Zona Curva

Pier Paolo Pasolini

O Evangelho segundo Pasolini

Se isso é cinema de poesia, poderíamos dizer que seria também um auto-retrato neurótico? Prenúncio de Uma Revolução? Pasolini – Ao iniciar as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), Pier Paolo Pasolini já havia realizado dois longas-metragens, Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962), e mais um média-metragem, A Ricota (La Ricotta, episódio de Rogopag. Relações Humanas, 1963), havia também elaborado muitos roteiros. Além de uma grande preocupação com a tradição pictórica clássica, seu estilo misturava o interesse pelo real com uma visão crítica em relação ao Neorrealismo. Neste início da carreira de Pasolini como cineasta, Stéphane Bouquet ressaltou uma curiosa hibridação. Os “pobres coitados” (poveri cristi) da periferia de Roma tinham suas vidas contadas através de um estilo com muitas referências à pintura da primeira Renascença florentina (Masaccio) ou aos maneiristas italianos (Pontormo, Rosso Fiorentino). Inicialmente, em O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini pensava utilizar os mesmos princípios: filmar picturalmente as paisagens miseráveis do sul da Itália em busca daquilo que definiu como uma espécie de “sacralidade técnica” (1). O Evangelho Segundo São Mateus não é apenas “mais um filme religioso”, uma espécie de acidente de percurso na obra de um pensador caótico. O título original do filme omite (como o faz o próprio Evangelho) o “São” adicionado na versão norte-americana, uma distorção que desagradava Pasolini (2). De fato, o filme foi incluído na lista de filmes aprovados pelo Vaticano – sendo o primeiro filme italiano a consegui-lo. Pasolini nunca escondeu seu ateísmo e marxismo, embora não fosse ortodoxo em nenhum dos dois casos. A história da produção é complexa. Em outubro de 1962, na condição de convidado em Assis da Pro Civitate Christiana, uma instituição atenta às tendências liberais e de esquerda na promoção da cultura católica na Itália contemporânea, Pasolini leu o Evangelho que encontrou em sua cabeceira. Numa troca de cartas com seu produtor Alfredo Bini e membros da Pro Civitate, Pasolini descreveu sua impressão do texto em termos que conotavam um senso de religiosidade, intercambiável em sua mente com uma revelação estética. Tendo em vista tal entusiasmo por parte de uma figura famosa, ainda que de má reputação, os diretores do escritório de cinema da Pro Civitate, sob consulta de padres, teólogos e especialistas na bíblia (que avaliaram também o tratamento da Crucificação em A Ricota) concordaram em apoiar o projeto de Pasolini. O líder da Igreja Católica de então era o Papa João XXIII, a quem Pasolini dedicou O Evangelho Segundo São Mateus. Tal atitude partindo de um católico não praticante anticlerical evidencia a postura de João XXIII, que se abriu ao anticolonialismo, à esquerda, a cooperação entre as diferentes ideologias, a justiça social e a luta no Terceiro Mundo. A Pro Civitate Christiana financiou uma expedição à Palestina, que resultou no documentário Locações na Palestina (Sopralluoghi in Palestina, 1963-1965) (3). Em relação a seu filme anterior, A Ricota, um conselheiro da Pro Civitate Cristiana confirmou que não manifesta desprezo, mas sim uma séria exploração contemporânea do tema. Na opinião de Noa Steimatsky, de fato apenas uma análise superficial sugeriria que o filme parece “desconsagrar” (profanar, secularizar) (4). A primeira coisa que surge na lembrança dos conhecedores de Pasolini é o conceito de Cinema de Poesia, mas ao que parece poucos sabem que foi em função das filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus que surge a tese. Outro elemento central no pensamento de Pasolini que deve muito ao trabalho neste filme é sua relação com o passado, bastante problematizado pelo cineasta-poeta em sua denúncia da perda dos valores tradicionais na sociedade moderna consumista. Trabalhos como A Ricota (onde um ator faminto, cujo personagem é um dos ladrões crucificados com Cristo, se encontra atormentado pela indiferença da indústria cinematográfica que, mesmo produzindo um filme sobre a Crucificação, não é capaz de perceber a Paixão quando presencia uma) e Teorema (onde o anjo-Cristo passa sua mensagem através do ato sexual) (5) são dois exemplos dos desdobramentos possíveis da mensagem de Cristo segundo Pasolini. Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury O arcaico na modernidade Antes de filmar O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini partiu em busca de locações na terra onde tudo teria acontecido. Pesquisa que foi registrada no infelizmente pouco conhecido documentário Locações na Palestina. Embora não estivesse surpreso, Pasolini ficou desapontado com o aspecto industrial moderno de Israel. Mais impressionante foi sua descoberta das dimensões modestas dos lugares santos – como disse Pasolini na época, tudo cabia na palma de sua mão. A diferença entre o aspecto humilde do local real e a sombra grandiosa do mundo arcaico na Bíblia aprofundou a noção de contaminação, já utilizada por Pasolini: “A contaminação [entre] humildade e grandeza talvez descreva, num nível mais fundamental, a impregnação de restos arqueológicos reais – aparentemente apenas ‘fragmentos miseráveis’ espalhados, poeirentos – por uma carga mítico-visionária cuja pretensão de autenticidade e valor é de uma ordem completamente diferente daquela das próprias ruínas” (6). Na contaminação, uma paisagem de pobreza e ruínas, as suntuosas riquezas da arte cristã, o contemporâneo e o arcaico, o real e o fantasmático, se cruzam e interpenetram sem neutralizarem um ao outro. Em outras palavras, ao invés de utilizar a evidência arqueológica para destruir o dogma teológico, Pasolini abraçou ao mesmo tempo a concretude material dessa evidência e a grande ressonância do mito. Em Accattone -Desajuste Social, Pasolini já havia utilizado a contaminação (quando Accattone luta com o irmão de Ascenza ao som da Paixão Segundo São Mateus, bwv 244, de Johann Sebastian Bach). De acordo com Pasolini, no caso de Locações na Palestina, filmado na Galiléia, Jordânia e Síria, a contaminação é imanente à própria paisagem. A impressão dominante, repetidamente articulada neste documentário que coleciona locações para O Evangelho Segundo São Mateus, é da humildade – este é o termo utilizado por Pasolini – dos locais que o Evangelho determina como o grande palco da pregação e Paixão de Jesus. Do ponto de vista da contaminação, a paisagem pobre e em ruínas se deixa penetrar pelas

O Marcello de Mastroianni

Roberto Acioli de Oliveira (Colaboração especial para o Zonacurva) Mastroianni – Já o vimos na pele de um homossexual, de um impotente, de um corno e até de um homem grávido, mas grande parte da imprensa especializada insiste em referir-se a ele como o grande Amante Latino. Marcello Mastroianni não gostava deste rótulo, segundo ele inventado pelos produtores norte-americanos. “Eu não sou um sedutor”, insistiu o ator, que o amigo Federico Fellini chamava de Snaporaz, em referência ao papel de Mastroianni como o protagonista masculino atordoado e mulherengo de Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980). Neste filme, o cineasta criou situações que muitas mulheres consideraram antifeministas. De modo geral, era uma crítica que pairava sobre ele, contudo Mastroianni o defendeu: “Todos os homens são um pouco misóginos, ora essa! [Fellini] não fez mais que falar de mulheres, e as olhava sempre como um menino guloso” (BIAGI, E. 1997: 17, 18). “- Quem foi o primeiro ator da história? – Adão, obrigado a fazer os papéis de noivo, marido, pai e por aí afora”  Mastroianni em entrevista a Enrico Roda (BIAGI, E. 1997: 7) Marcello Vincenzo Domenico Mastroianni (1924-1996) não nasceu na cidade grande. Fontana Liri, sua cidade natal, fica a meio caminho entre Roma e Nápoles – mas sua família já havia se mudado para Roma desde antes da Segunda Guerra. Com 160 filmes no currículo, Mastroianni passou pelas mãos de muitos cineastas. Dentre os italianos, além do próprio Fellini, os nomes mais conhecidos são Alessandro Blasetti, Luciano Emmer, Carlo Lizzani, Luchino Visconti, Mario Monicelli, Mauro Bolognini, Vittorio De Sica, Michelangelo Antonioni, Pietro Germi, Elio Petri, Dino Risi, Valerio Zurlini, Ettore Scola, os