Zona Curva

Simón Bolívar

Dez anos sem Chávez

Hugo Chávez – Foi em 1815 que Simón Bolívar escreveu sua famosa Carta da Jamaica, na qual estava plasmado o seu sonho de uma Pátria Grande, com a união de todos os espaços que estavam sob o jugo da Espanha. Um sonho que ele tratou de concretizar com sua saga libertadora voltando para a Venezuela e recomeçando o processo de independência. E foi na ponta da espada que ele e os demais que o seguiam foram liberando país por país. Depois, em 1826, Simón chamou um Congresso Anfictiônico no Panamá, no qual pretendia então tornar real a proposta da união deste imenso espaço geográfico que vai desde o México até a Patagônia. Obviamente que não queria os Estados Unidos nesse bloco, porque já sabia que a vocação deste país era imperial. Mas a ambição e a traição de muitos que haviam caminhado com ele acabaram por fazer ruir essa proposta e, em 1830, Bolívar morre sem ver a Pátria Grande. Desde aí os países das Américas Central e do Sul, mais o México seguiram suas histórias individuais, imediatamente abocanhados pelo império inglês e, mais tarde, pelos Estados Unidos. Dependência e subdesenvolvimento, isso foi o que nos restou. Bolívar estava esquecido, bem como sua generosa e visionária proposta. O tempo passou e em 1992, a Europa, já bastante golpeada pela ação imperialista dos Estados Unidos, decidiu criar a União Europeia, unificando os países para melhor enfrentar o titã. Já na América Latina, unidade era palavra que não se escutava. O máximo que se chegou foi a uma tentativa de integração comercial, mas apenas com os países do sul. Tudo isso mudou em 1999 quando, na Venezuela de Bolívar, surge um líder político absolutamente fora da curva: Hugo Chávez. Ele vence as eleições e começa o que vai chamar de uma “revolução bolivariana”. Assim, 184 anos depois da libertária Carta da Jamaica, finalmente outro político venezuelano ousa falar de soberania e unidade para os países abaixo do rio Grande, tendo como horizonte o socialismo. Bolívar ressurgia em todo o seu esplendor. Com Chávez começa então outro  momento único para a América Latina. Até então, apenas a pequena ilha de Cuba sobrevivia, heroicamente, acossada e bloqueada pelos Estados Unidos. O grito de unidade da Pátria Grande vinha agora de um país petroleiro, riquíssimo, mas no qual sua população agonizava massacrada pelos velhos partidos políticos que se alternavam no poder, legando apenas à classe dominante os ganhos astronômicos do petróleo. Com Chávez, tudo muda. Os ganhos do petróleo passam a ser usados para o benefício de toda gente venezuelana e o presidente ousa enfrentar o império estadunidense acercando-se de Cuba e anunciando que o país iria avançar para o socialismo. Sacrilégio, heresia. Imediatamente toda a máquina ideológica do capital e do império passou a atacá-lo usando a velha tática de alcunhar ditador, antidemocrático e autoritário tudo aquilo que não está aos seus pés, ajoelhado e a serviço. Chávez estava a serviço dos trabalhadores da Venezuela. Um