Truffaut, a resposta é sim. Ainda de acordo com Insdorf, a coexistência de diversas personalidades numa mesma mulher é um padrão tão recorrente em Truffaut que o “duplo” é uma presença marcante em sua obra. Por um lado, temos os filmes onde um personagem masculino sente-se atraído por duas figuras femininas complementares. É o caso de Thérésa/Léna em O Tiro no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960), Franca/Nicole em Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964), Linda/Clarisse (interpretadas pela mesma Julie Christie) em Fahrenheit 451 (1966), Christine/Fabienne em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), Christine/Kyoko em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) e Anne/Muriel em As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises et le Continent, 1971). Por outro lado, existem também aqueles filmes em que as mulheres possuem pelo menos duas facetas. É o caso de Catherine em Jules e Jim (Jules et Jim, 1962), Julie/Marion em A Sereia do Mississippi (La Sirene du Mississipi, 1969), Julie/Pámela em A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) e Adèle/Madame Pinson em A História de Adèle H (Adèle H, 1975). A obra de Truffaut gira em torno das relações entre os adolescentes e sua deusa. Insdorf sugere que a atitude do cineasta em relação aos personagens femininos se assemelha à dos pivetes. Outro tema recorrente é o movimento que vai da adoração (Bernadette em Os Pivetes, Les Mistons, 1957) ao ressentimento (Théresa e Léna em O Tiro no Pianista, e Catherine em Jules e Jim, morrem; poderíamos incluir a mãe de Antoine em Os Incompreendidos, já que ele desejou a morte dela), passando pelo testemunho da morte do herói/rival (em Um Só Pecado, Fahrenheit 451, A Noiva Estava de Preto e A Sereia do Mississipi, as esposas destroem os homens, Linda sendo a menos direta), chegando ao distanciamento (Camille Bliss e Adèle H) (3). Jean-Luc Godard, o pierrô? Julie Kohler e Camille Bliss: múltiplas personalidades Cinco homens diferentes equivalem a cinco maneiras distintas de perceber uma mulher, ou poderia ser a descrição de cinco maneiras diferentes dessa mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos Para cada um de seus pretendentes, Julie em A Noiva Estava de Preto (La Mariée Était en Noir, 1967) e Camille em Uma Jovem Tão Bela Como Eu (Une Belle Fille Comme Moi, 1972) apresentam cinco personalidades. Adaptações de dois romances distintos, as duas se encaixam na obra de Truffaut como mulheres fatais. Num sentido literal, Julie é extremamente moral e mata por vingança, enquanto Camille é amoral e mata por prazer. Um pouco antes, Bernadette Lafont (a atriz que interpreta Camille) foi o fetiche de cinco garotos em Os Pivetes. Eles a seguem e chegam a hostilizar o namorado dela até que descobrem a respeito da morte do rapaz. No final, ao vê-la passar vestida de preto, os garotos já não sentem prazer. Na opinião de Insdorf, A Noiva Estava de Preto retoma esse filme onde ele parou: o que acontece com a mulher depois da morte do homem que ela amava – com Julie, o amor frustrado se transforma em hostilidade. Seus pretendentes são mais velhos, mas não menos ingênuos assegura Insdorf. De fato, Insdorf acredita que em Uma Jovem Tão Bela Como Eu pode-se dizer que Bernadette se vinga dos garotos de Os Pivetes. A culpabilidade masculina é o contexto de A Noiva Estava de Preto, clichê da mulher que imagina ganhar o amor de um homem adaptando-se ao modelo de mulher ideal dele, ela se insinua na vida de seus cinco pretendentes/vítimas, encarnando os sonhos de cada um. Truffaut explicou que através desses cinco homens poderia descrever cinco maneiras de perceber as mulheres, mas era também um meio de descrever cinco maneiras de uma mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos. Cinco homens diferentes entre si (a única ligação é o interesse comum pela caça, e também pela caça às mulheres), aquilo que os une é o que assombra Truffaut: acreditar no ideal para além do imediato, no eterno para além do efêmero, na deusa sonhada para além da mulher. E cada um deles será punido por isso. Insdorf mapeia o perfil das vítimas de Julie, mostrando os pontos fracos decorrentes das ilusões deles. Playboy prestes a se casar, Bliss (mesmo sobrenome de Camille, em Uma Jovem Tão Bela Como Eu) enxerga