Zona Curva

webjornalismo

O jornalismo vive o conflito entre novas tecnologias e velhos valores

A popularização frenética das novas tecnologias digitais na comunicação tornou necessária e urgente uma mudança profunda nos valores que orientam o exercício do jornalismo nos últimos dois séculos. É toda uma cultura profissional consolidada durante quase dois séculos que está sendo submetida a um tratamento de choque. As redações não se discute mais se o computador é melhor ou pior do que a máquina de escrever, nem se o jornalismo online é ou não eficiente na publicação de notícias. Mas em compensação, a maioria absoluta dos profissionais ainda acredita que o jornalismo deve ser imparcial e objetivo, que os conteúdos publicados num jornal, telejornal ou revista são a expressão da verdade. Hoje, a ciência já provou que não existe mais imparcialidade completa, nem objetividade total e muito menos que é possível chegar à verdade absoluta. A avalanche de pesquisas, artigos e debates publicados na internet mostrou a necessidade de relativizar estes valores porque eles já não atendem mais às realidades que motivaram seu surgimento. A imparcialidade, objetividade, isenção e veracidade são valores desenvolvidos pela indústria de jornais e revistas no século XVIII como uma reação de alguns grupos da imprensa contra o chamado “jornalismo marrom” (sensacionalista) que faturava alto ao publicar notícias escandalosas, inescrupulosas ou mentirosas. Foi uma disputa financeira onde grupos midiáticos vinculados às elites sociais apostaram na moralização da imprensa por meio de campanhas contra a imoralidade, mistificação, falsidade e desvirtuamento de dados ou fatos. A imprensa sensacionalista ainda existe em várias partes do mundo, mas ela perdeu o protagonismo de antigamente, porque seus pressupostos perderam validade diante do crescimento de corporações jornalísticas interessadas em participar do jogo político e da luta pelo poder econômico. Os valores da imprensa dos séculos XIX e XX não perderam validade, mas a estrutura de produção sobre a qual se apoia o jornalismo digital do século XXI tornou necessária e inadiável a adoção de novos conceitos e parâmetros ideológicos. O impacto devastador da digitalização Os valores incorporados à atividade jornalística justificam e explicam as normas e rotinas da profissão. Quando se diz que o jornalismo é imparcial, isto justifica a norma de dar espaços iguais aos dois lados de um problema, e a rotina de ouvir todos os protagonistas. Esta atitude igualitária funcionou durante mais de um século como um antídoto ao unilateralismo, sectarismo e partidarismo da imprensa marrom. Serviu também para que a imparcialidade, veracidade e objetividade se tornassem ideias incontestáveis e acima de qualquer questionamento. A digitalização do jornalismo e da imprensa provocou o surgimento de uma nova estrutura de produção de notícias. As empresas jornalísticas entraram em crise por conta da necessidade de buscar outras formas de sustentação financeira porque houve uma migração da publicidade paga para a internet, ao mesmo tempo em que o público passou a preferir publicações online, gratuitas e onipresentes. A crise do modelo convencional de negócios na mídia obrigou as empresas e os profissionais a depender cada vez menos de anunciantes e buscar cada vez mais o apoio financeiro direto de leitores, ouvintes e telespectadores. Isto está obrigando os