crime! HUGO CHÁVEZ MORREU EM 5 DE MARÇO DE 2013 Ainda assim, atacado e difamado, de 1999 a 2013, tempo em que esteve à frente do governo, Chávez palmilhou o caminho prometido de soberania, unidade e socialismo. Deu início a uma série de ações no sentido de unificar os países, integrou pela primeira vez a América Central e o Caribe em um plano de Pátria Grande, realizou acordos, garantiu petróleo para os países menores, buscou o desenvolvimento endógeno, virou o jogo. Nunca, depois de Bolívar, havia existido um líder assim, capaz de pensar a América baixa na sua totalidade e capaz de atuar em consequência. Veio a Telesur, proposta de mídia integradora, Unasur, união dos países, Banco do Sur, um banco nosso, Petrocaribe, Celac e uma série de outras iniciativas que apontava para a unidade dos países na busca de um bloco que pudesse sair da dependência imposta desde há séculos. Chávez foi um furacão. Passou a ser, depois de Fidel, a figura mais odiada pelos poderosos do mundo. Por outro lado, sua voz poderosa, seu riso maroto, suas tiradas alegres, seu conhecimento sobre a realidade latino-americana foram amealhando o amor dos trabalhadores, das classes empobrecidas, que viam nele uma liderança verdadeiramente disposta a colocar “patas arriba” a velha forma de governar, invertendo as prioridades. Chávez andava pelo seu país, cada domingo num lugar, onde falava com a população, cara-a-cara, em um inédito programa de televisão, que chegava a durar oito ou nove horas. E desde os problemas estruturais até a falta de calçamento de uma rua podiam ser discutidos ali. Absurdamente popular. Ele prometia e cumpria. Chávez mudou a Venezuela e mudou a América Latina. Trouxe de volta Bolívar, Martí, Che, Sandino e todos os demais que haviam lutado para ver um continente unificado, um povo irmanado e soberano. E, mais do que esperança, trouxe ação concreta. Foi um furacão, uma locomotiva reluzente e alegre, disposto a mudar a vida de todos nós. Em 2013 o venceu um câncer, que alguns acreditam ter sido inoculado. Ele era considerado pior do que o demônio pelo império. A história talvez um dia nos dê estas respostas. Mas, o fato é que ele se foi. E depois disso, a grande máquina do sonho da Pátria Grande ficou mais lenta. Neste março completam dez anos de sua partida. E a América Latina que vemos hoje não se aproxima sequer palidamente daquela que ele ousou iniciar a construção. Mas, assim como Bolívar, ele vive no coração e nas mentes daqueles que continuam carregando esse sonho de soberania. Eu tive o privilégio de viver esses 14 anos do tempo de Chávez no comando dos desejos mais profundos dos trabalhadores latino-americanos. Pude vê-lo e ouvi-lo, sua cara mesclada de negro e índio, sua voz de trovão. Pude caminhar pela Venezuela bolivariana, vendo a luta de classes acontecer nas ruas, o povo – antes esquecido – assomando no controle de suas comunidades. E, hoje, quando se completa uma década de sua semeadura, ainda me descem gordas lágrimas de profunda saudade. Quanta falta nos faz.