irmãos Taviani, Giuseppe Tornatore, Liliana Cavani e Francesca Archibugi. Gian Piero Brunetta o considera um dos “mosqueteiros da comédia italiana”, ao lado de Vittorio Gassman, Alberto Sordi, Ugo Tognazzi e Nino Manfredi (BRUNETTA, G. P. 2009: 193). Dentre os cineastas estrangeiros que trabalharam com ele, poderiam ser citados o grego Theodoros Angelopoulos, o português Manoel de Oliveira e o brasileiro Bruno Barreto. Mastroianni por Mastroianni: “(…) Em suma, considero-me um homem cheio de veleidades, sem força de caráter. A prova do que digo está justamente na minha capacidade de fazer bem na tela os fracos de caráter: o barão Cefalù de Divórcio à Italiana, o professor Sinigaglia de Os Companheiros, o intelectual em crise de Fellini 8 1/2” (BIAGI, E. 1997: 8)   Mastroianni e Sophia Loren Trabalhando inteiramente no campo da comédia, a parceria entre o ator e a atriz rendeu a eles mais louros do que suas próprias carreiras tomadas isoladamente. De acordo com Pauline Small, esse é especialmente o caso em relação às parcerias de Mastroianni com outras atrizes. Desde suas primeiras comédias juntos na década de 50 do século passado (a maioria se encaixa no chamado “Neo-Realismo rosa”), até o casal atrapalhado em Prêt-à-Porter (direção Robert Altman, 1994), passando pelo mais sério Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1976), a dobradinha era garantia de bilheteria e fez a felicidade de muitos produtores e cineastas – fizeram 12 filmes juntos (BIAGI, E. 1997: 67). A atriz Sophia Loren completou 80 anos no último dia 20 de setembro. Ao contrário de Loren, Mastroianni possuía experiência de teatro, embora o trabalho em comédias do cinema italiano lhe tenha proporcionado uma experiência que não possuía. Sua parceria com Loren em Peccato che Sia una Canaglia (direção Alessandro Blasetti, 1954), o fez se preocupar com a possibilidade de que passasse a ficar para sempre ligado àquele tipo de papel (houve uma enxurrada de oferecimentos para ele repetir o papel do taxista de Roma), mas admitiu que esse filme em companhia da atriz foi essencial para o aumento de sua popularidade – em quase todos os filmes que contracenou com Loren, Mastroianni aparecia menos do que ela na tela (DEWEY, D. 1993: 72, 128). Referindo-se a sua atuação ao lado de Vittorio Gassman em Os Eternos Desconhecidos (I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli, 1958), Mastroianni faz uma referência à Peccato: “E realmente eu fiz personagens como esse antes, por exemplo, em Peccato che Sia una Canaglia. Era o habitual inocente bem intencionado que no fundo não é realmente cômico, mas que reage às situações de uma forma que faz as pessoas rirem (…)” (Idem: 90) Naquela época, em meados da década de 50, começava a surgir uma tendência de se criarem comédias em torno de casais. Contudo, ainda que Mastroianni tivesse no começo de sua carreira concordado em tomar o lugar de “cara legal” (bravo ragazzo) construído por Vittorio De Sica durante a década de 30, logo começou a sentir-se numa camisa de força (o medo de só ser chamado para esse tipo de papel). Tanto que, pelo mesmo motivo, passará a sempre atacar o estereótipo de Amante Latino que nunca desgrudou dele (SMALL, P. 2009: 89-93). Quando Sophia Loren entrou na guerra dos seios Mastroianni e seus duplos De acordo com Donald Dewey, antes de chamar atenção pelas performances no melancólico Noites Brancas (Le Notti Bianche, também conhecido como Um Rosto na Noite, direção Luchino Visconti) em 1957 e no simplório Os Eternos Desconhecidos no ano seguinte, Mastroianni era visto como mais um dos bonitões da tela. Foi apenas a partir de A Doce Vida (La Dolce Vita, direção Federico Fellini, 1960), embora ainda em função de um esforço pessoal do ator, que esse rótulo começou a se descolar da mente daqueles que o chamavam para atuar no cinema. Na seqüência, consolidaram essa mudança o papel de protagonista em O Belo Antônio (Il Bell’Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960), Divórcio à Italiana (Divorzio all’Italiana, direção Pietro Germi, 1961) e A Noite (La Notte, direção Michelangelo Antonioni, 1961) (DEWEY, D. 1993: 11-2, 15, 247-9, 265). Com estes quatro filmes em seqüência pode se ter uma noção do alcance de Mastroianni, do aborrecido e pouco sociável repórter de A Noite até o marido safado de Divórcio à Italiana. A galhardia da versatilidade de Mastroianni como ator seria igualada apenas por sua capacidade (suicida, segundo

Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury

A aparente simplicidade das narrativas soltas que compõem “Os Contos de Canterbury” (1972) é a matéria dramática que Pier Paolo Pasolini usa para desenvolver um tratado de celebração da vida por meio de seus prazeres, desejos, conflitos e imperfeições. Nesse processo está presente uma contundente negação crítica do moralismo reacionário que tanto o incomodava. Assim como nos outros dois longas que compõem a “Trilogia da Vida” (“Decameron”, de 1971 e “As Mil e Uma Noites”, de 1974) o cineasta italiano trabalha a poética visual, a liberdade de encenação e o sentido dos planos para enaltecer o homem em suas características mais humanas, instintivas e elementares. Existe em “Os Contos de Canterbury” uma afirmação do prazer e da alegria, aliadas a uma celebração positiva do sexo, do corpo e das pequenas ambições e suas satisfações imediatas. Para Pasolini, esses elementos são fundamentais para consolidação do eu; são, ao mesmo tempo, alimento para o espírito e para o corpo. Saiba mais sobre o cineasta italiano Pasolini A crítica do diretor em relação à sociedade da época (os anos 70 na Europa), e que se torna ainda mais atual nos dias de hoje, vem do conflito entre a visão visceral e autêntica de mundo que ele encena e a vulgarização da auto exposição asséptica e do voyeurismo covarde e de recalque puritano que domina nossa sociedade. Com uma mis-en-scène ancorada na liberdade de construção dos planos e de decupagem, com uma câmera leve e solta e com uma composição de quadro em que o movimento constante dentro do plano dialoga com a movimentação da câmera e a variação de ângulos proposta pelas mudanças de posicionamento da câmera após cada corte, Pasolini aborda o sexo, o prazer e a cobiça, bem como as inter-relações dos personagens com uma naturalidade objetiva que destaca o ser humano como tipos imperfeitos em busca de felicidade, gozo e liberdade. É a forma sustentando a matéria de maneira orgânica dentro dos processos de encenação. O desenrolar das ações em um tempo passado (com impressionante apuro e bom gosto na direção de arte), livre de códigos de conduta ditos racionais, amplia o potencial da retórica do diretor. ‘Os Contos de Canterbury’ foram escritos pelo inglês Geoffrey Chaucer a partir de 1387. O livro é considerado um clássico da literatura daquele país. Outro aspecto que estende ainda mais a força de “Os Contos de Canterbury” é o trabalho de montagem. A união entre os contos dá-se de maneira sutil (ao mesmo tempo em que direta e imediata), em que o espectador é levado espontaneamente de um relato ao outro sem que a fruição do longa perca o ritmo. Essa desafetação das cenas esconde um aprimorado trabalho de encenação que mergulha no registro da sensualidade, do prazer e do descompromisso moral das ações. Como Pasolini sabe que a moral é abstrata e subjetiva, faz com que as atitudes de seus personagens sejam comandadas por impulsos, sem amarras conservadoras ou respeito a códigos de conduta castradores. O Evangelho segundo Pasolini Os personagens que surgem e desaparecem ao longo de ‘Os Contos de Canterbury’ são tipos humanos instintivos, viscerais em sua ligação orgânica com a força de seus desejos e impulsos imediatos. Agem e têm suas presenças físicas e emocionais constituídas por meio do caráter cru desses seus instintos. No desenrolar natural de suas existências, na fluência de suas vidas, esses instintos básicos estão sempre em conflito com códigos e regras de repressão, sejam eles sociais, de classe e de casta, regidos por uma ordem moral repressiva, imposta por conjunturas pré-estabelecidas que são a base essencial dos mecanismos de exclusão do mundo. Em Pasolini, viver em direção a uma possível liberdade existencial é assumir esse conflito e tentar superar, guiado pela força do desejo bruto gerado no instinto, essa