jornalistas a dialogar com o publico em pé de igualdade em vez da postura de superioridade tradicionalmente adotada pelos profissionais e justificada pela exclusividade no acesso aos tomadores de decisões no âmbito público e privado. A internet quebrou este monopólio na mediação entre autoridades e o cidadão comum, exercida pela imprensa. Agora os presidentes, parlamentares, empresários e até juízes se comunicam diretamente com a população através de redes sociais como o Facebook, Twitter ou canais eletrônicos como WhatsApp. O compromisso com a imparcialidade foi duramente afetado pela avalanche de informações contraditórias publicadas nas várias plataformas de comunicação na internet. Mais do que nunca a metáfora do copo meio cheio ou meio vazio mostrou como existem várias maneiras diferentes de perceber um único fato, dado ou evento. O mesmo fenômeno da diversificação de versões alterou a forma como o jornalismo lida com a questão da objetividade e exatidão de notícias. Ambos os conceitos estão sendo relativizados e é cada vez menor o número de jornalistas que os utilizam no sentido absoluto. Processo similar afeta a questão da credibilidade onde os parâmetros tradicionais estão gradualmente sendo substituídos por processos digitais. Indivíduos e instituições antes tidos como referências obrigatórias em matéria de confiabilidade informativa, cedem espaços para novos paradigmas como os sistemas de reputação baseados em dados estatísticos e em cálculos probabilísticos. A certificação de credibilidade está deixando de ser dicotômica, tipo 100% verdadeira ou 100% falsa, para ser avaliada como mais ou menos próxima da verdade. O desafio do jornalismo de diálogo Todas estas mudanças levam a uma nova conjuntura informativa cujo desdobramento implica o desenvolvimento de novos valores profissionais. O modelo de negócios baseado na publicidade paga está sendo substituído pela participação monetária dos usuários da mídia digital, seja por meio dos chamados muros de pagamento (paywall), seja por doações ou por assinaturas. Todas estas modalidades se baseiam numa estreita relação entre jornalistas e o público. Se antes o jornalista se auto definia como o personagem que “sabia o que as pessoas precisavam saber”, ou seja, as pessoas dependiam dele, agora o profissional é um parceiro em pé de igualdade com o resto da comunidade. Ele depende do conhecimento das pessoas para poder exercer sua atividade como gestor de informações socialmente relevantes para a comunidade. A ideia do jornalismo acima dos problemas ainda é dominante nas redações, especialmente em países como o Brasil. Mas a tendência ao “jornalismo de diálogo” ou “jornalismo cívico” ganha cada vez mais adeptos como mostram os projetos Spaceship Media (https://spaceshipmedia.org) e Engaged Journalism (https://www.engagedjournalism.com) , o primeiro norte-americano e o segundo europeu. Há ainda o projeto Membership Puzzle (https://membershippuzzle.org) cujo objetivo é promover a participação da comunidade na produção de notícias locais por meio de uma colaboração interativa entre moradores e jornalistas. O jornalismo de diálogo é, essencialmente, a reedição ampliada e digitalizada do chamado “jornalismo cívico, dos anos 90, que tentou tirar a profissão de um pedestal para inseri-la no dia a dia dos problemas concretos das comunidades. Apesar de ter recebido um considerável apoio financeiro, o jornalismo cívico