Julie como um possível conquista. Ela aparece misteriosamente vestida de branco. Julie é evasiva, acreditando que está apaixonada por ele, Bliss se apaixona por ela. Solteiro e sentimental, Coral é tímido e solitário (o que o assemelha a Charlie Kohler, segunda personalidade de Edouard Saroyan em O Tiro no Pianista). Julie se transforma no alimento romântico dos sonhos dele, uma mulher ideal que Coral imagina destinada a ele. Aspirante a político, Bertrand está fechado em sua complacência e pretensão, incapaz de enxergar mais longe do que seus interesses mesquinhos. Ele parece satisfazer-se com o papel de mulher servil de Julie, a mulher como um bibelô conveniente. Artista e playboy, Fergus faz dela seu próprio molde particular de uma deusa. Fazendo-a posar como Diana a caçadora, ele não

Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury

A aparente simplicidade das narrativas soltas que compõem “Os Contos de Canterbury” (1972) é a matéria dramática que Pier Paolo Pasolini usa para desenvolver um tratado de celebração da vida por meio de seus prazeres, desejos, conflitos e imperfeições. Nesse processo está presente uma contundente negação crítica do moralismo reacionário que tanto o incomodava. Assim como nos outros dois longas que compõem a “Trilogia da Vida” (“Decameron”, de 1971 e “As Mil e Uma Noites”, de 1974) o cineasta italiano trabalha a poética visual, a liberdade de encenação e o sentido dos planos para enaltecer o homem em suas características mais humanas, instintivas e elementares. Existe em “Os Contos de Canterbury” uma afirmação do prazer e da alegria, aliadas a uma celebração positiva do sexo, do corpo e das pequenas ambições e suas satisfações imediatas. Para Pasolini, esses elementos são fundamentais para consolidação do eu; são, ao mesmo tempo, alimento para o espírito e para o corpo. Saiba mais sobre o cineasta italiano Pasolini A crítica do diretor em relação à sociedade da época (os anos 70 na Europa), e que se torna ainda mais atual nos dias de hoje, vem do conflito entre a visão visceral e autêntica de mundo que ele encena e a vulgarização da auto exposição asséptica e do voyeurismo covarde e de recalque puritano que domina nossa sociedade. Com uma mis-en-scène ancorada na liberdade de construção dos planos e de decupagem, com uma câmera leve e solta e com uma composição de quadro em que o movimento constante dentro do plano dialoga com a movimentação da câmera e a variação de ângulos proposta pelas mudanças de posicionamento da câmera após cada corte, Pasolini aborda o sexo, o prazer e a cobiça, bem como as inter-relações dos personagens com uma naturalidade objetiva que destaca o ser humano como tipos imperfeitos em busca de felicidade, gozo e liberdade. É a forma sustentando a matéria de maneira orgânica dentro dos processos de encenação. O desenrolar das ações em um tempo passado (com impressionante apuro e bom gosto na direção de arte), livre de códigos de conduta ditos racionais, amplia o potencial da retórica do diretor. ‘Os Contos de Canterbury’ foram escritos pelo inglês Geoffrey Chaucer a partir de 1387. O livro é considerado um clássico da literatura daquele país. Outro aspecto que estende ainda mais a força de “Os Contos de Canterbury” é o trabalho de montagem. A união entre os contos dá-se de maneira sutil (ao mesmo tempo em que direta e imediata), em que o espectador é levado espontaneamente de um relato ao outro sem que a fruição do longa perca o ritmo. Essa desafetação das cenas esconde um aprimorado trabalho de encenação que mergulha no registro da sensualidade, do prazer e do descompromisso moral das ações. Como Pasolini sabe que a moral é abstrata e subjetiva, faz com que as atitudes de seus personagens sejam comandadas por impulsos, sem amarras conservadoras ou respeito a códigos de conduta castradores. O Evangelho segundo Pasolini Os personagens que surgem e desaparecem ao longo de ‘Os Contos de Canterbury’ são tipos humanos instintivos, viscerais em sua ligação orgânica com a força de seus desejos e impulsos imediatos. Agem e têm suas presenças físicas e emocionais constituídas por meio do caráter cru desses seus instintos. No desenrolar natural de suas existências, na fluência de suas vidas, esses instintos básicos estão sempre em conflito com códigos e regras de repressão, sejam eles