obstrução em busca dos objetos e da realização dos prazeres sensoriais do desejo. Viver é se auto-afirmar por meio e dentro das estruturas do próprio conflito. São as imperfeições humanas e a noção dessa limitação que permite aos tipos a consolidação do encanto e o acesso à alegria da existência. O moralismo existe, no universo de “Os Contos de Canterbury”, para ser superado, enganado e ter suas imposições e regras implodidas pela liberdade de agir do ser humano. É uma certa imoralidade que desafia de forma quase heroica, ao mesmo tempo que natural, esses valores moralistas tortos. Ao filmar a essência instintiva da vida, Pasolini critica o artificialismo e o consumismo higiênico (no sentido daquele que apreende tudo aquilo que se pode adquirir dentro das normas de alienação segura do consumo da mercadoria). Os personagens nunca são julgados; seus esquemas, artimanhas e pequenos delitos são vistos com distanciamento conivente, em que a busca da felicidade e a consumação do desejo dão autenticidade às ações. Assista ao filme na íntegra, CLICA QUE VAI: https://youtu.be/18HVK34uZPw É essa postura afirmativa de Pasolini que o tornou um dos artistas mais “humanos”, libertários e, ao mesmo tempo, críticos da história do cinema. Da mesma forma que dava liberdade aos tipos comuns, condenava de forma impiedosa os estratos sociais que tanto desprezava (a burguesia em “Teorema” e “Pocilga” e os conservadores fascistas em “Saló”) O sexo, elemento fundamental em toda a “Trilogia da Vida” é o oposto do que vemos na sociedade do espetáculo que domina o mundo. É livre do aspecto marqueteiro e artificialista, em que a exibição dos corpos de laboratório mecanizada em repetições em série (em que gestos e expressões ditas sensuais dominam a cena) revela simulacros de intimidade que recalcam qualquer tentativa de autodeterminação da sexualidade. Em “Os Contos de Canterbury”, o sexo e o gozo (filmados de maneira direta e objetiva) são um exercício libertário e verdadeiro, são atos políticos; a exibição dos corpos nus é fonte de prazer tanto para os que se desnudam como para os que observam. A leveza e a sinceridade do erotismo conduzem as cenas. As imagens de Pasolini são uma expressão poética de uma realidade pretendida pelo cineasta. Ele extrai poesia das sensações de prazer e alegria dentro de

Vida e morte de Pasolini

Pasolini -A polêmica morte do cineasta Pier Paolo Pasolini é alvo de especulação até hoje. No dia 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, segundo a polícia, Pasolini foi assassinado pelo jovem Pino Pelosi. Cineasta, jornalista, escritor e poeta, Pasolini filmou, entre muitos outros, Mamma Roma (1962), Saló (1975) e Teorema (1968). Homossexual assumido, Pasolini tinha o hábito de namorar jovens atraentes da periferia romana. O depoimento de Pelosi foi recheado de contradições e vários membros da Justiça italiana já declararam a vontade de reabrir o caso. Teorias de complô político e de participação de mais pessoas no assassinato ainda despertam dúvidas na opinião pública italiana.   Devido ao seu gosto particular por escândalos, e com a fama advinda de seus filmes, Pasolini sofreu diversos tipos de perseguições e processos pela justiça italiana. Tudo era motivo para processá-lo. Sua vida e seus filmes perturbavam a ordem da conservadora sociedade italiana dos anos 60, trazendo sempre questões novas e escondidas sob o véu da hipocrisia. Imagino como fez falta Pasolini no combate à figura dantesca de Silvio Berlusconi. Veja a última entrevista de Pasolini (dois dias antes de morrer):  LEIA TAMBÉM “Quando Fellini sonhou com Pasolini” Pasolini by Ferrara Recentemente, “Pasolini”, do diretor norte-americano Abel Ferrara (Vício Frenetico (1992) e Cidade do Medo (1984)) foi exibido nas salas brasileiras. Ferrara concentra sua narrativa no último dia de vida de Pasolini. O ator Willem Dafoe interpreta o intelectual italiano em sua quarta parceria com Ferrara. Dois filmes já abordaram a morte de Pasolini e apresentaram versões distintas. Para o diretor italiano Marco Tulio Giordana, em seu filme Pasolini – um delito italiano, a morte foi consequência de um grupo político