O jornalismo, a mentira e as redes sociais

O mundo das redes sociais imprimiu um conceito que tem sido bastante utilizado, principalmente pelos acadêmicos, mas que também encontra espaço entre os descolados que gostam de parecer inteligentes. É o tal do conceito da ‘pós-verdade`.   Na verdade, um embuste, tanto quanto o que parece significar. A pós-verdade seria o uso de informações, no mais das vezes falsas, que buscam tocar a pessoa no emocional de na crença pessoal. Ou seja, a partir da coleta dos dados sobre os mais de dois bilhões de pessoas no mundo que usam as redes sociais, como o facebook, por exemplo, é possível saber o que a pessoa pensa, o que gosta, o que odeia, quais seus medos e, desde aí, enviar informações que estejam adequadas aos seus sentimentos e sensações. Esses dados são mercadorias à venda e já existem empresas especializadas em usá-los para os mais variados fins. A distribuição é feita pelos “bots sociais”, os softwares automatizados (robôs), que, fazendo-se passar por pessoas reais,  difundem de maneira viral as mensagens especialmente feitas para o freguês. Ou seja, para usar as palavras corretas isso significa manipulação, engano, mentira. E tem sido assim que políticos e empresas buscam se consolidar no coração e na mente das pessoas. É a maneira moderna de disseminar o falso, a fraude. Isso sempre foi feito, seja pelo boca-a-boca, pelo jornal, pelo rádio, pela televisão. A diferença para a época atual é a magnitude da tramoia. A coisa pode atingir milhões de pessoas em poucas horas, e considerando que o sistema tem sido organizado a partir de grupos fechados baseados na confiança, uma mentira espalhada por esses robôs acaba assumindo contornos de verdade em segundos. Muitos são os casos de acusações falsas de crimes como pedofilia, sequestro etc…  levarem ao linchamento de pessoas, ao assassinato, ao ódio insano. Isso também sempre existiu, mas agora é a velocidade do processo que assusta. Além disso, o uso de programas que reproduzem a voz da pessoa e até imagem são cada vez mais comuns. A cara de uma pessoa pode ser plantada num corpo que está estuprando alguém, por exemplo. Tudo é possível. E uma calúnia tem o poder de atingir a pessoa em questão de segundos. Da mesma forma essa enxurrada de mentiras é igualmente capaz de eleger ou derrubar políticos. Tudo depende do poder de fogo de quem pode pagar os softwares (o trabalho dos robôs). No capitalismo, sabemos, as eleições se definem pelo tanto de dinheiro que o candidato tem para fazer a campanha e não pelas propostas que apresenta. Na campanha presidencial brasileira essa tática de usar empresas que usam o tal do “bot social” foi utilizada, o que configuraria fraude, mas a justiça eleitoral não levou em consideração e as pessoas afetadas pela enxurrada de notícias falsas começaram a fazer piada da denúncia, apresentando-se elas mesmas como os “robôs” do candidato, acreditando piamente que tinham sido suas postagens que levaram à vitória do presidente. Poucos são os que se percebem parte de uma teia gigante que vai sugando e manipulando. Sem pensamento crítico prévio, é quase impossível acreditar que aquela pessoa que manda mensagens não é uma pessoa, mas um sistema que, se utilizando de nomes de pessoas reais, reproduz as mensagens em velocidade estonteante. Assim que o mundo distópico um dia desenhado pelo grande escritor estadunidense Ray Bradbury, no seu Farenheit 451, parece estar bem aqui na nossa frente. Nesse mundo, descrito numa novela publicada em 1953, as pessoas viviam como que dopadas por telas de televisão gigantes que tomavam conta da sala de suas casas, e de todos os lugares da cidade, de maneira onipresente. Nessas telas sucediam-se programas idiotas e sem sentido, que apenas narcotizavam as gentes, tornando-as incapazes de discernir entre o real e o imaginário. Enquanto isso o governo manipulava as informações e criava uma realidade moldada aos seus interesses. Pois hoje existe um contingente muito grande de pessoas nessa situação. Narcotizadas pelas visualizações incessantes das redes sociais, inoculadas com a mentira sistemática, que se dissemina também nos meios massivos de comunicação e nas igrejas, vão se desvinculando da realidade, assumindo a existência de um mundo imaginário, no qual qualquer pessoa que pense diferente da malta, que se expresse diferente, ou sonhe diferente seja considerada um vírus, passível de ser destruída. A questão que se coloca é: é possível fugir disso? A resposta é sim. Não é fácil, pois a materialidade da vida exige que a pessoa esteja conectada o tempo todo. Mas, o caminho pode ser o exercício sistemático do pensamento crítico. Descartes, o filósofo francês, já ensinava lá no 1600: tudo é dúvida. Há que questionar. Há que duvidar. Há que investigar se a informação está correta. Há que checar uma e outra vez. Todos nós já caímos na armadilha da notícia falsa, a qual reproduzimos a partir de nossos círculos de confiança. Mas, nossos círculos de confiança também mentem, então, não dá para vacilar. A manada segue o líder, sem pensar. O sujeito crítico se demora, observa, reflete, pensa. Sou jornalista e na minha formação sempre houve um tema que era perseguido – e ainda é – por todo o profissional dessa área: o furo. E o que é furo? É a gente conseguir dar em primeira mão a informação. Eu sempre achei isso um engodo porque, na verdade, o que importa para o público não é que a gente dê uma informação em primeiro lugar, atabalhoadamente, de forma ligeira e, por vezes, irresponsável, mas sim que essa informação seja 100% segura e repleta do contexto. Ou seja, o que sempre ensinei é que o grande salto do bom jornalista não é dar primeiro, mas dar melhor. Nesse mundo de mentiras, que não é o de pós-verdades, mas da velha e manipuladora mentira, mais do que nunca precisamos do jornalismo de verdade. Esse que descreve, que narra, que contextualiza, que vem carregado da impressão do repórter que viu. É um grande desafio no universo das redes sociais, mas há que perseguir essa meta. Não é fácil, não é