Bolívia segue sonhando com saída para o mar

Bolívia mar – As guerras de independência travadas na América do Sul tendo à frente Simón Bolívar tinham dois objetivos claros. O primeiro era o de libertar os países do império espanhol e o segundo era a constituição da Pátria Grande. O sonho de Bolívar era ver essa região como um bloco sólido de poder para enfrentar não apenas a Europa, mas também os Estados Unidos, que já mostrava suas garras. A ideia era garantir os governos regionais nas chamadas “pátrias chicas” unificados a partir de um governo central, o da Pátria Grande. Mas, como acontece sempre quando a questão do poder se coloca, muitos dos generais que atuaram com Bolívar tinham seus próprios sonhos de grandeza e, na medida em que iam garantindo a libertação dos territórios dos quais eram nativos, almejavam assentar-se sobre um poder próprio. E foi assim que traíram a confiança do Libertador, mataram seu sucessor natural – Sucre – e começaram a tramar o assassinato de Bolívar, que só não aconteceu por conta da valentia de Manuela Saenz. Ainda assim, Bolívar, que já andava fraco dos pulmões, depois de passar uma noite inteira na água, escondido dos assassinos, viu sua saúde deteriorar rapidamente, morrendo em 1830. A partir daí, o sonho da Pátria Grande foi com ele para a tumba e a América do Sul se balcanizou. A balcanização foi vista com muito bons olhos pela Grã Bretanha que passou a colocar seus olhos e seu dinheiro na américa baixa, incentivando as divisões e as escaramuças entre os jovens países, afinal, dividir é a melhor estratégia para assegurar a rapina e manter os países cativos. Assim, tão logo as repúblicas foram sendo consolidadas, também começaram os conflitos envolvendo limites. A Bolívia, que tem esse nome justamente em homenagem ao Libertador, quando se fez República em 1825 tinha uma costa de 400 quilômetros sobre o Pacífico, e foi justamente uma invasão do Chile no seu território, provocada e incentivada pelo império britânico, que tirou do país a sua saída para o mar. O país já tinha enfrentado uma invasão do Peru, que foi vencida. Por volta de 1866, começaram os conflitos com o Chile, por conta do Deserto de Atacama. Tratados foram firmados, mas o Chile seguia de olho na riqueza que dormia no solo desértico. Havia empresas chilenas – de capital britânico – explorando a região e elas não queriam pagar as taxas cobradas pela Bolívia para a extração mineral. A Bolívia tratou de expulsar as empresas estrangeiras que se recusavam a pagar os impostos. Não bastasse isso, o guano e o salitre produzidos na região próxima do mar viraram uma espécie de “ouro” cobiçado também pelo Chile. Foi assim que, com o apoio da Grã Bretanha, em 1879, o Chile invadiu Antofagasta, que era território boliviano, disposto a tomar o porto e as reservas de guano e salitre. Estoura a guerra entre os países, um conflito largo que durou até 1884, quando a Bolívia, derrotada militarmente, foi obrigada a ceder sua área frente ao mar. No acordo de paz, o Chile se comprometeu a permitir que a Bolívia usasse a saída para o mar com vantagens alfandegárias e livre trânsito para os produtos, mas a soberania do território estava perdida. Essa guerra e essa perda seguem sendo uma fratura exposta na relação Chile/Bolívia e ao longo dos anos provocaram muitas tensões, tanto que desde 1978 os dois países não têm relações diplomáticas formais, com embaixadas. Evo Morales quando presidente tentou movimentar a justiça internacional acerca do tema, mas não teve sucesso. Uma decisão da Corte Internacional de Justiça em 2018 deu ganho de causa ao Chile e apontou que o país não teria qualquer obrigação de negociar com a Bolívia a soberania territorial para garantir uma saída ao mar. Agora, com a posse do novo presidente chileno, Gabriel Boric, a Bolívia deve voltar à carga na sua reivindicação. No último dia 23 de março, celebrado como o “Dia do Mar Boliviano”, fazendo referência ao 143º aniversário da Defesa de Calama, o presidente boliviano Luis Arce voltou a reiterar que esta é uma reivindicação irrenunciável e que o governo deverá seguir buscando o diálogo na tentativa de fechar definitivamente as feridas do passado. Para isso, a saída para o mar é condição irrevogável.  Uma situação de difícil solução visto que também encontra barreiras na população chilena que não aceita perder território ou nacionalidade. Existem algumas propostas de tríplice fronteira, com áreas soberanas, envolvendo também o Peru, mas nada tem avançado nesse sentido. O fato é que se a américa hispânica fosse uma Pátria Grande como sonhava Bolívar todos esses dramas seriam evitados, pois seria tudo uma grande e mesma nação. O golpe e a justiça na Bolívia América Latina e as lutas sociais Unasul: golpeada a proposta de um bloco na América Latina Colômbia e a silenciada guerra contra o povo