sociais, de classe e de casta, regidos por uma ordem moral repressiva, imposta por conjunturas pré-estabelecidas que são a base essencial dos mecanismos de exclusão do mundo. Em Pasolini, viver em direção a uma possível liberdade existencial é assumir esse conflito e tentar superar, guiado pela força do desejo bruto gerado no instinto, essa obstrução em busca dos objetos e da realização dos prazeres sensoriais do desejo. Viver é se auto-afirmar por meio e dentro das estruturas do próprio conflito. São as imperfeições humanas e a noção dessa limitação que permite aos tipos a consolidação do encanto e o acesso à alegria da existência. O moralismo existe, no universo de “Os Contos de Canterbury”, para ser superado, enganado e ter suas imposições e regras implodidas pela liberdade de agir do ser humano. É uma certa imoralidade que desafia de forma quase heroica, ao mesmo tempo que natural, esses valores moralistas tortos. Ao filmar a essência instintiva da vida, Pasolini critica o artificialismo e o consumismo higiênico (no sentido daquele que apreende tudo aquilo que se pode adquirir dentro das normas de alienação segura do consumo da mercadoria). Os personagens nunca são julgados; seus esquemas, artimanhas e pequenos delitos são vistos com distanciamento conivente, em que a busca da felicidade e a consumação do desejo dão autenticidade às ações. Assista ao filme na íntegra, CLICA QUE VAI: https://youtu.be/18HVK34uZPw É essa postura afirmativa de Pasolini que o tornou um dos artistas mais “humanos”, libertários e, ao mesmo tempo, críticos da história do cinema. Da mesma forma que dava liberdade aos tipos comuns, condenava de forma impiedosa os estratos sociais que tanto desprezava (a burguesia em “Teorema” e “Pocilga” e os conservadores fascistas em “Saló”) O sexo, elemento fundamental em toda a “Trilogia da Vida” é o oposto do que vemos na sociedade do espetáculo que domina o mundo. É livre do aspecto marqueteiro e artificialista, em que a exibição dos corpos de laboratório mecanizada em repetições em série (em que gestos e expressões ditas sensuais dominam a cena) revela simulacros de intimidade que recalcam qualquer tentativa de autodeterminação da sexualidade. Em “Os Contos de Canterbury”, o sexo e o gozo (filmados de maneira direta e objetiva) são um exercício libertário e verdadeiro, são atos políticos; a exibição dos corpos nus é fonte de prazer tanto para os que se desnudam como para os que observam. A leveza e a sinceridade do erotismo conduzem as cenas. As imagens de Pasolini são uma expressão poética de uma realidade pretendida pelo cineasta. Ele extrai poesia das sensações de prazer e alegria dentro de

Vida e morte de Pasolini

Pasolini -A polêmica morte do cineasta Pier Paolo Pasolini é alvo de especulação até hoje. No dia 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, segundo a polícia, Pasolini foi assassinado pelo jovem Pino Pelosi. Cineasta, jornalista, escritor e poeta, Pasolini filmou, entre muitos outros, Mamma Roma (1962), Saló (1975) e Teorema (1968). Homossexual assumido, Pasolini tinha o hábito de namorar jovens atraentes da periferia romana. O depoimento de Pelosi foi recheado de contradições e vários membros da Justiça italiana já declararam a vontade de reabrir o caso. Teorias de complô político e de participação de mais pessoas no assassinato ainda despertam dúvidas na opinião pública italiana.   Devido ao seu gosto particular por escândalos, e com a fama advinda de seus filmes, Pasolini sofreu diversos tipos de perseguições e processos pela justiça italiana. Tudo era motivo para processá-lo. Sua vida e seus filmes perturbavam a ordem da conservadora sociedade italiana dos anos 60, trazendo sempre questões novas e escondidas sob o véu da hipocrisia. Imagino como fez falta Pasolini no combate à figura dantesca de Silvio Berlusconi. Veja a última entrevista de Pasolini (dois dias antes de morrer):  LEIA TAMBÉM “Quando Fellini sonhou com Pasolini” Pasolini by Ferrara Recentemente, “Pasolini”, do diretor norte-americano Abel Ferrara (Vício Frenetico (1992) e Cidade do Medo (1984)) foi exibido nas salas brasileiras. Ferrara concentra sua narrativa no último dia de vida de Pasolini. O ator Willem Dafoe interpreta o intelectual italiano em sua quarta parceria com Ferrara. Dois filmes já abordaram a morte de Pasolini