que encomendou seu assassinato. O filme aponta graves erros no processo como provas destruídas, ocultação de evidências e testemunhas não ouvidas. Já para Nerolio, de Aurelio Grimaldi, a morte não passou de crime sexual. Leia análise sobre o filme “Evangelho segundo São Mateus”, de Pasolini. Pasolini e seu combate à sociedade de consumo Em tempos como o de hoje em que a identidade do homem passa necessariamente pelo o que consome, Pasolini é mais atual do que nunca. Para ele, o verdadeiro fascismo era representado pela sociedade de consumo. Ele acreditava que o consumismo, poder desencadeador de toda a agressividade industrial, torna aceitável a exploração e a pobreza.  “Detesto o que é relativo ao ‘consumo’, eu o abomino no sentido físico do termo (…). A antipatia que sinto em meu foro íntimo é tão insuportável que não consigo fixar os olhos por mais que alguns instantes numa tela de televisão. É um fato físico, me dá náusea. Aliás, toda a cultura de consumo me é intolerável, sem apelação” Pasolini previa na época um futuro não muito promissor para a década de 70. O poder industrial transnacional que engloba sistemas econômico-sociais diferentes numa lógica sacrílega foi uma de suas grandes preocupações. Colaborador de importantes publicações italianas, Pasolini começou tratando dos mais diversos assuntos no periódico Vie Nuove entre 60 e 65. Entre agosto de 68 e janeiro de 70, Pasolini escreveu no popular jornal Tempo (em 69, sua tiragem chegou a alcançar 400 mil exemplares), que ele próprio definiu como “uma frente de pequenas batalhas cotidianas”. No últimos anos de sua vida, colaborou com o conhecido Coriere della Sera. Seus ensaios jornalísticos sempre ajudaram a sedimentar a imagem de polemista e crítico que até hoje prevalece. Em seus textos, Pasolini desenvolveu uma argumentação concentrada e estimulante.  Na catarse coletiva com a missão de conquista do homem à lua, Pasolini era voz dissonante:  “antes de mais nada, aborrece-me o nome Apolo, ridículo e retórico resíduo humanista — pesadamente hipócrita — servindo de marca para um objeto produzido pela mais avançada civilização tecnológica; experimento uma estranha antipatia pelos três astronautas, tipos de homens médios e perfeitos, exemplos de como se deve ser, inestéticos mas funcionais, privados de paixão e fantasia, mas impiedosamente práticos e obedientes — absolutamente carentes de qualquer capacidade crítica e autocrítica, verdadeiros homens do poder”. Com pontos de referência fora da situação italiana e “companheiro de viagem”, como se definia, do PCI (Partido Comunista Italiano), Pasolini viveu sob o signo de uma visão imóvel: a burguesia industrial capitalista como “doença” que corrompe inexoravelmente todas as formas de civilização. Partidário de uma leitura desesperada da realidade, Pasolini sempre se destacou com visões muito particulares em sua época, como, por exemplo, sua opinião sobre o chamado Terceiro Mundo. Para ele, o bem-estar como mito subverte o valor tradicional nos países subdesenvolvidos, assim como as novidades da técnica e da informação cancelam todo o passado local. Filho de pai militar e mãe professor, Pasolini publicou aos 20 anos seu primeiro livro, Poesias em Casarsa. Após crescer sobre a massacrante atmosfera do fascismo, graduou-se em Letras. Alguns anos mais tarde, foi morar em Roma onde passa dois anos desempregado em um bairro proletário. Preocupado com a figura do intelectual na sociedade, Pasolini  pregava que o verdadeiro discurso intelectual não devia nunca adaptar-se e sempre levava as forças mais avançadas ao exame, à reflexão, à polêmica, envolvendo massas de leitores. Em Teorema (1968), Pasolini analisa a família burguesa e seus valores. No filme, a estabilidade hipócrita é quebrada com a chegada de um visitante jovem e atraente que fará com que as insatisfações sejam deslevados à medida que o jovem vai se relacionando com cada um deles. A descoberta e a revelação dos desejos sufocados revolucionam a vida familiar. Fonte usada: Pier Paolo Pasolini, de Maria Betania Amoroso, Editora Cosac & Naify. Texto atualizado em 2 de março de 2016. Quando Fellini sonhou com Pasolini