Unasul: golpeada a proposta de um bloco na América Latina

por Elaine Tavares A generosa ideia de Hugo Chávez, inspirada em Bolívar, de criação da União das Nações Sul-americanas (UNASUL) está se esboroando. Com a decisão de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru e Paraguai de saírem da organização, a construção de um bloco de poder autônomo e soberano perde força. E, perdendo força, cresce o poder dos Estados Unidos sobre os países do sul, voltando, mais uma vez, a proposta de recolonização da “américa baixa”. Tudo isso com o apoio incondicional das classes dominantes de cada país, sempre dispostas a trair os interesses da maioria da população em nome de ganhos pessoais e/ou de seus parceiros. Não é sem razão que países como Brasil e Paraguai sofreram golpes, e a Argentina tenha se rendido outra vez ao neoliberalismo. Colômbia, Peru e Chile  sempre foram países parceiros dos EUA e só estavam na Unasul enquanto foi benéfico para eles no campo econômico e comercial. Agora, com o ataque sistemático ao governo de Nicolás Maduro, os governos desses países resolveram assumir o lado dos EUA e buscam enfraquecer a proposta da construção de uma América Latina forte. Setembro de 1815 – Simón Bolívar está na Jamaica, exilado, depois de ter tentado – e fracassado – libertar a Venezuela do domínio espanhol. Ele pensa sobre o destino de todos os viventes dessa grande América, então ainda sob o jugo da colônia. É quando escreve sua famosa Carta da Jamaica, na qual propõe a ideia da união de todo o continente: “É uma ideia grandiosa e pretender formar de todo o mundo novo uma só nação, com um só vínculo, que ligue suas partes entre si e com o todo. Já que têm uma mesma origem, uma mesma língua, mesmos costumes e uma religião, deveria, por conseguinte, ter um só governo que confederasse os diferentes Estados que haverão de formar-se”. E acrescenta: “Eu desejo mais do que qualquer outro ver formar na América, a mais grande nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas, que por sua liberdade e glória…” Depois dessa missiva, na qual os sonhos são explicitados, Simón volta para a América do Sul e recomeça sua luta. A independência vira uma realidade. Então, ele decide chamar, em 1826, todos os dirigentes das novas repúblicas que se formam depois das lutas de libertação para um Congresso, no Panamá, no qual proporia a construção real de uma confederação hispano-americana. Na frente de seu tempo, Bolívar sabia que só juntos, os novos países da recém-liberta colônia, poderiam ser soberanos e livres. Nesse congresso estiveram presentes os representantes do México, da Federação Centro-Americana, da Grã-Colômbia (Colômbia, Venezuela e Equador) e do Peru (incluindo então, a Bolívia). Outros se fizeram ausentes: Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Brasil, Estados Unidos da América e Haiti. A proposta estava a frente do tempo e procurar fortalecer o continente frente às ações imperialistas da Europa e dos Estados Unidos. O congresso propunha a união de todos esses países num grande bloco, a Pátria Grande, para manutenção da paz, segurança coletiva, defesa recíproca e mútua ajuda contra qualquer agressão externa, garantia da independência política e da integridade territorial dos estados membros, solução pacífica das controvérsias internacionais, quaisquer que fossem suas naturezas e origens e codificação do Direito Internacional. A ideia era ter uma Assembleia Geral permanente, que se reuniria de dois em dois anos, funcionando como hoje funciona a OEA (Organização dos Estados Americanos) e o objetivo único era a manutenção da paz e da soberania das nações livres. O Brasil, como governo, sempre esteve fora do debate da soberania da Pátria Grande. Quando as guerras de independência foram travadas na parte espanhola, o Brasil seguia firme com a monarquia e só foi abalado bem mais tarde pela revolução farroupilha, que durou 10 anos, mas acabou sem vitória da república. Ainda que tivéssemos gente brasileira lutando nas guerras de libertação, como foi o caso de Abreu e Lima, esse foi um tema que não chegou à maioria das gentes que vivia na parte portuguesa. Quando Bolívar chamou o Congresso Anfictiônico do Panamá, procurou convidar o Brasil, afinal, era quase um continente incrustrado na América Latina. Só que o Brasil não compareceu. Mas, é bom lembrar que se a monarquia não queria saber de libertação ou união, o povo brasileiro queria. Tanto que em 1817, quando os irmãos hispânicos lutavam por independência explodiu em Pernambuco um movimento republicano, tentando acender uma labareda nacional. Foi aplastado. E foi dali que saiu Abreu e Lima.  No artigo “O Brasil e o Congresso Anfictionico do Panamá”, o professor de Relações Internacionais da UNB,  José Carlos Brandi Aleixo, aponta que outros políticos brasileiros também se manifestaram pela ideia de uma união de nações nos anos que se seguiram a independência. Araújo Carneiro, Almirante Rodrigo Pinto Guedes, Silvestre Pinheiro Ferreira, José Bonifácio de Andrade e Silva foram alguns que se preocuparam com a defesa nacional e a necessidade de unir forças com os países vizinhos para enfrentar a Europa e o império nascente que representava os Estados Unidos. Em 1822 José Bonifácio escrevia: “…. o mesmo Senhor [ Príncipe D. Pedro ], como Regente do Brasil, não deseja nem pode adotar outro sistema que não o Americano, e se acha convencido de que os interesses de todos os Governos da América, sejam quais forem, devem se considerar homogêneos, e derivados todos do mesmo princípio, ou seja: uma justa e firme repulsa contra as imperiosas pretensões da Europa”. Por isso havia uma pré-disposição no Brasil ao chamado de Bolívar. Toda a diplomacia agia no sentido de garantir a participação no Congresso e Dom Pedro I chegou a destacar o Visconde de Inhambuque de Cima ( Pereira da Cunha) para representar o Brasil. Todavia, o Brasil acabou não indo. Muitas podem ter sido as razões. Há quem diga que foi porque o debate estaria centrado nas repúblicas, e o Brasil seguia monárquico. Havia disputa entre Brasil e Argentina pelo Uruguai e os governos talvez temessem essa discussão. O fato é que ficou de fora e não absorveu toda a riqueza do debate