e apresentaram versões distintas. Para o diretor italiano Marco Tulio Giordana, em seu filme Pasolini – um delito italiano, a morte foi consequência de um grupo político que encomendou seu assassinato. O filme aponta graves erros no processo como provas destruídas, ocultação de evidências e testemunhas não ouvidas. Já para Nerolio, de Aurelio Grimaldi, a morte não passou de crime sexual. Leia análise sobre o filme “Evangelho segundo São Mateus”, de Pasolini. Pasolini e seu combate à sociedade de consumo Em tempos como o de hoje em que a identidade do homem passa necessariamente pelo o que consome, Pasolini é mais atual do que nunca. Para ele, o verdadeiro fascismo era representado pela sociedade de consumo. Ele acreditava que o consumismo, poder desencadeador de toda a agressividade industrial, torna aceitável a exploração e a pobreza.  “Detesto o que é relativo ao ‘consumo’, eu o abomino no sentido físico do termo (…). A antipatia que sinto em meu foro íntimo é tão insuportável que não consigo fixar os olhos por mais que alguns instantes numa tela de televisão. É um fato físico, me dá náusea. Aliás, toda a cultura de consumo me é intolerável, sem apelação” Pasolini previa na época um futuro não muito promissor para a década de 70. O poder industrial transnacional que engloba sistemas econômico-sociais diferentes numa lógica sacrílega foi uma de suas grandes preocupações. Colaborador de importantes publicações italianas, Pasolini começou tratando dos mais diversos assuntos no periódico Vie Nuove entre 60 e 65. Entre agosto de 68 e janeiro de 70, Pasolini escreveu no popular jornal Tempo (em 69, sua tiragem chegou a alcançar 400 mil exemplares), que ele próprio definiu como “uma frente de pequenas batalhas cotidianas”. No últimos anos de sua vida, colaborou com o conhecido Coriere della Sera. Seus ensaios jornalísticos sempre ajudaram a sedimentar a imagem de polemista e crítico que até hoje prevalece. Em seus textos, Pasolini desenvolveu uma argumentação concentrada e estimulante.  Na catarse coletiva com a missão de conquista do homem à lua, Pasolini era voz dissonante:  “antes de mais nada, aborrece-me o nome Apolo, ridículo e retórico resíduo humanista — pesadamente hipócrita — servindo de marca para um objeto produzido pela mais avançada civilização tecnológica; experimento uma estranha antipatia pelos três astronautas, tipos de homens médios e perfeitos, exemplos de como se deve ser, inestéticos mas funcionais, privados de paixão e fantasia, mas impiedosamente práticos e obedientes — absolutamente carentes de qualquer capacidade crítica e autocrítica, verdadeiros homens do poder”. Com pontos de referência fora da situação italiana e “companheiro de viagem”, como se definia, do PCI (Partido Comunista Italiano), Pasolini viveu sob o signo de uma visão imóvel: a burguesia industrial capitalista como “doença” que corrompe inexoravelmente todas as formas de civilização. Partidário de uma leitura desesperada da realidade, Pasolini sempre se destacou com visões muito particulares em sua época, como, por exemplo, sua opinião sobre o chamado Terceiro Mundo. Para ele, o bem-estar como mito subverte o valor tradicional nos países subdesenvolvidos, assim como as novidades da técnica e da informação cancelam todo o passado local. Filho de pai militar e mãe professor, Pasolini publicou aos 20 anos seu primeiro livro, Poesias em Casarsa. Após crescer sobre a massacrante atmosfera do fascismo, graduou-se em Letras. Alguns anos mais tarde, foi morar em Roma onde passa dois anos desempregado em um bairro proletário. Preocupado com a figura do intelectual na sociedade, Pasolini  pregava que o verdadeiro discurso intelectual não devia nunca adaptar-se e sempre levava as forças mais avançadas ao exame, à reflexão, à polêmica, envolvendo massas de leitores. Em Teorema (1968), Pasolini analisa a família burguesa e seus valores. No filme, a estabilidade hipócrita é quebrada com a chegada de um visitante jovem e atraente que fará com que as insatisfações sejam deslevados à medida que o jovem vai se relacionando com cada um deles. A descoberta e a revelação dos desejos sufocados revolucionam a vida familiar. Fonte usada: Pier Paolo Pasolini, de Maria Betania Amoroso, Editora Cosac & Naify. Texto atualizado em 2 de março de 2016. Quando Fellini sonhou com Pasolini