O Tropicalismo na visão dos jovens na ditadura

As informações na internet falam que a Tropicália mudou o cenário musical brasileiro e influenciou outras áreas, como por exemplo, as artes plásticas e o cinema. Ela encontrou eco em boa parte da sociedade que, ainda que sufocada pela censura da ditadura militar, aplaudiu com entusiasmo as suas manifestações tanto nos festivais de Música, quanto nas artes cênicas. A consolidação veio com um álbum específico, lançado em Julho de 1968: Tropicalia ou Panis Et Circencis, falam os sites e sítios. Mas a Tropicália é um disco que não ficou datado, como um fóssil daquele tempo. Não. Melhor, esse disco tocou e fez eco e aço muito além do ano de 1968, tanto pela qualidade artística quanto pelo engajamento, um reflexo imediato no corpo da jovem esquerda do Brasil.  Os 50 anos do Tropicalismo acordam na gente várias lembranças. A primeira delas é a sua estranheza, não bem esquisitice na época. O seu conceito, a que vinha, ganhou conteúdos que os próprios Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Tom Zé, então nem imaginavam em 1968. Mas assim é com todos nós, famosos e anônimos, sobre o nosso papel no momento em que o vivemos. Ou dizendo de outra maneira, no momento em que fazemos história não estamos conscientes da repercussão e alcance de nossos atos e dias. Se assim tivéssemos a consciência, pararíamos tudo e ficaríamos surpresos, tontos, sem chão. Pior que o burguês de Molière, a falar em 1968: “então estou fazendo história e não sei”. Na melhor das hipóteses, temos intuições, desconfianças, vozes internas.  Quando veio Alegria, Alegria em 1967, e depois, quando ouvimos “sobre a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões…”, comentávamos “tá, é legal, mas bom mesmo é Chico Buarque”. Então, com Domingo no Parque, de Gil, começaram a se quebrar as resistências. Aquilo era novo, era guitarra, mas ao mesmo tempo saía daquele narciso “eu sou o superbacana”. Vinha uma música que cantava trabalhadores. “Amanhã não tem feira / Ê, José! / Não tem mais construção / Ê, João!”. Depois, houve Lindoneia, Baby em 1968, e a nossa sensibilidade se alargou: que coisa mais arretada é essa? “Você precisa saber da piscina, da margarina, da gasolina, você precisa saber de mim….”. Que coisa bonita.  Então veio o sol da política, as adesões entre os jovens contra a ditadura, que os próprios Gil e Caetano não podiam então prever. E aqui acrescento uma informação muito pessoal, que até hoje não havia revelado. Eu fui amigo, colega de escola de Bartolomeu, cujo nome completo era José Bartolomeu Rodrigues de Souza. Um dia, depois de muito tempo sem vê-lo, desde o Ginásio Ipiranga, onde estudamos na infância, eis que o reencontro em 1970 no Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria. E lá iniciamos uma discussão, da qual me lembro esta frase:  – Esse Chico é o cara dos olhos verdes das meninas Carolina. A música da revolução é o Tropicalismo. Presta atenção: el nome del hombre muerto, isso é Guevara. É a música dos revolucionários, rapaz!  Não à toa, Bartolomeu era conhecido na clandestinidade pelo nome de guerra Tropi. Como uma supressão dolorosa, ele não citou os versos “Estou aqui de passagem / Sei que adiante / Um dia vou morrer / De susto, de bala ou vício”. Em 1972, com a idade de 23 anos, Bartolomeu foi morto em “troca de tiros”, expressão com que a ditadura carimbava os mortos sob tortura, presos e desarmados. Mas naquele dia, no Alfredo Freyre, eu não me dei conta da antevisão dos tropicalistas na esquerda armada.  Então chega fevereiro de 2007. Numa entrevista que Gilberto Gil me concedeu, ele se referiu a uma parcela do público brasileiro que adorava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele explicitou que eram jovens militantes da luta armada, foquistas, como a grande maioria da resistência estudantil os chamava. Mas ele dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. À minha pergunta: – Na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha a ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha outra ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso? Gil me respondeu: – Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso… (tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais … mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.  Para mim isso era claro desde a vida e morte José Bartolomeu Rodrigues de Souza, o Tropi. A música dos tropicalistas me deu um referencial preciso de reconstrução da vida na memória, no romance. E a eles voltei no livro “A mais longa duração da juventude”, para expressar uma discussão viva dos anos da ditadura:  “A depressão se anuncia, sinto. Não sei se acontece somente comigo, se é um fenômeno isolado, mas quando não estou com amigos, quando não estou “na luta”, ou seja, em reuniões, pontos, panfletagem, estudo do marxismo em textos mimeografados, em resumo, quando não estou em atividade, caio na mais funda depressão. Eu me deito lá na pensão e vejo o teto baixar, baixando, os objetos em volta ficam cinza, e pouco importa se o sol lá fora brilha em céu azul. Um desconcerto e desacordo sem fim. É como uma angústia imóvel. Vem à semelhança do expresso nos versos de Camões, “Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei como e dói não sei porquê”. Um vazio, isto, um vácuo de substância cujo significado imagino saber agora. É a solidão, o estar só e sozinho num drama sem palco onde passa longe a solidariedade. E me falo ou perambulo nas sombras: “O que estou fazendo?