América Latina e seus dilemas

por Elaine Tavares Já vai longe o tempo em que as notícias chegadas dos países irmãos da América Latina enchiam a vida de esperanças. Cooperação, soberania, equidade, mudanças, os ventos cambiantes soprando desde a Venezuela e se espalhando pelo continente. Nada muito revolucionário, mas pequenas e significativas transformações que começavam a cimentar um caminho diferente para uma população sempre subjugada dentro de um capitalismo dependente, no qual só sobrevivem os que mais roubam e exploram. Com Chávez à frente foram criados novos espaços de integração latino-americana como a Unasul, a Celac, o Caricom, bem como um Banco do Sul e uma emissora de televisão que buscava igualmente integrar o continente pela cultura: a Telesul. Durante mais de uma década, esse lugar geográfico denominado América Latina finalmente conseguiu olhar-se e descobrir-se parte de uma mesma proposta, a mesma com a qual um dia sonharam Petión, Bolívar  e Artigas, uma América unida, grande e soberana.   Mas, apesar desses avanços, os Estados Unidos, que acreditam ter como destino manifesto a posse sobre a riqueza e a vida de todos os que vivem abaixo do rio Bravo nunca desistiram de barrar esse sonho. Por isso, em 2002, o governo de Washington jogou pesado no apoio ao golpe contra Chávez. Só que a bravata do empresariado local aliada aos EUA acabou debelada pelo povo nas ruas e pelo exército bolivariano. Foi uma derrota fragorosa que obrigou o governo estadunidense a pensar formas alternativas de destruição do chavismo e da ideia de integração. E, de qualquer forma, mostrava claramente que o tempo dos “golpes” não se acabara. Eles sempre poderiam voltar, se fosse do desejo do governo imperial. Assim, dois anos depois, em 2004, os Estados Unidos desestabilizavam a região do Caribe com a deposição do presidente eleito do Haiti, Jean-Bertrand Aristide. A partir desse golpe, o país foi invadido pelas tropas da ONU, incluindo aí soldados de países como o Brasil e a Bolívia, que, em tese, deveriam estar alinhados com a Pátria Grande e não com o Império. Já foi mais uma jogada de mestre dos Estados Unidos, pois além de tirar o Haiti da rota da esquerda, criaram desconforto e desconfiança entre os governos latino-americanos. Depois, também no combate contra o avanço das ideias bolivarianas no Caribe, os Estados Unidos fomentaram o golpe em Honduras, no qual os militares locais sequestraram o presidente Manuel Zelaya, deportando-o para Costa Rica. Foi o retorno explícito de uma prática que a América Latina pensava já ter sido vencida. E, apesar de toda a gritaria da comunidade internacional Zelaya não voltou ao cargo e a constituição do país foi rasgada. Os militares golpistas realizaram eleições que foram consideradas ilegais, mas o presidente eleito no pleito imoral acabou sendo reconhecido e a vida seguiu. É que apesar dos percalços e das perdas a corrente bolivariana seguia arrastando dirigentes governamentais, movimentos e sindicatos. Transformações na saúde, na educação, nas matrizes energéticas, tudo tomava novo ritmo. Países como a Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, Argentina, Nicarágua, com governos considerados progressistas, iam – cada um no seu ritmo e com suas especificidades – mudando leis, nacionalizando riquezas, distribuindo renda. É claro que tudo isso não se deu sem contradições. A Venezuela não conseguia sair da matriz petrolífera, o Brasil se rendia ao agronegócio, o Equador excluía os indígenas e se aproximava das multinacionais do petróleo e da mineração, o Uruguai cedia aos transgênicos, a Argentina não atendia os trabalhadores. A batalha se dava também internamente em cada país. Então, em 2012, a fábrica de golpes apresenta um novo formato. E ele aparece no Paraguai, onde o presidente Fernando Lugo tentava – ainda que timidamente – dar combate ao latifúndio. Por conta de um conflito entre policiais e camponeses na região de Curuguaty, o qual terminou com 22 mortes, o legislativo nacional apresenta um pedido de impedimento de Lugo, acusando-o de omisso, e num processo relâmpago, eivado de ilegalidades, no dia 22 de junho, o presidente constitucional é deposto pelo Senado paraguaio, numa votação que contou 39 votos a favor e 4 contra. De novo, a gritaria geral dos países latino-americanos e de outras partes do mundo não mudou a realidade. O golpe foi respaldado. Caía mais um governo articulado na ala dos progressistas. No ano seguinte, em março de 2013, a onda bolivariana que embalara mais de uma década de transformações na América Latina, sofre mais um golpe. Morre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que era o principal condutor desse processo. Com ele, desaparece muito da força carismática que carregava multidões e encantava governos. E, a partir daí, abre-se um flanco para que – tal e qual nas guerras de independência – os governos até então alinhados aos sonhos de integração passem a atuar de forma mais individualizada. Chávez, o que puxava as orelhas, o que chamava para a boa direção, já não estava, e cada um tratou de cuidar de si. Mais um ponto para a águia, os EUA, que seguia não apenas à espreita, pronta para o bote, como ajudando no processo – inclusive financeiramente – de revitalização das entidades e organizações conservadoras nos países latino-americanos. Em 2014, os ataques se concentraram na Venezuela, onde tentaram de todas as formas derrubar o governo de Nicolás Maduro. Ajudada pelos erros do novo presidente, a elite local – aliada dos EUA – produziu uma poderosa guerra econômica na qual os venezuelanos se viram sem produtos para consumir, com uma inflação galopante e com o dinheiro desvalorizado. O contexto de caos e carestias levou ao crescimento das forças conservadoras que acabaram vencendo as eleições legislativas em 2015, tirando a maioria do governo. Em 2015 também o Brasil foi sacudido por forte crise política que já se manifestava desde 2013, e que foi crescendo ao ponto de se tornar uma espécie de cruzada contra o PT. Apesar de o governo de Dilma Roussef jamais ter sido um obstáculo para os conservadores e para a elite local, essas forças atuaram fortemente no sentido de derrubá-la do poder. E, como numa

