Tarkovski e o planeta Água

por Roberto Acioli de Oliveira Poderíamos dizer que o cineasta russo Andrei Tarkovski dirigiu dois filmes de ficção científica, Solaris (Solyaris, 1972) e Stalker (1979). Uma adaptação livre do livro homônimo escrito pelo polonês Stanisław Lem, veremos que Solaris não tem nenhuma relação com a versão criada em 2002 nos Estados Unidos. Alguns disseram que o Solaris de Tarkovski foi uma resposta a 2001, Uma Odisséia no Espaço (2001, A Space Odyssey, direção do norte-americano Stanley Kubrick, 1968). Isso é um equívoco. De fato, o universo tecnológico da ficção científica é totalmente secundário em Solaris e Stalker. “Eu não gosto de sua ficção científica típica, eu  não  a compreendo, eu não acredito nela. O fato é que, quando eu estava trabalhando em Solaris, preocupava-me  com o  mesmo assunto de [Andrei] Rublev: o ser humano. Estes dois filmes estão separados apenas pelo tempo onde a ação está acontecendo” (1). Sinopse: Você se Conhece? Chris Kelvin é psicólogo, ele foi chamado para desvendar estranhas visões que os tripulantes de uma estação orbital andam tendo – e que pelo menos um deles insiste que não é demência. O grupo está na órbita de um planeta chamado Solaris, totalmente coberto por um oceano. Antes de viajar, Chris é informado da hipótese do Dr. Messenger, ele acredita que o oceano é um cérebro, mas ainda não sabe do que ele é capaz. Ao chegar à estação, Chris logo percebe que as coisas não estão bem. Pouco tempo depois, é sua própria esposa Hary, morta há dez anos, que se materializa diante de seus olhos. Chris resolve colocá-la num foguete, mandando-a para o espaço. Mas ele a reencontra quando volta para seu quarto. O Dr. Snout, um dos tripulantes, procura tranqüilizar Chris dizendo que ela é apenas alguém do passado dele. Pior seria, argumenta Snout, se o oceano de Solaris materializasse algo que só existe na imaginação – fazendo referência a nossos pesadelos. Snout explica que tudo leva a crer que o oceano captou de seus cérebros algo como pequenas ilhas de memória. “Não há horror do qual o homem não seja capaz” Dostoievski Chris conclui que outra Hary surgirá a cada tentativa de destruir a anterior. Os seres criados pelo oceano são imortais, podem ser mortos, mas sempre haverá uma ressurreição. Por outro lado, eles podem ser bastante complexos. Na verdade, o filme gira em torno também de uma crise de identidade de Hary. Ela não sabe quem é, mas percebe que é idêntica a falecida esposa de Chris. Até que pergunta a Chris: e você, se conhece? Ele responde que todos os humanos se conhecem, indicando que Hary não é humana. Nesta resposta ele mostra também uma concepção ingênua da humanidade. Durante essa estranha crise de identidade de um clone, Hary até tenta o suicídio inalando oxigênio líquido, acreditando que assim pode morrer congelada. Snout comenta com Chris que as coisas devem piorar, pois quanto mais ela fica com ele, mais ela se torna humana. Em seguida, assistimos com Chris, essa impressionante cena da ressurreição de Hary. Snout aconselha Chris a esquecê-la, o doutor insiste com o psicólogo que Hary só existe ali na estação orbital, sugerindo que ele “não leve para a cama um problema científico”. Por alguns instantes, durante a seqüência da sala de espelhos, Chris confunde Hary com sua mãe. Durante esse delírio de Chris, acompanhamos uma longa conversa entre mãe e filho. Ao acordar, Snout o comunica que na sua ausência Hary conseguiu se aniquilar de uma vez por todas. Relata também que começaram a se formar estranhas ilhas no oceano de Solaris. Na próxima seqüência, vemos Chris na Terra, caminhando no campo ao redor da casa de seu pai, a mesma que conhecemos no início do filme. Descobrimos logo depois que ele não está na Terra, mas numa das ilhas no oceano de Solaris. Tarkovski e o Karma As lembranças dos tripulantes, boas e ruins, tornam-se reais. É a ação do mar que cobre Solaris. Chris Kelvin, o investigador, torna-se parte do enigma. Sua esposa, que se suicidou há dez anos, se materializa. Algo de que Chris é culpado, porém é tarde demais para corrigir, porque Hary já morreu. O coração sabe que ele não a amou o suficiente, que a magoou mortalmente, então ela partiu para a não-existência. Mas ela não partiu! No fundo, está cada vez mais próxima dele. Cedo ou tarde, Chris irá confrontar essa realidade (2). Ao se debruçar sobre os conflitos morais produzidos em conseqüência das descobertas científicas, o filme de Tarkovski se remete a uma nova moralidade, resultante das experiências dolorosas enraizadas no âmago daquilo que nos acostumamos a chamar de “o preço do progresso”. Para Chris Kelvin, esse preço significa ter de encarar sua própria dor na consciência, que por fim se materializou na sua frente: Hary. Kelvin não modifica seu comportamento, mantendo-se como sempre foi. Essa atitude é a fonte de um dilema trágico para ele (3). Tarkovski era profundo conhecedor da bíblia, mas também se interessou pela problemática do Karma. Que vida viveríamos se tivéssemos a chance de voltar em circunstâncias diferentes? Kelvin teve outra chance, mas subconscientemente reencontrou no espaço sideral aquilo que o torturava, a mulher que negligenciou a ponto de deixar ela própria se perder. Tarkovski sempre se interessou pela alma humana, por aquilo que o homem é capaz. Ele costumava citar Dostoievski: “Não há horror do qual o homem não seja capaz” (4).   “Você ama o que pode perder.  A si mesmo, uma mulher, sua pátria. Até hoje, a humanidade, o mundo, ficou fora do alcance do amor”  Chris Kelvin no ápice de sua  confusão/iluminação mental. Mulher Sonhada Natalia Bondarchuk fala da caracterização de Hary, sua personagem (5). Natalia lembra que Tarkovski chamou sua atenção por ela estar atuando exageradamente, como uma espécie de heroína soviética. Hary não era nada disso, ela não era ninguém, só uma matriz, um molde. Hary compreende que não é humana, que não passa de uma imagem. Natalia fez o que o cineasta sugeriu, mas tempos depois contou a ele porque inicialmente ela havia tentado criar uma personagem teatral demais para Tarkovski. Ela explicou que havia pensado em construir Hary como o “peixe fora d’água”