Glória ao povo lutador *

Vivi na Venezuela 6 dos melhores anos de minha vida. Já se passaram mais de 25 anos e lembro que abastecia-se o carro com moedas e o câmbio era imutável, um dólar sempre valiam 4 bolívares e 30 centavos. Apesar de muita vontade, nunca mais voltei. Amigos que ficaram por lá descreviam Chávez pelo lado folclórico. Cheguei a ouvir que o líder venezuelano reservava lugar à mesa do jantar para Simón Bolívar. Sempre duvidei desses causos. A Venezuela era um país desigual de gente alegre que adorava celebrar (centenas de latinhas vazias de cerveja ocupavam o acostamento das rodovias) e dançar uma salsa. Quando voltava ao Brasil, me perguntavam das lindas misses. Só as via em revistas também. Chávez foi hábil em batizar seu governo de ‘república bolivariana’, os venezuelanos idolatram el libertador Simón Bolívar. Na minha cabeça de pré-adolescente, não entendia a figura de um popstar histórico com cadeira cativa na televisão a todo momento: seu nascimento, sua morte, o dia da independência, o dia de tal batalha vencida. Só faltava o dia da primeira comunhão e o da primeira obturação. A veneração por Bolívar assemelha-se a adoração do povo por Chávez. Mesmo seus detratores não podem negar que não faltava carisma a Chávez. Seus comícios teatrais perante às massas sempre renderam momentos impagáveis. Separei dois da vasta galeria: – Alca Al carajo. – “Hechemos a Bush” com Maradona. Chávez também estimulou a autoestima pelo caminho do patriotismo. Os venezuelanos sempre foram muito patriotas e apaixonados por discussões políticas. Porém, um assunto sempre machucava corações e mentes. Era só falar do próximo Grande Irmão do Norte que eles se apequenavam. Sentiam-se extremamente oprimidos por Washington e a elite local sempre adotou o discurso “Miami es mucho mejor que acá” e nunca aceitou a ideia de dividir, um pouco que fosse, os bilhões dos petrodólares. Discursos como ‘Hechemos a Bush’ lavavam a alma do povo e exorcizavam o desrespeito dos gringos por eles (não só com eles). Venezuela, que ditadura? O discurso reacionário de que Chávez era uma espécie de bufão, um caudilho tresloucado é desmontado no documentário “A revolução não será televisionada” de Kim Bartley e Donnacha O’Briain (o título do documentário é uma homenagem ao poema musicado The Revolution Will Not Be Televised do músico e ativista norte-americano Gil Scott Heron). O filme narra com enorme proximidade como Chávez, um presidente eleito sofre um golpe com auxílio da mídia em 2002 e reage com sensatez na luta para sua volta ao poder. http://youtu.be/MTui69j4XvQ O ódio uterino que a elite brasileira e seus vassalos da mídia grande sentem por Chávez nem Freud explica. Talvez uma tentativa de explicação venha de como Chávez escancara os problemas reais da América Latina ainda atrasada em muitos aspectos. Somos compostos por milhões de pobres e o jogo político não é um mar de rosas (dos dois lados). Muito se falou desde a morte de Chávez que ele quebrou a Venezuela. Alguns dados econômicos não mostram isso: o PIB venezuelano foi triplicado, a relação dívida/PIB caiu de 60% para 25% e o índice de pobreza baixou de 48% para 27%. * O título que nomeia o texto pertence à primeira estrofe do hino venezuelano que cantei com sono em muitas manhãs com direito ao hasteamento da bandeira.